18 de outubro de 2020

Erotismo e sensualidade na poesia de Cruz e Souza

                                                   


DILACERAÇÕES

Ó carnes que eu amei sangrentamente,
ó volúpias letais e dolorosas,
essências de heliotropos e de rosas
de essência morna, tropical, dolente...

Carnes, virgens e tépidas do Oriente
do Sonho e das Estrelas fabulosas,
carnes acerbas e maravilhosas,
tentadoras do sol intensamente...

Passai, dilaceradas pelos zelos,
através dos profundos pesadelos
que me apunhalam de mortais horrores...

Passai, passai, desfeitas em tormentos,
em lágrimas, em prantos, em lamentos
em ais, em luto, em convulsões, em dores...

Esse soneto  é um belo e típico exemplo do erotismo maldito de Cruz e Sousa. Note que ele faz, na primeira estrofe, uma invocação, ainda que vaga, a carnes que amou “sangrentamente”.
Se unirmos essa ideia ao título do poema e aos sinônimos em gradação da última estrofe, descobriremos uma mistura entre amor, dor e sofrimento.
Estaria o poeta expressando seus impulsos sádicos? Ou estaria relatando a perda da virgindade? Difícil descobrir, já que se assume aqui o típico tom impreciso, vago dos simbolistas.

ENCARNAÇÃO

Carnais, sejam carnais tantos desejos,
Carnais, sejam carnais tantos anseios,
Palpitações e frêmitos e enleios,
Das harpas da emoção tantos arpejos...

Sonhos, que vão, por trêmulos adejos,
À noite, ao lugar, entumescer os seios
Lácteos, de finos azulados veios
De virgindade, de pudor, de pejos...

Sejam carnais todos os sonhos brumos
De estranhos, vagos, estrelados rumos
Onde as Visões do amor dormem geladas...

Sonhos, palpitações, desejos e ânsias
Formem, com claridades e fragrâncias,
A encarnação das lívidas Amadas! 

 Enfatizando a temática sexual, esse soneto mostra a violenta atração do poeta por imagens de forte sensualidade, repetidas vezes, como nos versos: “Carnais, sejam carnais tantos desejos”. Essa carnalidade explícita é suavizada na figura das “lívidas Amadas”, embora reforcem a sua obsessão pela cor branca e por tudo aquilo que lhe sugere brancura: “...os seios lácteos, de finos e azulados veios...”. A imagem se completa com a sinestesia provocada pelos versos: “sonhos, palpitações desejos e ânsias / Formem, com claridades e fragrâncias...”. A cor e o cheiro se fundem como elemento essencial do erotismo – cujo desejo nunca foi plenamente realizado.

3 de janeiro de 2020

O formato Mulher na lírica feminina modernista



"Diferente me concebo e só do avesso
O formato mulher se me acomoda."
(Luísa Neto Jorge)

A partir dos anos quarenta do século XX, as poetisas começaram a ser uma presença marcante nos domínios do Modernismo português, partilhando um espaço até então ocupado predominantemente por poetas do sexo masculino. Aos poucos, o meio literário começou a ser invadido por figuras notáveis que se estreavam nas letras sob a ovação da crítica e do público leitor. 
Incluídas em revistas ou à margem delas, as poetisas irromperam na cena literária portuguesa do século XX não só em quantidade surpreendente como em qualidade excepcional. Dentre elas são dignas de nota, especialmente as que, com suas obras não apenas defenderam a qualidade do que produziam, como impuseram o reconhecimento da maioridade estética da poesia feminina e legitimaram o direito à cidadania das mulheres no Parnaso Lusitano. 
Nas obras destas poetisas, além da evidente identificação com as “novidades” estéticas e temáticas trazidas ou ressuscitadas pela revolução modernista, avulta a retomada do discurso erótico inaugurado no lirismo feminino português por Florbela Espanca e Judith Teixeira. 
Tal retomada, porém, não significa necessariamente uma consciente continuação do que já fora feito pelas duas poetisas. Talvez deva-se mais a uma tomada de consciência por parte das mulheres do quanto ainda havia de repressão no que toca a expressão da sexualidade feminina, seja na vivência íntima de cada uma, seja do próprio discurso literário, amordaçado para qualquer manifestação erótica por parte dos ideólogos e defensores da moral e dos bons costumes do regime salazarista. 
As feministas portuguesas, dentre as quais militavam várias poetisas e escritoras, foram as primeiras a correrem o risco de desafiar a censura oficial, como Natália Correia com a Antologia da poesia erótica e satírica (1966), que lhe valeu uma ordem de prisão sob a acusação, pela justiça salazarista, de organizar e publicar uma obra pornográfica. 
O rumoroso escândalo envolvendo a escritora em vez de provocar um recuo por parte dos escritores de ambos os sexos, incluídos na referida antologia, resultou num estimulo à transgressividade e à rebeldia, não importando, principalmente às ousadas poetisas, se suas obras seriam confiscadas ou não pela polícia. Tanto assim foi que, em 1974, Maria Teresa Horta, Maria Isabel Barreno e Maria Velho Costa, tiveram a ousadia de publicar o romance As novas cartas portuguesas, no qual as três autoras procuravam resgatar a sexualidade reprimida de Sóror Mariana Alcoforado. Pelo atrevimento, as três escritoras tiveram que enfrentar o processo das “Três Marias”, como ficou conhecido, levantado pelos os censores oficiais. Todavia, no mesmo ano, Maria Teresa Horta publicou o seu livro de poesias – Nossa senhora de mim – que lhe rendeu novos problemas com a censura oficial.
A luta das feministas pela emancipação das mulheres, a consciência reivindicatória de direitos paritários aos dos homens, que tinham nestas escritoras ardorosas militantes, subjazem às suas audácias literárias. 
As poetisas das derradeiras décadas do século XX já não se adequavam ao desgastado figurino da poesia confessional, da expressão sentimental, mas das vezes voltado para a retórica da infelicidade, da dor e das lágrimas. A poesia que surgiu da geração de mulheres surgida após a revolução modernista, nutrira-se na seiva de uma consciência mais aguçada acerca da realidade do amor, da verdade do corpo, do direito de ser mulher e, principalmente, da urgência de um grito de independência, de busca da plena liberdade de expressão. O lirismo feminino assumiu uma dimensão vivencial, revelou-se na plenitude de sua humanidade e temporalidade. Esta poesia quase não fala de dor, fala de amor, de prazer, de felicidade. Nela a expressão do amor sensual é uma “festa do corpo”, como testemunha Rosa Lobato de Farias:

Outra coisa que o corpo há quem conheça.
Eu não. Somente nele me cumpro viva.
Poema, beijo, estrela, afago, intriga
só no corpo me são pés e cabeça.

E coração também que às vezes teça
Razão de me saber mais que a medida
Nessa trágica trama tão antiga
A que chamam ficar de amor possessa.

E é de novo poema, beijo, afago.
É de novo no corpo que te trago
A exótica festa da nudez

E tudo quanto sinto e quanto penso
Toma corpo no corpo a que pertenço
E aqui estou: de barro, como vês.

Derrubadas as barreiras da interdição, implodidos os códigos da repressão à expressão da sexualidade, dificilmente a linguagem poética feminina voltaria a submeter-se aos rigores da repressão e da censura.



25 de julho de 2016

Triunfo Supremo, soneto de Cruz e Sousa



Quem anda pelas lágrimas perdido,
Sonâmbulo dos trágicos flagelos,
Não quem deixou para sempre esquecido
O mundo e os fáteis ouropéis mais belos.

Não quem ficou do mundo redimido,
Expurgado dos vícios mais singelos,
E disse a tudo o adeus indefinido
E desprendeu-se dos carnais anelos!

São quem entrou por todas as batalhas
As mãos e os pés e o flanco ensanguentado,
Amortalhado em todas as mortalhas.

Quem florestas e mares foi rasgando
E entre raios, pedradas e metralhas,
Ficou gemendo mas ficou sonhando !

Neste soneto, de modo belíssimo, Cruz e Sousa coloca a capacidade de sublimação do ser humano e a capacidade de vencer tudo aquilo que foi na sua vida realidade: “Quem anda pelas lágrimas perdido, sonâmbulo dos trágicos flagelos…” Aqui também, do ponto de vista literário, estão todos esses valores que se encontram na poesia do Simbolismo.
Cruz e Sousa tem uma junção única na poesia brasileira – talvez Afonso Guimarães, seu companheiro de poesia simbolista, também o tenha -, uma fusão indefinível entre o Romantismo, estilo anterior a ele, o Simbolismo, sua marca, e o Parnasianismo.
O Parnasianismo é contemporâneo do Simbolismo. O Parnasianismo busca a pureza da forma, a palavra como expressão exclusiva da beleza. Inclusive, critica-se no Parnasianismo o predomínio da forma até sobre o tema, o conteúdo. E, no entanto, o Parnasianismo é um dos momentos mais elevados da poética brasileira.
O Modernismo, que se voltou violentamente contra esse estilo de poesia em 1922, negava ao verso a grande eloquência, negava ao verso o direito à busca da beleza pura, negava ao verso a forma estrita do soneto, a forma estrita da métrica, a forma estrita da rima, porque buscava libertá-lo do que chamava peias que o impediam de expandir-se do ponto de vista da expressão. A verdade é que o Simbolismo abre novos caminhos, como é verdade que esse tempo faz uma poesia absolutamente notável.