30 de dezembro de 2015

O lirismo sensual de Florbela Espanca

Nascida em Vila Viçosa (Alentejo) em 1895, portanto nos umbrais do século XX, Florbela de Alma da Conceição Espanca teria sua atormentada vida encurtada pelo suicídio no ano de 1930, quando contava com apenas 35 anos de idade. Apesar do seu talento invulgar e da qualidade do que escreveu, a poetisa inclui-se no numeroso contingente de escritoras que, em vida, não tiveram o valor de sua obra reconhecido pela crítica e pelo público.
Apesar de ter começado a escrever quando o Simbolismo diluía-se enquanto estilo de época em Portugal, a poetisa revela em parte de sua obra poética, mais precisamente nos seus dois primeiros livros – Juvenília e Livro de Mágoas – afinidades com a temática dor e da solidão que atravessam a poesia do poeta simbolista António Nobre, a quem devotava grande admiração (Ó Anto! Eu adoro os teus estranhos versos).
Comentando a afinidade de Florbela com o poeta “mais triste de Portugal”, Nelly Novaes Coelho chama atenção para a cumplicidade da poetisa com o narcisismo magoado de António Nobre e com o decadentismo crepuscular em cujas pegadas “a criação poética florbeliana vai transformando a mágoa, a dor, o sofrimento de viver, numa verdadeira liturgia da paixão, na qual o eu é o centro, que se quer ponto de convergência do mundo, mas continuamente frustrado, em seu desejo ou necessidade [...]. A poesia de Florbela expressa, em essência, a paixão que ela nutria por si mesma e a dor de não ser reconhecida em sua grandeza [...]. Sua poesia é daquelas em que a psique do poeta é a própria matéria poética”.
A exemplo do que fez Camões no soneto de abertura de suas Rimas, a poetisa dedica àqueles que, iguais a ela, também sofrem, também são torturados pela dor de viver e de amar, pois são os únicos que saberão compreender e sentir, com propriedade, a dimensão da tristeza dos seus versos: ecos da dor permanente que a persegue, da mesma medida em que, em vão, busca superá-la:
Este livro é de mágoas.
Desgraçados
Que no mundo passais,
Chorai ao lê-lo!
Somente a vossa dor de Torturados
Pode talvez senti-lo e... compreendê-lo


No Livro de Sóror Saudade, publicado em 1923, define-se o tom pessoal que haveria de peculiarizar a sua obra, privilegiando o soneto a forma de expressão mais adequada para dar expansão ao tumulto interior, aos conflitos íntimos que lhe dilaceravam a alma. Emocionalmente insatisfeita, padece e tortura-se por não conseguir se fazer compreender pela sociedade castradora do seu tempo, incapaz de alcançar a dimensão do amargo embate que trava entre o que seus sentidos e apetências exigem e o que a própria razão condena.
Com efeito, as mulheres e homens do seu tempo não estavam preparados para a recepção das suas poesias erótico-amorosas, ocupados que viviam a fingir que não sentiam determinados apetites carnais que a poetisa teve a audácia de exteriorizar, com desinibida franqueza. A hipocrisia ditada pelo pseudo-puritanismo burguês, suscetibilizada com a desusada liberdade de expressão de Florbela, não poderia ser tolerante com a exposição de vivências íntimas feitas pela poetisa.
Florbela Espanca merece destaque especial, não só pelo incontestável valor estético de sua obra, como pela ousadia com que desbravou os caminhos na selva bruta dos tabus culturais e religiosos de sua época, para a expressão do amor em sua totalidade. A duras penas, conquistou a liberfdade de dar voz aos sentidos, às pulsões do desejo, à sensualidade e à intensidade erótica que subjazem e são adstritas à experiência física do amor carnal, da vivência da paixão.
Ela libertou o discurso erótico da mulher, mas não libertou o seu corpo, ela expressou mais a tortura do corpo inflamado pelo desejo, a ânsia de completude e de consumação do amor sensual, do amor paixão (Amo-te tanto! E nunca te beijei!...); deseja ser amada e sente-se ignorada (estou junto de ti e não me vês...), lamenta a busca vã de um predestinado “alguém” que curasse as feridas de sua essencial incompletude (alguém que veio ao mundo p´ra me ver / E que nunca na vida me encontrou), esse alguém nunca encontrado que avulta em sua magoada desesperança, como ausência doridamente confundida com a pessoa errada (Agora que te falo, que te vejo / Não sei se te encontrei... se te perdi...) é causa da frustração e tristeza que faz vibrar a lira chorosa de Florbela, dá origem aos tristes cantos nascidos da dramática consciência do desencontro irremediável, da permanência da solidão, da certeza de amar um ser sem rosto, gerado por seu desesperado anseio de ser amada (Aonde estão as linhas do teu rosto? )
No poema inicial de Charneca em flor, dado a seguir, a ânsia de libertação e a busca de autoconhecimento são plenamente manifestadas. Nele a autora expressa, com extrema delicadeza, o ritual do amor carnal, desde a serena perturbação inicial do jogo amoroso, até a culminância da pulsão do desejo, levando ao êxtase, ao clímax, à plenitude do prazer.

Enche o meu peito, num encanto mago,
O frêmito das coisas dolorosas...
Sob as urzes queimadas nascem rosas...
Nos meus olhos as lágrimas apago...

Anseio! Asas abertas! O que trago

Em mim? Eu oiço bocas silenciosas
Murmurar-me as palavras misteriosas
Que perturbam meu ser como um afago!

E nesta febre ansiosa que me invade

Dispo a minha mortalha, o meu burel,
E, já não sou, Amor, sóror Saudade...

Olhos a arder em êxtase de amor,

Boca a saber a sol, a fruto, a mel:
Sou a charneca rude a abrir em flor!


No soneto abaixo, a poetisa oferece mais um texto que tematiza a experiência prazerosa da liberação do corpo feminino, acompanhada de todo o ritual do transbordamento sensual e do prazer vivido e fruído em sua plenitude, através do processo da sensibilização erótica do corpo, em que todos os sentidos se conjugam de forma totalizadora. Mas é tudo devaneio do desejo, pois os tercetos revelam a solidão, a frustração do amor não correspondido, a tristeza e... nada mais:

Frêmito do meu corpo a procurar-te,
Febre das minhas mãos na tua pele
Que cheira a âmbar, a baunilha e a mel,
Doido anseio dos meus braços a abraçar-te,

Olhos buscando os teus por toda a parte,

Sede de beijos, amargor de fel,
Estonteante fome, áspera e cruel
Que nada existe que a mitigue e a farte!

E vejo-te tão longe! Sinto a tua alma

Junto da minha, uma lagoa calma,
A dizer-me, a cantar que me não amas...

E o meu coração, que tu não sentes,

Vai bolando ao acaso das correntes,
Esquife negro sobre um mar de chamas...


No soneto Volúpia, do livro Charneca em Flor, é o prazer provocado pelo toque das mãos, pelo tato que arrepia o corpo com frêmitos vibrantes.

No divino impudor da mocidade,
Nesse êxtase, pagão que vence a sorte,
Num frêmito vibrante de ansiedade,
Dou-te o meu corpo prometido à morte!

A sombra entre a mentira e a verdade...

A nuvem que arrastou o vento norte...
Meu corpo! Trago nele um vinho forte...
Meus beijos de volúpia e de maldade!

Trago dálias vermelhas no regaço...

São os dedos do sol quando te abraço,
Cravados no teu peito como lanças!

E do meu corpo os leves arabescos

Vão-te envolvendo em círculos dantescos
Felinamente, em voluptuosas danças...


A poesia de Florbela soma-se à de Judite Teixeira, sua contemporânea, como pontos de partida para “a erupção da linguagem enterrada da paixão”, significando a abertura dos caminhos, a fertilização do terreno onde se fincariam as raízes da poesia erótica feminina na literatura portuguesa.

Autora: Zenóbia Collares Moreira .(Itinerário da poesia feminina portuguesa: Século XX... )




19 de dezembro de 2015

As duas vertentes da lírica de Camões

   
Sem ser discrepante ou contraditório, Camões organiza a sua lírica através de duas vertentes, ou seja, uma que se volta para a expressão do amor sensual, com todos os males que lhe são inerentes, fruto da experiência do poeta, e de outra que se orienta para a expressão do amor idealizado, haurido na lição neoplatônica. Essa contraditória situação não parece ter passado despercebida ao poeta, que, em uma das suas canções, alude às duas tendências amorosas que  rivalizam e disputam o espaço em sua expressão poética. Para ele, o amor carnal “fraquezas são do corpo que é da terra, / mas não do pensamento, que é divino, enquanto o amor platônico é efeito da alma; [...] está no pensamento como idéia”.
No soneto que se segue, as duas concepções de amor são postas em evidência pelo poeta. A análise que ele faz do sentimento amoroso mostra este ora como puro sentimento e aspiração espiritual, conforme o modelo petrarquiano, ora como rebaixamento desse sentimento, que se revela maculado na medida em que se transmuda em desejo de fruição sensual:

Pede-me o desejo, Dama, que vos veja,
não entende o que pede, está enganado.
É este amor tão fino e tão delgado
que, quem o tem, não sabe o que deseja.

Não há cousa, a qual natural seja,
que não queira perpétuo seu estado;
não quer logo o desejo desejado,
por que não falte nunca onde sobeja.

Mas este puro afecto em mim se dana
que, como a grave pedra tem por arte
o centro desejar da Natureza.

Assim o pensamento (pola parte
vai tomar de mim terreste humana)
foi, Senhora, pedir esta baixeza.

A leitura do soneto confirma, portanto, a coexistência de duas formas de vivenciar o amor pelo poeta que são absolutamente opostas e inconciliáveis: uma que radica numa forma idealizada de amor platônico, outro derivado da própria experiência: ambos tão divergentes, tão opostos como o são a alma e o corpo, as exigências da carne e as solicitações do espírito. Nos quartetos, o poeta analisa seus impulsos eróticos, na tentativa de convencer-se de que “o desejo [...] não entende o que pede, está enganado [...] não sabe o que deseja”. Contudo, logo no primeiro terceto, irrompe um verso portador de um outro discurso, que parece postergar ou mesmo contradizer a reflexão anterior do poeta: “Mas este puro afecto em mim se dana”, ou seja, em mim não encontra sustentação, se avilta, se aniquila.
Vale salientar que essa contradição do sentimento amoroso vivenciado pelo poeta, esse conflito interior entre o anseio de um sentimento amoroso puro, espiritual e o desejo de satisfazer o apelo dos sentidos, essa dupla e antinômica postura que ele assume perante o amor, tudo isso é muito peculiar à lírica camoniana e muito típico do Maneirismo.