31 de março de 2010

Rosa Lobato de Farias


                                 A poetisa e romancista Rosa Lobato de Faria nasceu em Lisboa a 20 de Abril de 1932 e faleceu recentemente, no dia 10 de fevereiro. O livro, "Poemas escolhidos e dispersos", das edições ASA, compila os principais poemas da escritora, que publicou o seu primeiro romance em 1995, "O Pranto de Lúcifer". Seguiram-se "Os Pássaros de Seda" (1996), "Os Três Casamentos de Camila S." (1997), "Romance de Cordélia" (1998), "O Prenúncio das Águas" (que ganhou o prémio Máxima de Literatura em 2000), "A Trança de Inês" (2001), "O Sétimo Véu" (2003), "Os Linhos da Avó" (2004), "A Flor do Sal" (2005), "A Alma Trocada" (2007), "A Estrela de Gonçalo Enes" (2007) e "As Esquinas do Tempo" (2008). Escreveu, também, vários livros infantis. Os seus dois primeiros romances foram publicados na Alemanha e "O Prenúncio das Águas" foi publicado em França. Para o teatro, escreveu as peças "A Hora do Gato", "Sete Anos - Esquemas de um Casamento" e "A Severa".
Rosa Lobato de Faria estreou-se como locutora na RTP nos anos 60. Ficou conhecida do grande público pela sua participação, como actriz, na primeira telenovela portuguesa, "Vila Faia", em 1982, onde interpretava a personagem de Beatriz Marques Vila. No cinema, sob a direcção de João Botelho, participou no filme "Tráfico" (1998) e "A Mulher que Acreditava ser Presidente dos EUA". Entrou em dois filmes de Lauro António: "Paisagem sem Barcos" (1983) e "O Vestido Cor de Fogo" (1986). Apresentou os programas televisivos "Cartas de Amor" e "Chá das Cinco".
A par de José Carlos Ary dos Santos, Rosa Lobato Faria foi a letrista com mais sucesso no Festival RTP da Canção, tendo obtido quatro vezes o primeiro lugar com "Amor de Água Fresca" (interpretado, em 1992, pela cantora Dina), "Chamar a Música" (interpretada em 1994 por Sara Tavares), "Baunilha e Chocolate" (cantada por Tó Cruz, em 1995), "Antes do Adeus (na voz de Celia Lawson, em 1997).
O texto que se segue, escrito por Rosa Lobato de Farias é uma Ode à alegria de viver, é uma grande lição de vida deixada para as pessoas que, equivocadamente, acreditam que a velhice é um tempo obscuro, que é apenas a antecâmara da morte, que representa a cessação de uma existência plena, prazerosa e ativa. Ela mostrou que não é assim, vivendo em plenitude sua juventude interior até a sua partida para uma outra forma de vida. “Mazelas” foi escrito no ano de sua morte.
"Aos 77 anos, como é natural, aparecem-nos todas as mazelas. Insignificâncias: uma dor aqui, uma dor ali, nas costas, na perna, na cabeça, uma pequena coisa na pele, na unha, no olho. Não ligo nenhuma. Porque a minha maior mazela é não acreditar que tenho 77 anos.
Eu bem me farto de dizer aos quatro ventos a minha idade e ver se interiorizo este facto, mas por dentro, estou na casa dos trinta, vá lá quarenta, mas não passo daí.
Setenta e sete anos? Que loucura!
Tenho sempre tantas coisas para fazer, para acabar, para ler, para escrever, tanto lugar para visitar, tanto museu para ver, e depois as mazelas – ai!-, mas vou. Porque tenho trinta anos e, evidentemente, tenho que ir.
Não tenho a noção de ser uma senhora velha. Digo Estava lá uma velhota, ou Imaginem que uma velha... Estou a falar de pessoas provavelmente mais novas que eu, mas não enxergo. Até quando irá durar esta idade subjetiva que não me deixa envelhecer tranquilamente?
Só quando me oferecem o braço (já caí na rua e parti a perna, mas nem assim...), quando me sentam no lugar de honra à mesa, quando me dão o assento da direita no automóvel, quando não me dirigem galanteios (que estranho!), acordo para a realidade: ai, é verdade, tenho 77 anos, que maçada...
Ultimamente, tive (ou tenho, ainda não percebi) cancro de mama. Como acho que Deus não me ia mandar uma doença só para me chatear, abri uma campanha de sensibilização (televisão incluída), para que as mulheres façam mamografias. Transformei a porcaria da doença numa coisa positiva.
Passei os trâmites habituais: operação, radioterapia, etc. Tudo pacífico. Ainda por cima, o médico disse-me que era pouco provável que o cancro me matasse, porque, na minha idade, as células já não são o que eram... Aí, sim?
Tenho 77 anos, que alegria!..."

Autora: Rosa Lobato Farias
Escritora e atriz portuguesa.
(Não foi o cancro que matou Rosa, mas sim outras “mazelas” que nada tinham a ver com esta doença)

Seguem-se duas poesias da autora, impregnadas da sensibilidade extraordinária que marcou toda a obra poética e ficcional de Rosa Lobato de Farias, poetisa que deixará uma imensa lacuna na cena literária portuguesa.

SE EU MORRER DE MANHÃ
Se eu morrer de manhã
abre a janela devagar
e olha com rigor o dia que não tenho.
Não me lamentes. Eu não me entristeço:
ter tido a morte é mais do que mereço
se nem conheço a noite de que venho.
Deixa entrar pela casa um pouco de ar
e um pedaço de céu
- o único que sei.
Talvez um pássaro me estenda a asa
que não saber voar
foi sempre a minha lei.
Não busques o meu hálito no espelho.
Não chames o meu nome que eu não venho
e do mistério nada te direi.
Diz que não estou se alguém bater à porta.
Deixa que eu faça o meu papel de morta
pois não estar é da morte quanto sei.

A GAVETA DE BAIXO
Com que pedra de sal
com que promessa
com que pássaro solto pela casa
com que folha de louro
com que sonho
com que lua entornada no alpendre
com que livro de quem
com que sonata
temperarei a dor da tua ausência
o silêncio
o vazio na minha cama
os gritos do meu corpo
o pão por partir da minha alma
Com que chuva
lavarei o rumor dos teus passos
no magoado coração dos dias
Com que pranto
afogarei teu rasto
com que manto de lava
com que mar.

Autora: Zenóbia Collares Moreira