23 de fevereiro de 2010

O lirismo barroco de Sóror Maria do Céu.

Sóror Maria do Céu nasceu em 1658 e faleceu, já nonagenária, em 1753. Nascida em uma família pertencente à nobreza, aos dezoito anos de idade ingressou no Convento da Esperança, onde chegou a abadessa. Sob o criptônimo Marina Clemência, que se dizia Religiosa franciscana no Convento da Ilha de São Miguel, escreveu, além de poesias, comédias alegórico-morais e hagiográficas para uso didático nos conventos. A fama da poetisa-freira ultrapassou os muros do claustro e as suas obras foram mandadas imprimir com a aprovação e os louvores dos censores do santo Ofício, do Ordinário e do Paço. Fr. José de Oliveira, censor do Ordinário, qualificou Sóror Maria do Céu como “assombro do sexo feminino, inveja do masculino, e admiração de ambos”. A autora deixou uma vasta obra publicada.
A poetisa se afirma, não somente no âmbito do lirismo feminino, como no panorama da literatura seiscentista como uma das poetisas mais bem dotadas no manejo da palavra poética, mantendo um equilíbrio e um comedimento formais nos quais se diluem as excrescências do verso gongórico. Do seu livro Obras Várias e Admiráveis, foi colhido o poema Mortal doença, no qual pode ser observada a habilidade da autora na utilização da metáfora barroca.
O poema, como um todo, se organiza a partir do uso reiterado de metáforas da doença consumidora, ou seja, do significado do pecado por ela representado. O recurso à repetição, tão do gosto barroco, e do gerúndio no final de cada verso da primeira, terceira e quarta estrofes, intensifica o sentido da ação por ele expressa. Fato este decorrente da idéia de sua continuidade, de seu prolongamento no tempo, em contraste com os verbos no tempo presente, utilizados no refrão, acompanhado do advérbio já, conferindo à temporalidade da ação um caráter imediato e definitivo. O paralelismo da construção dos versos e do refrão, tanto confere à noção do pecado um caráter obsessivo, quanto remete para a construção própria das ladainhas, sugerida e reforçada pela construção anafórica do poema:

MORTAL DOENÇA
Na febre do amor próprio estou ardendo,
No frio da tibieza tiritando,
No fastio ao bem desfalecendo,
Na sezão do meu mal delirando,

Na fraqueza do ser vou falecendo,
Na inchação da soberba arrebentando.
Na dureza do peito atormendada,
Na sede dos alívios consumida,

No sono da preguiça amadornada,
No desmaio à razão amortecida,
Nos temores da morte trespassada,
No soluço do pranto esmorecida,

Já morro, já feneço, já termino,
Vão-me chamar o Médico Divino.
Na dor de ver-me assim, vou desfazendo,
Nos sintomas do mal descoroçoando,

Na sezão de meu dano estou tremendo,
No risco da doença imaginando,
No fervor de querer-me enardecendo,
Na tristeza de ver-me sufocando,

Já morro, já feneço, já termino,
Vão-me chamar o Médico Divino.
Vou ao pasmo do mal emudecendo,
À sombra da vontade vou cegando,

Aos gritos do delito emouquecendo,
Na tristeza de ver-me sufocando,
Já morro, já feneço, já termino,
Vão-me chamar o Médico Divino.

Além de escrever na língua materna, a poetisa compôs muitos poemas em castelhano, alguns insertos em sua obra Enganos do Bosque. Dentre eles, chama a atenção o que se segue por sua curiosa construção, espécie de glosa cujos versos do mote vão sendo desmembrados e usados como fecho de cada estrofe:

Cobri-me de flores,
Que muero de amores.
Por que de mi aliento el ayre
No lleve el olor sublime,
 Cobridme 

Sea, porque todo es uno
Alientos de amor y olores
De flores

De azucenas y jasmines
Aqui la mortaja espero,
Que muero.

Si me perguntais de que
Respondo, en dulces rigores:
De amores

Os poemas de Sóror Maria do Céu encontram-se disseminados por textos narrativos em prosa de caráter alegórico como A Preciosa (1731); Enganos do Bosque, Desenganos do Rio (1736-1741), e ainda em um volume que reúne textos diversos e foi publicado com o título de Obras Várias e Admiráveis (1735).
Na Preciosa estão alguns dentre os melhores sonetos e glosas da poetisa, inclusive os que dirige à Clemência, seu alter-ego poético: Já por Clemência deixei/ tudo mais que ela não fosse.../ quero-lhe bem, acabou-se:

Ai! Minha Pastora,
Divina Clemência:
Quem me dera ver-vos
Guardando as ovelhas...
[...]
Quem me dera ver-vos
Entre as montanhezas,
O leite nas bilhas,
E fruta nas cestas,
O suave favo;
E vós nesta oferta
Mais doce que o mel,
Mais branda que a cera.
Ai! Minha Pastora,
Divina Clemência.
[...]
Perguntais-me se é Clemência
Minha pastora feliz?
Sim, sim.
Porque tão depressa amei
Tão depressa respondi,
Sim,sim?
Porque o amor não tem não,
Quem quem ama, só tem sim.

Numa das suas éclogas, Sóror Maria do Céu revela uma outra feliz faceta do seu variado repertório, elogiada pelos estudiosos de sua obra:

Montanheza que foste à fonte,
Como suspeito;
Que trouxeste água nos olhos,
Fogo no peito.
Quem te trocou no caminho,
Serrana dos olhos negros?
Pois te conheço só hoje
Pelo que te desconheço?
Como suspeito
Que encontrastes teus cuidados
A roubar-te tais assossegos.

Suas tentativas de alçar vôos na área da prosa filosófica não foram tão felizes quanto o foi na expressão do seu incontestável talento lírico. Na obra da freira-poeta podem ser observadas duas fases bem distintas e, quiçá, simultâneas: a fase do divino, ou seja, a dos seus escritos religiosos e moralizantes e a fase de expressão do humano, ou seja, a da mulher culta e artista sedenta de expandir a sua humanidade, seus sentimentos e sua visão de mundo.
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Autora:Zenóbia Collares Moreira.



4 de fevereiro de 2010

A tirania de Eros na lírica camoniana


Camões, praticamente, esgotou todas as possibilidades de abordagem do tema amor em sua lírica e em alguns episódios de Os Lusíadas. Homem que amou e foi amado intensamente ao longo da sua tumultuada vida, sofreu as imensas vicissitudes e  fruiu  intensas venturas  que o Amor pode proporcionar ao homem.  Amou com paixão e volúpia mulheres dos vários países por onde o durou a sua peregrinação no exílio, mas padeceu dilacerantes dores,  foi fustigado pelos demônios do ciúme,  passou pelos tormentos das perdas ou da separação da mulher amada no espaço geográfico ou  pela morte, expressando o grito gigantesco que ecoavam sua alma na poesia.
E nenhum outro poeta soube expressar tão bem as dores que lhe deixavam “a alma chagada, toda ela em carne viva”  de forma extraordinariamente  impregnada de  profundo sentimento e de intensa emoção sem jamais resvalar para o sentimentalismo piegas e lacrimejante.
O poeta era um homem sensual, um amante encantado com as graças femininas,  um apaixonado pela Mulher, que sempre valorizou, exaltou e teceu louvores e elogios  tanto em sua  lírica, quanto em seu canto épico, nunca desmerecendo-a, tampouco denegrindo a sua imagem, mesmo quando lhe infligiam  decepções,  desenganos,  traições, abandono  e agônicos sofrimentos.  Assim, a maioria das poesias de Camões são melancólicas,  ensombradas  pelo desencanto, pela amargura, pela desesperança  e pela descrença na felicidade no amor. 
Os sonetos  que selecionei para analisar hoje são os que melhor expressam a temática da  tirania de Amor e do sua força poderosa para subjugar  aos seus caprichos os corações  humanos, mesmo contra a vontade destes. 
 Busque Amor novas artes, novo engenho,
para matar-me, e novas esquivanças,
que não pode tirar-me as esperanças
que mal me tirará o que eu não tenho.

Olhai de que esperanças me mantenho!
Vede que perigosas seguranças!
Que não temo contrastes nem mudanças,
andando em bravo mar, perdido o lenho.

Mas, conquanto não pode haver desgosto
onde esperança falta, lá me esconde
Amor um mal, que mata e não se vê.

Que dias há que na alma me tem posto
um não sei quê, que nasce não sei onde,
vem não sei como, e dói não sei porquê.

Neste soneto, mais uma vez, o poeta focaliza o poder imensurável e inescapável do “Amor” (com A maiúsculo, para indicia-lo como um ser superior: Cupido ou Eros, filho de Vênus), um deus menino, travesso e ardiloso, que trás consigo uma aljava cheia de flechas, com as quais  penetra os corações humanos e os deixam subjugados ao amor.  
De acordo com os conceitos renascentistas, herdados da poética da Antiguidade greco-romana, que transitaram para  os estilos de época maneirista, barroco e neo-clássico, o Amor é uma entidade cruel, que seduz, mortifica, tiraniza e pode matar, porque ele é uma fonte de inevitáveis contradições, de ilusórios enganos e de cruéis desenganos.
No soneto, Amor não desiste de sua pertinaz perseguição ao poeta. Todavia o embate aparenta ser desigual, pois nenhuma das suas artes e artimanhas tem o poder de tirar do poeta o que ele já não possui: A esperança e a crença no amor. Logo na segunda estrofe, o poeta deixa claro que não pode alimentar esperança quem se sente desiludido, sem temores das contradições e das mudanças do Amor, posto está como um náufrago perdido no tumulto do desengano como um barco à deriva em mar proceloso.
No entanto, nos dois tercetos instaura-se a contradição, iniciada coma introdução da adversativa “mas”. O poeta reconhece, então, que nenhum esforço humano é capaz de livrar o homem da tirania de Amor, nada a fará desistir da perseguição ao poeta,  findando por subjugá-lo. Melancolicamente surpreendido constata que penetrou seu coração um mal que aniquila a quem atinge, sem que este se dê conta, que maltrata e é tão intenso, tão inexprimível, que é impossível defini-lo de forma explícita, clara e coerente. Mas, “dias há que na alma me tem posto / um não dei quê, que nasce não sei onde, / vem não sei como, e dói não sei porquê.”
Esta impossibilidade do homem escapar ao Amor e suas contradições, repete-se no conhecido soneto “Amor é um fogo que arde sem se ver”, no qual o poeta tenta exaustivamente definir o amor de forma precisa e clara, sem no entanto conseguir escapar às contradições  que lhe são inerentes.

Amor é um fogo que arde sem se ver,
é ferida que dói, e não se sente:
é um contentamento descontente,
é dor que desatina sem doer.

É um não querer mais que bem querer,
é um andar solitário entre a gente,
é nunca contentar-se de contente;
é um cuidar que ganha em se perder.

É querer estar preso por vontade,
é servir a quem vence o vencedor;
é ter, com quem nos mata, lealdade.

Mas como causar pode seu favor
nos corações humanos amizade,
se tão contrário a si é o mesmo Amor?

Com efeito, em cada verso a face contraditória de Amor irrompe numa sucessão de termos  antitéticos e bipartidos que apenas provam que o Amor não é passível de ser definido, por causa de sua natureza intrinsecamente contraditória.
A única definição a que chega o poeta é a de que, em sua essência, o Amor é, concomitantemente, uma determinada coisa e o seu contrário.  Daí a interrogação com a qual se encerro o soneto: Como poderá o Amor ser algo prazeroso e benéfico para o homem, “se tão contrário a si é o mesmo Amor?”
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Zenóbia Collares Moreira