21 de julho de 2011

Camilo Pessanha: Violoncelo



Ao longo dos poemas de Clepsidra, o poeta menciona três instrumentos musicais que são associados a diferentes imagens. São eles a flauta, a viola e o violoncelo. O primeiro é associado à uma noção de temporalidade suspensa, o segundo relaciona-se à solidão e o último tem nos movimentos do arco sobre as suas cordas a gênese de inúmeras imagens, notadamente as arquitetônicas, relacionadas com o sentimento de destruição, de ruína, de desmoronamento e de fragmentação, mais das vezes assumindo um sentido metafórico da falência e fragmentação do ser.
A imagem da água corrente, quase sempre, está associada ao passar do tempo metaforizado pelo fluir das águas

*
Chorai arcadas

Do violoncelo!
Convulsionadas,
Pontes aladas
De pesadelo...
*
*
De que esvoaçam,
Brancos, os arcos...
Por baixo passam,
Se despedaçam,
No rio, os barcos.
*
*
Fundas soluçam
Caudais de choro...
Que ruínas, (ouçam)!
Se se debruçam,
Que sorvedouro!...
*
*
Trêmulos astros...
Soidões lacustres... -
Lemos e mastros...
E os alabastros
Dos balaústres!
*
*
Urnas quebradas!
Blocos de gelo... -
Chorai arcadas,
Despedaçadas,
Do violoncelo
*
*
Violoncelo é uma das mais bem conseguidas poesias de Camilo Pessanha, uma obra prima. Nela, o poeta desloca para os objetos inanimados seus estados de alma. O som grave do violoncelo ora provoca, ora expressa uma tristeza sem motivo, estados de alma obscuros, certo mistério pairando no ar. Todavia, o estado de desarmonia interior do eu-lírico não é explicitado de forma clara e direta. É apenas sugerido, principalmente por meio de uma associação intensamente subjetiva que relaciona o som melancólico do violoncelo a uma sensação de sofrimento.

A imagem visual das pontes remete ao duplo sentido da palavra “arcadas”, cujo significado está ligado ao movimento do arco passando sobre as cordas do violoncelo, da mesma forma que significa o conjunto de arcos das pontes (arcadas). Por outro lado, as arcadas remetem à existência de “pontes” que sugerem a presença de um rio, porque o som do violoncelo, no seu gemido contínuo, lembra o correr da água.

Os adjetivos “convulsionadas” e “aladas”, no 3o verso, conferem uma impressão dinâmica e sugerem o vôo do arco nas cordas do violoncelo e o vibrar convulso das mesmas. As duas primeiras estrofes exprimem o tumulto interior do eu-lírico. Logo a seguir, o tom torna-se mais sombrio. A luz branca, espectral das primeiras estrofes apaga-se, o branco dos arcos e a imagem das barcas somem na escuridão noturna, permanecendo apenas o rio, transformado em caudal de sons e de pranto, enquanto as pontes e as barcas submergem, tombam em “ruínas”.

A escuridão da noite que ensombra a penúltima estrofe do poema impede a visão do desmoronamento, da destruição, Somente o ruído produzido pela ponte e pelas barcas, ao se despedaçarem nas águas tumultuadas do rio, pode ser ouvido. Logo depois, o movimento caudaloso das águas serena, forma um lago sobre o qual “trêmulos astros” testemunham a fragmentação dos objetos: restos das barcas naufragadas (lemes e mastros) e o parapeito da ponte (os alabastros/ dos balaústres). A imagem é de desolação, de naufrágio, de tristeza que atravessam o poema, oriunda da reiterada evocação das ruínas, dos abismos, da solidão e de uma atmosfera de morte.
Zenóbia Collares Moreira.


6 de julho de 2011

Fernando Pessoa - Abdicação



Toma-me, ó noite eterna, nos teus braços
E chama-me teu filho. Eu sou um rei
que voluntariamente abandonei
O meu trono de sonhos e cansaços.

Minha espada, pesada a braços lassos,
Em mão viris e calmas entreguei;
E meu cetro e coroa — eu os deixei
Na antecâmara, feitos em pedaços

Minha cota de malha, tão inútil,
Minhas esporas de um tinir tão fútil,
Deixei-as pela fria escadaria.

Despi a realeza, corpo e alma,
E regressei à noite antiga e calma
Como a paisagem ao morrer o dia.

"Abdicação" é um poema que explora um tema recorrente na poesia pessoana - a noite e a solidão. No caso deste poema, a noite simboliza um estado de aflitiva solidão que não era estranho a Pessoa, pois fazia parte do seu viver, tornara-se rotina em seu dia-a-dia.

Todavia, o poema, apesar da tristeza que o atravessa, revela a plenitude de um estado de serenidade absoluta a acompanhar a melancolia do poeta. Talvez isto de deva à natureza da tristeza que o invade: uma tristeza típica de quem se vê despojado de esperança, de quem se deixa esmagar pelo sentimento de irrealização, de falência, e já não tem ânimo para lutar, para resistir. Daí a razão da escolha do titulo dado ao poema, “abdicação”.

Só abdica quem desiste voluntariamente, sem ser pressionado para fazê-lo. Pessoa simplesmente abdica da vida, busca abrigo na noite eterna, (também metáfora da morte), depois de abandonar o seu trono de sonhos irrealizados e de buscas vãs que resultaram em “cansaços” e amarguras. Despida da realeza corpo e alma, o que restou ao eu-lírico foi apenas a solidão, o isolamento e a melancolia.
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Zenóbia Collares Moreira


4 de julho de 2011

Murilo Mendes - Aquarela



O poema “Aquarela” faz parte do livro “O Menino Experimental”, no qual Murilo Mendes deixa de lado a lição haurida nos principais mentores do Modernismo brasileiro: Mário e Oswald Andrade, passando a outra fase de sua obra, mais criativa e inovadora. Sua fértil criatividade trouxe inovações ao seu processo de elaboração poética, bem evidentes tanto na vertente intelectualizada da poesia, quanto nas suas ousadas incursões na área do erotismo e da sensualidade, como evidencia o poema que se segue:

AQUARELA
Mulheres sólidas passeiam no jardim molhado de chuva,
o mundo parece que nasceu agora,
mulheres grandes, de coxas largas, de ancas largas,
talhadas para se unirem a homens fortes.
A montanha lavada inaugura toaletes novas
pra namorar o sol, garotos jogam bola.
A baía arfa, esperando repórteres...

Homens distraídos atropelam automóveis,
acácias enfiam chalés pensativos pra dentro das ruas,
meninas de seios estourando esperam o namorado na janela,
estão vestidas só com uma blusa, cabelos lustrosos
saídos do banho e pensam longamente na forma
do vestido de noiva: que pena não ter decote!
Arrastarão solenemente a cauda do vestido
até a alcova toda azul, que finura!
noite grande encherá o espaço
e os corpos decotados se multiplicarão em outros.
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“Aquarela” chama a atenção pelo explosivo erotismo que irrompe em cada verso. Trata-se de um poema ousadíssimo no que tange a pródiga utilização de imagens eróticas e apelos sensuais, que se superpõem, ensejando estreita, sugestiva e reiterada aproximação significativa entre palavras de sentido lascivo.
Em todos os versos irrompem determinados elementos que funcionam como uma espécie de apelo à luxúria, à celebração do desejo, ao sonho e à plenitude do amor. Erotismo e sensualidade plasmam a linguagem poética, perpassam cada verso, constituindo a união entre os elementos fragmentados do texto.
O sentido do título está plenamente justificado ao longo do poema, pois o que o poeta realiza com as palavras é o que um aquarelista faria com os pincéis: ele pinta com palavras uma aquarela, na medida em que vai descrevendo com muita rapidez as cenas e as personagens que vê após o cessar da chuva que molhara as ruas.
Vale notar que o poeta pula com ligeireza de um assunto para o outro, deixando de lado descrições e pormenores acerca das personagens e cenas que contempla, exatamente como costumam fazer os aquarelistas, por exigência da técnica que os obriga a executarem com extrema ligeireza as pinceladas.
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Zenóbia Collares Moreira.