23 de janeiro de 2010

A influência de Petrarca na lírica camoniana.


O RETRATO IDEALIZADO DA MULHER AMADA

Um mover de olhos, brando e piedoso,
Sem ver de quê; um riso brando e honesto,
Quase forçado; um doce e humilde gesto,
De qualquer alegria duvidoso.

Um despejo quieto e vergonhoso;
Um repouso gravíssimo e modesto;
Uma pura bondade, manifesto
Indício da alma, limpo e gracioso;

Um encolhido ousar; uma brandura;
Um medo sem ter culpa; um ar sereno;
Um longo e obediente sofrimento:

Esta foi a celeste fermosura
Da minha Circe, e o mágico veneno
Que pôde transformar meu pensamento.

Na poesia camoniana, a idealização da mulher concretiza-se sobretudo em retratos em que o aspecto físico atinge a impessoalidade do convencional: olhos sempre claros, cabelos louros, tez muito alva e faces rosadas. Esta concretização se verifica ainda através do aspecto espiritual que se caracteriza pela serenidade, pela doçura do riso e pela brandura dum gesto (rosto) sossegado. Esta visão da mulher traduz também a concepção platônica do amor ideal e inacessível. É um retrato, somatório de determinados aspectos, todos eles qualificados.
Este soneto tematiza a beleza da mulher e o fascínio por ela exercido no sujeito. O poeta traça o retrato da sua amada, mais espiritual do que físico, e conclui com uma referência à transformação do seu pensamento provocada pela formosura, que funcionaria como um “mágico veneno” que o subjugou. Esta escassa referência a características físicas e a predominância das qualidades morais remetem-nos para a ideologia platônica.
É sobretudo nítida a influência petrarquista no ideal de beleza feminina ( a graça, o recato, a doçura, a brandura, etc.), e nas qualidades morais atribuídas à mulher, expressas por uma adjetivação abundante: (brando, piedoso, honesto, humilde, quieto e vergonhoso, modesto, etc.) e por substantivos abstratos ( bondade, brandura, medo sem ter culpa). Note-se que os aspectos focados têm um elevado nível de abstração, (reforçado pela utilização do artigo indefinido e constituem dois conjuntos.
Observa-se, ainda, que, na esteira de Petrarca, as qualidades morais predominam sobre as físicas e o fascínio resulta, portanto, da beleza espiritual ( a celeste fermosura). Esta tematização da beleza feminina repete-se, também, no soneto “Ondados fios de ouro reluzente”

Ondados fios de ouro reluzente,
Que, agora da mão bela recolhidos,
Agora sobre as rosas estendidos,
Fazeis que sua graça se acrescente
Olhos, que vos moveis tão docemente,
Em mil divinos raios encendidos.
Se de cá me levais alma e sentidos,
Que fora, se de vós não fora ausente?
Honesto riso, que entre a mor fineza
De perlas e corais nasce e parece,
Se na alma em doces ecos não o ouvisse;
Se, imaginando só tanta beleza,
De si em nova glória a alma se esquece,
Que será quando a vir? Ah! quem a visse!

Note-se que, quando fala na mulher, Camões abre um campo de intensa beleza, de delicadeza e de irresistível poder de sedução. Para quem tanto sofreu as penas do amor, para quem tantas vezes teve o coração dilacerado pela saudade de um amor perdido, inacessível ou não correspondido, é um espanto que nunca censure, maldiga ou menoscabe a mulher. É fato que o poeta padeceu muitos infortúnios, mas a sua dor mais profunda não vinha da experiência amorosa. A dor intensa e aniquilante de Camões era moral, sua tragédia era existencial.
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Por Zenóbia Collares Moreira Cunha

19 de janeiro de 2010

Violante do Céu: Poesia Barroca



Sóror Violante do Céu nasceu em 1602 e faleceu em 1693, despedindo-se duma longa trajetória existencial, quase toda ela transcorrida entre os faustos da fama conquistada pela qualidade literária de sua obra. Antes de ingressar no convento, atendia pelo nome de Violante da Silveira, ou Violante de Montesino e cultivou a poesia profana, inclusive o lirismo amoroso. Após vestir o hábito, passou a investir o seu talento poético na poesia religiosa, revelando-se uma das mais prestigiadas representantes femininas do Barroco português, conquistando inúmeros prêmios e louvores das academias literárias do seu tempo.

Sua produção literária é considerada pela crítica da atualidade um dos momentos altos do conceptualismo barroco português. Dentre as escritoras suas contemporâneas, nenhuma teve a obra mais celebrada que a dela, nem atingiu a culminância do seu sucesso entre os altos representantes da nobreza, da intelectualidade da época e dos próprios soberanos. As sucessivas edições dos seus livros logo se esgotavam, dentro e fora de Portugal.

Levada a tomar o hábito de freira dominicana, no Convento de Nossa Senhora da Rosa, aos 29 anos de idade, e a exilar-se na vida claustral, não motivada por uma imperiosa vocação, mas para proteger-se dos sentimentos que a arrebataram e fizeram sofrer, Violante voltou as costas para o mundo e para o amor. No entanto, em sua poesia, a temática amorosa desponta aqui e ali, como uma força oculta que não consegue, ou talvez não quer sufocar. Mesmo nas poesias de temática religiosa, nas quais suplica ao Criador o perdão para os seus erros passados, é freqüentemente o amor que emerge do seu discurso.

No soneto que segue, tem-se a comprovação dessa presença do amor no espírito da poetisa. No poema, chamam a atenção as palavras opositivas vida e morte, alternadas no final dos versos. A antítese vida/morte é habilmente submetida a um jogo de sentidos no qual os termos opostos harmonizam-se através de um reiterado revezamento permutativo entre o sentido próprio e o sentido metafórico dos dois vocábulos: a morte, usada como expressão hiperbólica do sofrimento amoroso, confunde-se com a vida, como comprova o derradeiro verso do soneto.

Se, apartada do corpo a doce vida,
Domina em seu lugar a dura morte,
De que nasce tardar-me tanto a morte,
Si ausente d´alma estou que me dá vida?

Não quero sem Silvano já ter vida,
Pois tudo sem Silvano é viva morte,
Já que se foi Silvano, venha a morte
Perca-se por Silvano a minha vida.

Ah! suspirado ausente, se esta morte
Não te obriga querer vir dar-me a vida,
Como não ma vem dar a mesma morte?

Mas se na alma consiste a própria vida,
Bem sei que se me tarda tanto a morte,
Que é porque sinta a morte de tal vida.

A invulgar sensibilidade da autora, seu estilo intelectualizado e a sua habilidade técnica asseguraram-lhe lugar de destaque nas letras portuguesas, ao lado das maiores expressões da poesia barroca. Em suas poesias profanas, reunidas na obra intitulada Rimas várias, publicada em 1646, sobressaem as metáforas conceituosas, as sutilezas, os jogos verbais, as figuras de estilo, manipulados com invulgar habilidade. Veja-se, por exemplo, a estrutura metafórica através da qual se estruturam as estrofes da Canção que segue. As metáforas que se sucedem, usadas para referenciar o pensamento, espraiam-se em cascata ao longo da estrofe, resultando num efeito redundante e altamente intensificador do sentido:

Amante pensamento,
Núncio de amor, correio da vontade,
Emulação do vento,
Lisonja da mais triste soledade,
Ministro da lembrança,
Gosto na posse, alívio na esperança.

O soneto  abaixo exemplifica bem o requintado gosto barroco da autora pela enumeração e pela proliferação verbal. .Soma-se a esse processo enumerativo a técnica da bimembração dos versos, resultando numa simetria perfeita em cada um deles e na estrofe como um todo. Vale notar que os versos bimembres encerram uma oposição intensificada, ou seja, eles têm no oxímoro a viga mestra de sua construção. Observe-se ainda o domínio absoluto do oxímoro e da bimembração em todos os versos das quadras, prolongando-se nos tercetos, sem que o uso intensivo de ambos os recursos de estilo prejudique o ritmo do soneto ou o torne monótono, como costuma acontecer em textos que se constroem de forma semelhante:

             Será brando o rigor, firme a mudança,
Humilde a presunção, vária a firmeza,
Fraco o valor, cobarde a fortaleza,
Triste o prazer, discreta a confiança;

Terá a ingratidão firme lembrança,
Será rude o saber, sábia a rudeza,
Lhana a ficção, sofística a lhaneza,
Áspero o amor, benigna a esquivança;

Será merecimento a indignidade,
Defeito a perfeição, culpa a defensa,
Intrépido o temor, dura a piedade,

Delito a obrigação, favor a ofensa,
Verdadeira a traição, falsa a verdade,
Antes que vosso amor meu peito vença.

A inevitabilidade da morte e do caráter transitório da vida é um dos temas mais apreciados pelos poetas barrocos, bem como o gosto pela meditação sobre a fugacidade das coisas e dos seres, principalmente da beleza da mulher, um dos símbolos mais dramáticos da destruição causada pelo tempo ou pela morte. A nota sombria do texto fica por conta do reconhecimento de que a vaidade, a beleza, enfim os bens terrenos, tudo caminha para o fim inexorável imposto pela morte:

SONETO
Ó tu, que com enganos divertida
Vives do que hás-de ser tão descuidada,
Aprende aqui lições de escarmentada,
Ostentarás acções de prevenida.

Considera, que em terra convertida
Jaz aqui a beleza mais louvada,
E que tudo o da vida é pó, é nada,
E que menos que nada a tua vida.

Considera, que a morte rigorosa
Não respeita beleza, nem juízo,
E que sendo tão certa é duvidosa:

Admite deste túmulo o aviso,
E vive do teu fim mais cuidadosa,
Pois sabes, que o teu fim é tão preciso.

No soneto dado a seguir, a poetisa deseja expressar o desconcerto de um coração atormentado pela dúvida e o faz num crescendo que as duas quadras e o último terceto paralelamente acentuam nas duas formas interrogativas. E é na chave do soneto que conclui, empolgadamente, qual poderá ser o estado de alma que resultará de uma certeza, se só a dúvida já é suficiente para matá-la. A poetisa desdobra essa idéia obsedante, insistindo nela três vezes, apenas mudando a forma de expressão que traduz o seu estado de espírito presente e deixa subentendido o que poderá acontecer se a dúvida se transformar em certeza. A idéia está condensada nos dois primeiros versos e no último terceto:

Amor, se uma mudança imaginada
É com tanto rigor minha homicida,
Que fará, se passar de ser temida,
A ser, como temida, averiguada?

Se, só por ser de mim tão receada,
Com dura execução me tira a vida,
Que fará, se chegar a ser sabida?
Que fará, se passar de suspeitada?

Porém, já que se mata, sendo incerta,
Somente o imaginá-la e presumi-la
Claro está, pois da vida o fio corta.

Que me fará depois, quando for certa:
Ou tornar a viver para senti-la,
Ou senti-la também depois de morta.

O refinamento do amor traduz-se no último terceto, nos dois versos finais. Num requinte de sentimento, acentua-se a continuidade do sofrimento, mesmo além da morte, que pode levar a um renascer contínuo a serviço do mesmo amor, sempre tomado por dúvidas angustiantes: “Ou tornar a viver, para senti-la. / Ou senti-la também depois de morta”.
A inspiração de Sóror Violante do Céu não se voltava apenas para a expressão de seus sentimentos, da sua religiosidade e da sua visão de mundo. Coexistia com esse lado grave da poetisa um outro jovial, irreverente e irônico, através do qual dava vazão ao “estilo jocoso”, tão do gosto da ludicidade e do espírito crítico dos barrocos. À guisa de exemplificação, segue-se a décima, escrita decerto em data anterior ao ingresso da poetisa no convento, com a qual respondeu a certo doutor que caíra na infeliz idéia de fazer um trocadilho com o nome da autora, associando-o ao nome da viola ou violeta, respectivamente, instrumento musical e flor:


Contradizer a um doutor,
Bem sei que é temeridade;
Porém com uma verdade
Quero pagar um louvor:
Nem instrumento, nem flor
Sou, porém se o posso ser,
Ninguém trate de empreender
O que não há-de alcançar,
Pois nenhum me há-de tocar,
Pois nenhum me há-de colher.

Celebrada, como já foi dito, por personalidades importantes do mundo das letras, da aristocracia e do clero, as composições de Sóror Violante eram recebidas com aplausos pelos seus admiradores, eram lidas, recitadas, e tinham as suas edições rapidamente esgotadas em Portugal e no estrangeiro

Zenóbia Collares Moreira

8 de janeiro de 2010

O barroco no feminino: Leonarda da Gama

Nascida em 1672 e falecida em 1759, Madalena da Glória ingressou no Convento de Nossa Senhora da Esperança aos dezesseis anos de idade. Com o pseudônimo de Leonarda da Gama, escreveu várias obras, em prosa e verso: Brados do desengano contra o profundo sono do esquecimento (2 tomos, 1739 e 1749); Orbe celeste adornado de brilhantes estrelas e dois ramalhetes.(1742); Reino da Babilônia ganhado pelas armas do Empírio (1749). Os principais poemas da autora estão inseridos ao longo de narrativas alegóricas de função moralizadora

Se, na composição dos sonetos, Sóror Madalena da Glória revela menos esmero e habilidade do que Sóror Violante do Céu, consegue, no entanto, superá-la no trato com formas poéticas menos fechadas, adequadas, na medida justa, à sua exuberante e solta imaginação lírica, ao seu sereno sentimentalismo. Sóror Madalena da Glória destaca-se, ainda, pela desenvoltura com que maneja o jogo de conceitos típico do conceitismo, despojando esse estilo de exageros e frivolidades, utilizando-o no sentido mais intensamente expressivo de uma discreta densidade que emana dos seus versos. A estrofe que segue, escrita em oitava rima, ressalta a leveza da construção metafórica dos poemas da poetisa-freira, nos quais as metáforas em série vão se sucedendo de verso a verso, para exprimirem o caráter efêmero da vida humana:


Esse monte de fogo, que nascendo
Em campo de safiras, luz ardente
Em chegando ao zênite, já vai descendo
Quando o viste subir do seu oriente:
Nasceu luz, cresceu sol, porém morrendo
Nem luz, nem sol se mostra no ocidente.
Pois se de vida o sol não tem dois dias,
Mortal, como em instantes te confias?


A poesia de Sóror Madalena da Glória percorre, praticamente, toda a temática barroca, ocupando lugar de destaque o problema da efemeridade da vida humana, do tempo, da morte e do desengano. O tema da efemeridade da vida, quase sempre, se desenvolve em conexão com o da transitoriedade do tempo e da inexorável ação destrutiva que ele exerce sobre o físico e a mente do homem, arrastando-o para a morte:

Esse sono, em que cego vás passando,
Essa vida mortal, em que confias,
Já nas asas do tempo vai voando
Porque da vida instantes são os dias:
Já que o tempo da vida vai correndo,
A flor da formosura descaindo,
Do sol o resplendor desfalecendo,
E a luz do desengano vem ferindo:
Quando tudo da vida vai morrendo,
E tudo enfim a morte desunindo;
Oh! Considera em tão penosa sorte,
Que a vida é feno, sendo raio a morte!

No livro da poetisa, Orbe celeste, o tema da morte, sempre presente na lírica barroca, é desenvolvido em vários poemas dentre os quais figura o soneto a seguir, dedicado A uma caveira pintada em um painel que foi retrato, associado à meditação acerca da efemeridade dos valores terrenos:


Este que vês de sombras colorido
E invejas deu na primavera às flores,
Do pincel transformadas os primores
Desengano horroroso é dos sentidos.


Ídolo foi do engano pretendido
A que a cega ilusão votou louvores
Estrago é já do tempo e seus rigores
O que então foi ao que é já reduzido.


Foi um vão artifício do cuidado,
Foi luz exposta ao combater do vento,
Emprego dos perigos mal guardado;


Foi nácar reduzido ao macilento,
O culto ali nos medos transformada,
Mortalha a gala, a casa monumento.


É certo que a consciência de que o tempo flui, arrastando o homem, em sua passagem, não está presente apenas no Barroco; ela está presente na literatura desde sempre, intensificando-se no período maneirista, do qual transitou para o Barroco trazendo consigo o mesmo caráter obsessivo que lhe imprimiu o Maneirismo. O teor subjetivo da poesia de Madalena da Glória, a expressão de estados melancólicos, suscitados pela saudade de um bem ausente, pelo desengano e pelos ciúmes, é bem estranha, considerando-se tratar-se da obra de uma freira:


Aves que o ar discorrei,
No vôo as asas batendo,
E por vossas penas conta
Às minhas meu sentimento.

Compadecidas ouvi
De minha dor os excessos,
Mas em dizer que é saudade,
Digo o que posso dizer-vos.

Triste padeço, e ausente
Os golpes dos meus receios
Nas batalhas da distância,
Nos desafios do tempo.

Nas violências, do que choro,
Dos alívios desespero,
Que não adormece a queixa,
Quando a desperta o desvelo.

Esmoreceu a esperança
Nas dilações do desejo
Prognosticando a ruína
Frenético o pensamento.

Se meu mal são sintomas,
Mortais ausências, e zelos,
Era o remédio esquecer-me,
Se em mim houvera esquecimento.

Mas se faz no meu cuidado
Operações o veneno,
Viva de senti-lo quem,
Não morre de padecê-lo.

Já que morro, ingrata sorte,
Às mãos da tua porfia,
Deixa-me inquirir um dia
A causa da minha morte:

Se amor com impulso forte
Me rendeu, como me aparta
Do bem, que na alma retrata
Minha doce saudade,
Que em lágrimas persuade,
Como dá vida o que mata.


A religiosidade encontra na poesia barroca muitas formas de expressão. O sujeito poético apresenta-se quase sempre como um ser fraco, arrastado para o pecado e assumindo uma total dependência ao amor e da misericórdia de Deus. No soneto abaixo, inserto no livro de Sóror Madalena da Glória, Reino da Babilônia, o ser que nele fala posta-se suplicante perante a graça divina, contrito e consciente da sua situação de pecador penitente. Todavia, fica clara a relação amorosa que se estabelece entre a alma pecadora e o Criador, pautada numa reciprocidade que faz da criatura não apenas uma fonte de amor por Deus como o objeto do amor divino:

OITAVAS

Já, Senhor, despertaram meus cuidados
Em tanta ingratidão adormecidos;
Nasceram a querer-vos destinados
E em cega idolatria os vi perdidos.
Vossa mesma fineza lhe deu brados
Por que a tanto favor agradecidos
Confesse o coração com rendimento
Que é de vosso amor doce sustento.


Dos aparentes bens a prisão dura,
Que o gosto cativaram com violência,
Venceu a vossa luz a sombra escura
Para maior vitória da clemência.
Constante a minha fé vos assegura
De Babilônia às leis a resistência,
Que é certo pouco faz quem obedece,
Se chegando a vos ver o mais lhe esquece.

[...]
Não é a tematização do amor o que centraliza os interesses dos poetas barrocos. Muitas vezes o tema amoroso é abordado como mero exercício poético, como sátira ou como ludicidade. Talvez seja nesse último caso que se inclui a composição de Sóror Madalena da Glória que se segue, considerando-se que o poema é desenvolvido a partir de um mote, o que aponta para o caráter lúdico do texto:

MOTE E GLOSA
Tenho amor, sem ter amores.

GLOSAS

Este mal que não tem cura,
Este bem que me arrebata,
Este rigor que me mata,
Esta entendida loucura
É mal e é bem que me apura;
Se equivocando os rigores
Da fortuna aos favores,
É remédio em caso tal
Dar por resposta ao meu mal:
Tenho amor, sem ter amores.
É fogo, é incêndio, é raio,
Este, que em penosa calma,
Sendo do meu peito alma,
De minha vida é desmaio:
E pois em moral ensaio
Da dor padeço os rigores,
Pergunta em tristes clamores
A causa da minha aflição,
Respondeu o coração:
Tenho amor, sem ter amores.


A leveza da construção metafórica dos poemas da poetisa-freira, o equilíbrio e a habilidade com que maneja o conceitismo, o a vontade com que trabalha o verso, dando expressão aos sentimentos e sua imaginação lírica, faz da autora uma das mais qualificadas expressões da poesia barroca portuguesa.
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Autora: Zenóbia Collares Moreira (O Barroco no Feminino)