17 de julho de 2010

Um poema de Álvaro de Campos: "Apontamento".




Apontamento

A minha alma partiu-se como um vaso vazio.
Caiu pela escada excessivamente abaixo.
Caiu das mãos da criada descuidada.
Caiu, fez-se em mais pedaços do que havia loiça no vaso
Asneira? Impossível? Sei lá!

Tenho mais sensações do que tinha quando me sentia eu.
Sou um espalhamento de cacos sobre um capacho por sacudir.
Fiz barulho na queda como um vaso que se partia.
Os deuses que há debruçam-se do parapeito da escada.
E fitam os cacos que a criada deles fez de mim.

Não se zangam com ela.
São tolerantes com ela.
O que era eu um vaso vazio?
Olham os cacos absurdamente conscientes,
Mas conscientes de si mesmos, não conscientes deles.
Olham e sorriem.

Sorriem tolerantes à criada involuntária.
Alastra a grande escadaria atapetada de estrelas.
Um caco brilha, virado do exterior lustroso, entre os astros.
A minha obra? A minha alma principal? A minha vida?
Um caco.
E os deuses olham-no especialmente, pois não sabem por que ficou ali.


COMENTÁRIO

O título do poema afirma-se como anotação, “apontamento” de um momento da sua vida, caracterizada pela fragmentação e por frustrante desilusão. O poeta mostra uma imagem extremamente negativa de si mesmo, usando a metáfora de um vaso vazio, portanto inútil, que a empregada deixa cair e despedaçar-se na escada atapetada. A imagem dos cacos espalhados no tapete metaforiza a fragmentação, a dispersão e a natureza múltipla da alma do poeta.
Pertencente à fase depressiva de Campos, “Apontamentos” revela o sentimento de desilusão, de falência do ser perante uma vida tornada nula e irrealizada. A condição multifacetada de sua alma leva-o ao sentimento de perda da unidade, da identidade e à sensação de estar perdido, de não ser ninguém. O poeta sabe que a unidade perdida, despedaçada já não pode ser restaurada. Portanto, a inteireza do eu, a sua unidade está perdida.
Os cacos dispersos metaforizam a alma fragmentada do sujeito poético. Tais fragmentos não passam de cacos sem nenhuma serventia. Apenas um caco sobressai: o que “brilha, virado do exterior lustroso, entre os astros” (v. 19), despertando no poeta indeciso questionamento: “A minha obra? A minha alma principal? A minha vida? / Um caco. / E os deuses olham-no especialmente, pois não sabem por que ficou ali”. Neste questionamento fica implícito que, apesar da indiferença e do desdém dos deuses, alguma coisa de quem se sente “um espalhamento de cacos sobre um capacho por sacudir", permanece.
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Zenóbia Collares Moreira Cunha


                                     




8 de julho de 2010

O Adeus de Tereza – Castro Alves


Antônio Frederico de Castro Alves, natural da Bahia, nasceu em 1847 e faleceu, aos 24 anos de idade, em 1871.

Duas vertentes se distinguem na poesia de Castro Alves: a feição lírico-amorosa, mesclada da sensualidade e a feição social e humanitária, em que alcança momentos de fulgurante eloqüência épica. Como poeta lírico, caracteriza-se pelo vigor da paixão, pela expressão da sensualidade, a intensidade com que exprime o amor, como desejo, frêmito, encantamento da alma e do corpo.
Enquanto poeta social, extremamente sensível às inspirações revolucionárias e liberais do século XIX, Castro Alves viveu com intensidade os grandes episódios históricos do seu tempo e foi, no Brasil, o anunciador da Abolição e da República, devotando-se apaixonadamente à causa abolicionista, o que lhe valeu a antonomásia de "Cantor dos escravos".

A vez primeira que eu fitei Tereza,
Como as plantas que arrasta a correnteza,
A valsa nos levou nos giros seus…
E amamos juntos… E depois na sala
“Adeus” eu disse-lhe a tremer co’a fala…
E ela, corando, murmurou-me: “adeus.”


Uma noite… entreabriu-se um reposteiro…
E da alcova saía um cavaleiro
Inda beijando uma mulher sem véus…
Era eu… Era a pálida Teresa!
“Adeus” lhe disse conservando-a presa…
E ela entre beijos murmurou-me “adeus!”

Passaram tempos… sec’los de delírio
Prazeres divinais… gozos do Empíreo…
… Mas um dia volvi aos lares meus.
Partindo eu disse — “Voltarei!… descansa!…”
Ela, chorando mais que uma criança,
Ela em soluços murmurou-me: “adeus!”

Quando voltei… era o palácio em festa!…
E a voz d’Ela e de um homem lá na orquestra
Preenchiam de amor o azul dos céus.
Entrei!… Ela me olhou branca… surpresa!
Foi a última vez que eu vi Teresa!…
E ela arquejando murmurou-me: “adeus!”


COMENTÁRIO

Castro Alves revolucionou e inovou a expressão do amor, libertando-a da herança clássica e platonizante, em vigor no século XIX, que não admitia ousadias que ultrapassassem a manifestação do amor sentimento, puro e sem apelo carnal.

O poema “O adeus de Teresa”, exemplifica bem a novidade expressiva do poeta que introduz uma nova concepção do amor na lírica romântica brasileira. Em sua poesia irrompe, sem disfarces, uma inovadora lírica impregnada de erotismo, de sensualidade, sem precedentes no discurso poético novecentista. Cabe, portanto, a Castro Alves o mérito de ter aberto os caminhos para uma profunda mudança na concepção do amor na temática da poesia produzida no Brasil.

Nesse poema, o poeta fala de um amor vivido, realizado em plenitude e paixão. Vale observar as repetições, ao longo do poema, da palavra “adeus” e a carga expressiva que ela vai revestindo a cada despedida. Na primeira, temos uma despedida feita sob o impacto de grande emoção: “Adeus eu disse-lhe a tremer co´a fala e Ela, corando, murmurou-me: adeus”. Esta é a típica despedida de um casal enamorado, latejando de paixão.

Na segunda despedida ocorre após uma noite de tórrido amor: “Adeus” lhe disse conservando-a presa…/ E ela entre beijos murmurou-me “adeus!” Trata-se de um adeus temporário, em plena vivência da paixão que os une.

A terceira vez que se disseram adeus foi antes do eu-lírico viajar, prometendo voltar. Este “adeus” assume uma carga mais dramática, mais emocional: “Partindo eu disse — “Voltarei!… descansa!…/ Ela, chorando mais que uma criança, / Ela em soluços murmurou-me: “adeus!” Afastado o amante, Teresa é dominada por uma nova paixão e nela se aventura. O antigo amante retorna e reencontra-a numa festa acompanhada de outro homem, com o qual canta junto à orquestra ("a voz d’Ela e de um homem lá na orquestra / Preenchiam de amor o azul dos céus... / “Entrei!… Ela me olhou branca… surpresa! / Foi a última vez que eu vi Teresa!/ E ela arquejando murmurou-me: “adeus!”

Teresa, escapando ao modelo tradicional da mulher apaixonada, recatada e submissa que permanece fiel a espera do homem amado, afirma-se como uma criatura independente, livre que busca satisfazer seus desejos e prazeres. Ela é bem diferente do perfil feminino retratado pelos demais poetas contemporâneos de Castro Alves. Tereza, volúvel e infiel, logo substituiu o homem a quem dissera amar, por um outro ao qual se entrega com paixão. Assim, a última estrofe assinala o rompimento do poeta com o cânone do Romantismo, na medida em que é o homem a vítima do abandono, da rejeição e não mais a mulher. Há, portanto, uma inversão de papéis típicos do elemento masculino, como seduzir, possuir e abandonar, na medida em que é a mulher quem, após o longo período de abandono, sente-se autorizada a trair e desprezar o seu sedutor, entregando-se a uma nova paixão.

Este ato de Teresa constitui a principal diferença que se estabelece entre ela e as outras mulheres que vimos nos textos românticos dos nossos poetas. Teresa nada tem de Penélope, não é o tipo de mulher que fica eternamente à espera de seu único, grandioso e eterno amor. Não... Decididamente, ela é uma mulher ousada, de espírito realista, transgressiva, que enfrenta preconceitos, ignora censuras e despreza as normas cerceadoras da liberdade feminina, vigentes em seu tempo, assumindo a direção da própria vida e buscando a felicidade almejada e julgada legítima.

O poeta cria, assim, um desfecho surpreendente, avançado para a sua época e inovador para um poema do período romântico, da mesma forma que retrata a mulher de forma ousada, desenvolta, sensual, bem oposta ao modelo de mulher pura, reservada e recatada consagrado pelos poetas inscritos no Romantismo.
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Zenóbia collares Moreira Cunha



6 de julho de 2010

Fernando Pessoa (ortônimo): Tudo o que faço e medito.


Tudo o que faço ou medito
Fica sempre pela metade,
Querendo, quero o infinito.
Fazendo, nada e' verdade.

Que nojo de mim me fica
Ao olhar para o que faço!
Minha alma e' lúcida e rica,
E eu sou um mar de sargaço ---

Um mar onde bóiam lentos
Fragmentos de um mar de alem...
Vontades ou pensamentos?
Não o sei e sei-o bem.


COMENTÁRIO

O sujeito poético neste poema procura auto-analisar-se com a mesma agudez perceptiva que o caracteriza ao longo de sua obra, num esforço tenaz em busca do auto–conhecimento. É evidente, logo nos dois primeiros versos, o sentimento de irrealização, de fracasso, do ser que não consegue realizar em plenitude seus propósitos: “Tudo o que faço ou medito / Fica sempre pela metade”.
Apesar do seu querer ser ilimitado, reconhece que nada faz para atingir suas metas. Daí, o seu desprezo por si mesmo, quando toma consciência da nulidade dos seus atos, da debilidade da sua vontade.
Ao lançar seu olhar para dentro de si mesmo, encontra sua “alma lúcida e rica”, contraposta a um “eu” sem vida, abúlico: “um mar de sargaço”, metáfora da fragmentação e da dispersão do ser, de partes de si mesmo (vontades ou pensamentos?) que o poeta tenta precisar, sem conseguir sair da incerteza, da ambiguidade, restando-lhe apenas a impossibilidade de se conhecer.
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Zenóbia Collares Moreira Cunha


1 de julho de 2010

Carlos Drummond de Andrade: Poesias.

Os poemas de Carlos Drummond de Andrade, que comentaremos a seguir, foram colhidos na antologia intitulada Alguma Poesia, e faz parte do núcleo temático que se articula em torno da dicotomia Província e Cidade grande. Temos, portanto, dois pólos de oposição que se contrapõem e se entrecruzam: o mundo primitivo e provinciano da terra natal, com sua realidade monótona, com seus valores ultrapassados, nos dias de hoje, e a cidade grande com todo o aparato e parafernália trazidos pelo desenvolvimento tecnológico.

Tanto num pólo, quanto no outro, o poeta sustenta uma postura crítica e irônica. Em sua visão particularizada, em ambos tipos de cidade, o indivíduo sofre a opressão e sente o desejo de evadir-se.

CORAÇÃO NUMEROSO

Foi no Rio.
Eu passava na Avenida quase meia-noite.
Bicos de seio batiam nos bicos de luz estrelas inumeráveis.
Havia a promessa do mar e bondes tilintavam,
abafando o calorque soprava no vento
e o vento vinha de Minas.
***
Meus paralíticos sonhos desgosto de viver
(a vida para mim é vontade de morrer)
faziam de mim homem-realejo imperturbavelmente
na Galeria Cruzeiro quente quente
e como não conhecia ninguém a não ser o doce vento mineiro,
nenhuma vontade de beber, eu disse: Acabemos com isso.
***
Mas tremia na cidade uma fascinação casas compridas
autos abertos correndo caminho do mar
voluptuosidade errante do colar
mil presentes da vida aos homens indiferentes,
que meu coração bateu forte,
meus olhos inúteis choraram.
***
O mar batia em meu peito, já não batia no cais.
A rua acabou, quede as árvores?
a cidade sou eu a cidade sou eu
sou eu a cidade meu amor.

O poema, Coração numeroso, tematiza o conflito característico do cidadão provinciano em meio ao bulício da cidade do Rio de Janeiro, muito grande, trepidante e caótica, na qual o forasteiro vive a angústia da solidão.
Nesta cidade coexistem, paralelamente, a natureza esplendorosa e luxuriante com os atropelos do caos urbano: "Havia a promessa do mar e bondes tilintavam".
A angústia da solidão e a nostalgia do poeta em relação à sua cidadezinha interiorana, leva-o à impressão de que a brisa morna que sopra no ar vem de Minas Gerais, a sua terra natal, aquecendo o lugar para onde ele se mudou: "...abafando o calor que soprava no vento / e o vento vinha de Minas".
O sentimento aflitivo de isolamento desperta no poeta a vontade de morrer. Mas a beleza e a sedução da cidade afastaram de si a idéia de aniquilamento. A cidade mesmo sendo um emaranhado de edifícios, mesmo com o febril movimento de pessoas, de carros e bondes, é um convite à vida, à superação das dores; é um presente dado mesmo aos que, após se curarem dos seus males existenciais, tornam-se indiferente, desprezam a sua individualidade e rendem-se ao sortilégio da cidade, sucumbe aos seus encantos, integrando-se nela: "a cidade sou eu / sou eu a cidade / meu amor".
Opondo-se à vida agitada e à turbulência da Cidade grande, o poeta compõe um curto poema que traduz a calmaria e a vida sem novidades numa “cidadezinha qualquer” do interior, no já distanciados anos vinte do século passado, quando foi publicada a antologia onde está incluído.

CIDADEZINHA QUALQUER

Casas entre bananeiras
mulheres entre laranjeiras
pomar amor cantar.
Um homem vai devagar.
Um cachorro vai devagar.
Um burro vai devagar.
Devagar... as janelas olham.
Eta vida besta, meu Deus.

No poema "Cidadezinha qualquer", o poeta traça o esboço da vida monótona e tediosa que levam os habitantes de uma pequena cidade do interior. A expressão da mesmice, do tédio, da falta de novidade, de uma vida sem surpresas, feita de coisas insignificantes está perfeitamente configurada no último verso do poema “Eta vida besta, meu Deus”. Este verso remata, criticamente, o que expressam os versos da segunda estrofe, nos quais ocorre a repetição da palavra "devagar" e da forma verbal “vai”, mimetizando a monotonia tediosa e a vagarosidade da vida provinciana que o poema procura exprimir.
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Zenóbia Collares Moreira Cunha