29 de dezembro de 2013

Álvaro de Campos. Lisbon Reviseted ( de 1926)



Nada me prende a nada!
Quero cinquenta coisas ao mesmo tempo.
Anseio com uma angústia de fome de carne.
O que não sei que seja...
Definidamente pelo indefinido...
Durmo irrequieto, e vivo num sonho irrequieto
De quem dorme irrequieto, metade a sonhar.

Fecharam-me todas as portas abstractas e necessárias.
Correram cortinas de todas as hipóteses que eu poderia ver na rua.
Não há na travessa achada número de porta que me deram.
Acordei para a mesma vida para que tinha adormecido, 
Até os meus exércitos sonhados sofreram derrota.
Até a vida só desejada me farta - até essa vida...

Compreendo a intervalos desconexos; 
Escrevo por lapsos de cansaço;
E um tédio que é tão do tédio arroja-me à praia.
Não sei que destino ou futuro compete à minha angústia sem leme;
Não sei que ilhas do Sul impossível aguardam-me náufrago;
Ou que palmares de literatura me darão ao menos um verso.

Não, não sei isto, nem outra coisa, nem coisa nenhuma...
E, no fundo do meu espírito, onde sonho o que sonhei,
Nos campos últimos da alma onde memoro sem causa
(E o passado é uma névoa natural de lágrimas falsas),
Nas estradas e atalhos das florestas longínquas
Onde supus o meu ser,
Fogem desmantelados, últimos restos
De ilusão final,
Os meus exércitos sonhados, derrotados sem ter sido,
As minhas coortes por existir, esfaceladas em Deus.

Outra vez te revejo, 
Cidade da minha infância pavorosamente perdida...
Cidade triste e alegre, outra vez  sonho aqui...
Eu? Mas sou eu mesmo que aqui vivi, e aqui voltei,
E aqui tornei a voltar, e a voltar,
E aqui de novo torei a voltar?

Ou somos todos os Eu que estive aqui ou estiveram,
Uma série de cotas-entes ligadas por um fio-memória,
Uma série de sonhos de mim de alguém de fora de mim?

Outra vez te revejo,
Com o coração mais longínquo, a alma menos minha.
Outra vez te revejo - Lisboa e Tejo e tudo -,
Transeunte inútil de ti e de mim,
Estrangeiro aqui como em toda a parte,
Casual na vida como na alma,
Fantasma a errar em salas de recordações,
Ao ruído dos ratos e das tábuas que rangem
No castelo maldito de ter que viver...

Outra vez te revejo,
Sombra que passa através de sombras, e brilha
Um momento a uma luz fúnebre desconhecida,
E entra na noite como um rastro de barco se perde
Na água que deixa de se ouvir...

Outra vez te revejo,
Mas, ai, a mim não me revejo!
Partiu-se o espelho mágico em que me revia idêntico,
E em cada  fragmento fatídico vejo só um bocado de mim...
Um bocado de ti e de mim!...


O poema se desenvolve em torno do drama do eu-lírico frustrado e desiludido de tudo, que retorna à sua cidade e revê-se nela, identifica-se com ela, tão fantasma como ele. Desenvolvido em duas partes, nos primeiros trinta versos é focado o eu destroçado do poeta, daí até o final nos é dada a visão subjetiva e amarga que ele tem de Lisboa. 
Este poema se insere na terceira fase da produção poética de Álvaro de Campos, a fase depressiva, voltando a expressar a angústia do eu fragmentado e a saudade  de uma infância perdida. É, afinal, o problema metafísico de Pessoa ortônimo, o problema da identidade do eu que regressa à alma de Álvaro de Campos, esse "fantasma a errar em salas de recordações/ ...Do castelo maldito de ter que reviver..."
Tanto o problema da vida como o problema do eu acompanharam o poeta  nesse seu atormentado passeio pela cidade revisitada, carregado de desilusão e pessimismo.



23 de dezembro de 2013

Fernando Pessoa: "Natal... Na província neva".


O poema "Natal... Na província neva" , de Fernando Pessoa publicado em 1928, no Diário de Notícias Ilustrado. Trata-se efectivamente de um poema evocativo da época natalícia, pois foi publicado em Dezembro de 1928, e como bem sabemos Dezembro é o mês do Natal.

Natal... Na província neva.
Nos lares aconchegados,
Um sentimento conserva
Os sentimentos passados.

Coração oposto ao mundo,
Como a família é verdade!
Meu pensamento é profundo,
Stou só e sonho saudade.

E como é branca de graça
A paisagem que não sei,
Vista de trás da vidraça
Do lar que nunca terei!

Mas a evocação que Pessoa faz é triste e melancólica. Isto porque o Natal é o período por excelência das reuniões familiares e Pessoa está só e sem família. A primeira estrofe do poema reúne esses mesmos sentimentos tão estranhos ao poeta: os "lares aconchegados" e "os sentimentos passados". Ele imagina as famílias na província, reunidas, conseguindo na sua unidade familiar continuar as tradições natalícias.
A segunda estrofe, porém, é uma em que Pessoa já não consegue esconder o que ele próprio sente perante essa visão das famílias reunidas, em tranquilidade. O coração de Pessoa não se reconhece nesses sentimentos, ele está "oposto ao mundo", na medida que ele próprio está afastado dos outros, só e frio. Mas mesmo assim ele reconhece aquela verdade universal, que a "família é verdade". Trata-se afinal de uma confissão horrível que ele faz para si mesmo: que mais valia ter uma família do que as suas pesquisas, a sua poesia obscura.
Pessoa ao longo da sua vida perseguirá sempre a "Verdade". E ele aqui vê que existem vários tipos de verdade: aquela verdade solitária que ele persegue pelos seus estudos, e a verdade simples, da família, da tranquilidade natalícia e de todas as festas comunais.
Pessoa sozinho tem um pensamento profundo e está só. Está só e perante aquela "outra verdade"; que é a família.
No entanto, ele sabe que lhe está inacessível essa "outra verdade". Ele não pode estar com a família. A sua mãe morrera em 1925 e esse tinha sido o "golpe final" na sua esperança de ter uma família. Por isso mesmo ele expressa na última estrofe essa esperança perdida:
"E como é branca de graça / A paisagem que não sei, / Vista de trás da vidraça / Do lar que nunca terei!". A paisagem que ele não sabe, por detrás da vidraça do lar que nunca terá - tudo isto é um futuro que ele sabe nunca poderá ter. O poema acaba com esta consciência do impossível. Lá na província, há lares aconchegados onde tudo isto é uma realidade, em que tudo isto é "verdade". Mas esta é uma "verdade" inacessível a Fernando Pessoa. Para ele resta apenas a solidão, e a verdade oculta das suas pesquisas poéticas.

Autor do comentário: Lima Reis


4 de dezembro de 2013

Adormecida, poesia de Castro Alves

Na poesia amorosa de Castro Alves ocorre uma superação do egocentrismo que se dá, principalmente, por uma visão menos idealizada da mulher. O que não quer dizer que não há idealização da figura feminina. O fato é que, embora em alguns poemas ainda frágil e pura, destaca-se em Castro Alves uma mulher objetiva, concreta, que corresponde ao desejo do amado, que tem, ela mesma, esse desejo, e que luta pela própria felicidade. Se em alguns textos ainda existe um voyerismo (como em Adormecida), em muitos outros há a realização daquilo que, para os ultra-românticos ficou só na imaginação e para os indianistas não acontecia porque não havia correspondência amorosa. 

Adormecida

Uma noite, eu me lembro... Ela dormia
Numa rede encostada molemente...
Quase aberta o roupão... solto o cabelo
E o pé descalço do tapete rente.

‘Stava aberta a janela. Um cheiro agreste
Exalavam as silvas da campina...
E ao longe, um pedaço do horizonte,
Via-se a noite plácida e divina.

De um jasmineiro os galhos encurvados,
Indiscretos entravam pela sala,
E de leve oscilando ao tom das auras,
Iam na face trêmulos – beijá-la.

Era um quadro celeste!... A cada afago
Mesmo em sonhos a moça estremecia...
Quando ela serenava... a flor beijava-a...
Quando ela ia beijar-lhe... a flor fugia...

Dir-se-ia que naquele doce instante
Brincavam duas cândidas crianças...
A brisa, que agitava as folhas verdes,
Fazia-lhe ondear as negras tranças!

E o ramo ora chegava ora afastava-se...
Mas quando a via despeitada a meio,
P’ra não zangá-la... sacudia alegre
Uma chuva de pétalas no seio...

Eu, fitando esta cena, repetia
Naquela noite lânguida e sentida:
“Ó flor! – tu és a virgem das campinas!
“Virgem! – tu és a flor da minha vida!...”

O poeta inicia o poema criando, através da percepção subjetiva, a imagem da mulher amada. Ela é mostrada envolta em uma aura de sensualidade, construída através do uso dos adjetivos (encostada molemente, quase aberto, solto, descalço). Por sua vez, os elementos noite, rede, roupão, cabelo e tapete, criam o ambiente íntimo desta mulher. 
A seguir o poeta utiliza elementos da natureza para insinuar o clima de sensualidade e encantamento que emana dessa mulher. Todavia, ao personificar os elementos da natureza (galhos encurvados / indiscretos entravam pela sala.../ Iam na face trêmulos beijá-la.) e colocá-los em contato físico com a amada o poeta constrói uma cena de sensualidade e desempenho amoroso.
A utilização repetitiva de versos no pretérito imperfeito (estremecia / serenava / beijava) e a utilização das reticências cria um clima de erotismo recatado pela interação e troca contínua de afagos entre a moça e a flor.
Apesar da sensualidade do conjunto, o poeta infantiliza a amada dando a ela um caráter virginal (criança / negras tranças). Contudo, na 6ª estrofe, ele retoma o caráter erótico pelo contato físico da natureza com essa mulher.
Na última estrofe subjetivamente o poeta mantém uma postura típica do lirismo platônico e com muita sensibilidade enaltece o caráter virginal da amada.