23 de fevereiro de 2012

Sentimento do Mundo, de Carlos Drummond de Andrade


Sentimento do Mundo, terceiro livro de poesias de Drummond, publicado em 1940, foi o que deu notoriedade ao vate itabirano, consagrando-o como um dos maiores poetas brasileiros de todos os tempos.

Sentimento do Mundo oferece uma espécie de crônica da contemporaneidade na década de quarenta, iniciada sob o peso da segunda guerra mundial. Através de sua cosmovisão concreta e cosmopolita, o poeta se coloca como observador da realidade impactante de um mundo imerso no caos. Seu posicionamento ideológico atravessa todas as poesias deste livro, o mais engajado, politicamente, de sua obra.

Tenho apenas duas mãos
e o sentimento do mundo,
mas estou cheio de escravos,
minhas lembranças escorrem
e o corpo transige
na confluência do amor.
Quando me levantar, o céu
estará morto e saqueado,
eu mesmo estarei morto,
morto meu desejo, morto
o pântano sem acordes.
Os camaradas não disseram
que havia uma guerra
e era necessário
trazer fogo e alimento.
Sinto-me disperso,
anterior a fronteiras,
humildemente vos peço
que me perdoeis.
Quando os corpos passarem,
eu ficarei sozinho
desfiando a recordação
do sineiro, da viúva e do microscopista
que habitavam a barraca
e não foram encontrados
ao amanhecer
esse amanhecer
mais noite que a noite.

Drummond inicia em Sentimento do Mundo uma nova fase em sua poesia e uma nova forma de relacionamento com o leitor, mais cúmplice, mais próxima.
O poema configura-se como uma espécie de mapa da visão-de-mundo particularizada de Drummond, profundamente sombria, invadida por um acentuado pessimismo, dominada por cruel amargura oriunda de uma dolorosa consciência da realidade áspera e dura de um tempo de desoladora destruição, tempo de desesperança, tempo de lutas, de guerra.
Logo na primeira estrofe, o poeta faz referência à sua deficiência física para enfrentar a realidade caótica: “Tenho apenas duas mãos”. Todavia, conta com alguns auxiliares que poderão ajudá-lo a decifrar e a fruir a vida: escravos, lembranças e o mistério do amor. Mas, o sentimento de dispersão e de solidão dificulta ao poeta a decodificação dos enigmáticos códigos existenciais. Impulsionado pelo sentimento de culpa, pede perdão.
Nas última estrofe, composta por dois versos, Drummond projeta sua obscura previsão de um futuro muito tenebroso na qual faz a síntese do seu escatológico sentimento do mundo, de sua amarga visão da vida.
O poema, como um todo, configura-se como uma rigorosa tomada de consciência do poeta, da qual emergem significados relacionados à experiência da solidão, à finitude da vida, à vivência do tempo e do amor.

Por Zenobia Collares Moreira


9 de fevereiro de 2012

A realidade cotidiana na poesia de Ana Luisa Amaral

Não somente a temática erótica que ocupa o espaço poético de Ana Luísa Amaral. 
A temática da realidade quotidiana também transita livre por seus poemas, um quotidiano bem feminino, mas bem distanciado das abordagens feministas, como pode ser observado no poema Ritmos e em outros que virão, a seguir. Em alguns casos, a poetisa ironiza o universo doméstico feminino:*


RITMOS 

E descascar ervilhas ao ritmo de um verso:
a prosódia da mão, a ervilha dançando
em redondilha.
Misturar ritmos em tela apertada: um vira
bem marcado pelo jazz, pas
de deux: eu, ervilha e mais ninguém
De vez em quando o salto: disco sound
o vazio pós-moderno e sem sentido
Ah! Hedónica ervilha tão sozinha
debaixo do fogão! 

As irmãs recuperadas ainda em anos 20
o prazer da partilha: cebola, azeite
blues desconcertantes, metamorfoses em
refogados rítmicos
(Debaixo do fogão 
só o silêncio frio) 

Nas poesias Fingimentos poéticos e Aniversário a poética do avesso é posta em prática, para parodiar textos de Fernando Pessoa. Em Fingimentos poéticos, a autora intertextualisa Autopsicografia: 

FINGIMENTO POÉTICOS 

“finge tão completamente” 
Faz-me falta a tristeza 
para o verso:
falta feroz de amante,
ausência provocando dor maior.
Tristeza genuína, original,
a rebentar entranhas e navios
sem mar. 

Tristeza redundando em mais
tristeza, desaguando em métrica
de cor.
Recorro-me a jornal, mas é 
em vão. A livros russos (largos
e sombrios).
Em provocando rio de depressão,
nem zepellin: balão 
e ervas rente.

Um arrastão sonhando-se 
navio.
Só se for o que diz o que
deveras sente.
A sério: o Zepellin.
Mas coração
combóio cuja corda
se partiu. 

Em "Ás vezes o paraíso", livro publicado em 1998, é a tradição judaico-cristã que é desconstruída, subvertida. Em um dos poemas Caim escapa do castigo indo construir seu próprio “Paraíso” (A leste do paraíso), implodindo, assim, os alicerces de um dos mitos religiosos que mais incide na questão moral, constituindo desde tempos imemoriais um ex-libre da retórica do Bem e do Mal.