19 de dezembro de 2009

O Barroco no Feminino: Sóror Violante do Céu


Sóror Violante do Céu nasceu em 1602 e faleceu em 1693, despedindo-se duma longa trajetória existencial, quase toda ela transcorrida entre os faustos da fama conquistada pela qualidade literária de sua obra. Antes de ingressar no convento cultivou a poesia profana, inclusive o lirismo amoroso. Após vestir o hábito, passou a investir o seu talento poético na poesia religiosa, revelando-se uma das mais prestigiadas representantes femininas do Barroco português, conquistando inúmeros prêmios e louvores das academias literárias do seu tempo. Sua produção literária é considerada pela crítica da atualidade um dos momentos altos do conceitismo barroco português. Dentre as escritoras suas contemporâneas, nenhuma teve a obra mais celebrada que a dela, nem atingiu a culminância do seu sucesso entre os altos representantes da nobreza, da intelectualidade da época e dos próprios soberanos. As sucessivas edições dos seus livros logo se esgotavam, dentro e fora de Portugal.

Levada a tomar o hábito de freira dominicana, no Convento de Nossa Senhora da Rosa, aos 29 anos de idade, e a exilar-se na vida claustral, não motivada por uma imperiosa vocação, mas para proteger-se dos sentimentos que a arrebataram e fizeram sofrer, Violante voltou as costas para o mundo e para o amor. No entanto, em sua poesia, a temática amorosa desponta aqui e ali, como uma força oculta que não consegue, ou talvez não quer sufocar.

Mesmo nas poesias de temática religiosa, nas quais suplica ao Criador o perdão para os seus erros passados, é freqüentemente o amor que emerge do seu discurso. No soneto que segue, tem-se a comprovação dessa presença do amor no espírito da poetisa. No poema, chamam a atenção as palavras opositivas vida e morte, alternadas no final dos versos. A antítese vida/morte é habilmente submetida a um jogo de sentidos no qual os termos opostos harmonizam-se através de um reiterado revezamento permutativo entre o sentido próprio e o sentido metafórico dos dois vocábulos: a morte, usada como expressão hiperbólica do sofrimento amoroso, confunde-se com a vida, como comprova o derradeiro verso do soneto.

Se, apartada do corpo a doce vida,
Domina em seu lugar a dura morte,
De que nasce tardar-me tanto a morte,
Si ausente d´alma estou que me dá vida?

Não quero sem Silvano já ter vida,
Pois tudo sem Silvano é viva morte,
Já que se foi Silvano, venha a morte
Perca-se por Silvano a minha vida.

Ah! suspirado ausente, se esta morte
Não te obriga querer vir dar-me a vida,
Como não ma vem dar a mesma morte?

Mas se na alma consiste a própria vida,
Bem sei que se me tarda tanto a morte,
Que é porque sinta a morte de tal vida.

O soneto abaixo exemplifica bem o requintado gosto barroco pela enumeração e pela proliferação verbal. Soma-se a esse processo enumerativo a técnica da bimembração dos versos, resultando numa simetria perfeita em cada um deles e na estrofe como um todo. Vale notar que os versos bimembres encerram uma oposição intensificada, ou seja, eles têm no oxímoro a viga mestra de sua construção. Observe-se ainda o domínio absoluto do oxímoro e da bimembração em todos os versos das quadras, prolongando-se nos tercetos, sem que o uso intensivo de ambos os recursos de estilo prejudique o ritmo do soneto ou o torne monótono, como costuma acontecer em textos que se constroem de forma semelhante:

Será brando o rigor, firme a mudança,
Humilde a presunção, vária a firmeza,
Fraco o valor, cobarde a fortaleza,
Triste o prazer, discreta a confiança;

Terá a ingratidão firme lembrança,
Será rude o saber, sábia a rudeza,
Lhana a ficção, sofística a lhaneza,
Áspero o amor, benigna a esquivança

Será merecimento a indignidade,
Defeito a perfeição, culpa a defensa,
Intrépido o temor, dura a piedade,

Delito a obrigação, favor a ofensa,
Verdadeira a traição, falsa a verdade,
Antes que vosso amor meu peito vença.

A invulgar sensibilidade da autora, seu estilo intelectualizado e a sua habilidade técnica asseguraram-lhe lugar de destaque nas letras portuguesas, ao lado das maiores expressões da poesia barroca. Em suas poesias profanas, reunidas na obra intitulada Rimas várias, publicada em 1646, sobressaem as metáforas conceituosas, as sutilezas, os jogos verbais, as figuras de estilo, manipulados com invulgar habilidade. 

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Zenóbia Collares Moreira

9 de dezembro de 2009

O lirismo de Maria do Rosário Pedrosa


Natural de Lisboa, Maria do Rosário Pedreira nasceu em 1959. Fez a sua estréia na literatura em 1996, com o livro intitulado A casa e o cheiro dos livros, cuja recepção calorosa fez com que logo se esgotasse a primeira edição. Seu segundo livro, O Canto do Vento nos Ciprestes, obteve a mesma ovação por parte da crítica. Como escritora tem já vários trabalhos publicados de ficção, poesia, ensaio, crônicas e literatura juvenil. O livro de estréia revela-se como uma espécie de poética do espaço, dos interiores das casas, enquanto no segundo livro a poetisa põe em prática uma retórica que lembra a dos “ultra-românticos”, na medida em que reveste a expressão dos sentimentos de uma grandiloqüência inesperada. Trata-se de uma poesia que não se contenta em falar de amor, privilegiando uma abordagem sobre o morrer de amor. A mulher que tem voz nos poemas, ao contrário de Maria Teresa Horta, nunca fala no momento amoroso vivenciado, fruído. O seu discurso fala da espera, da ausência, do temor, da solidão, da memória, do abandono, nunca da relação amorosa presente e jubilosa:

O meu mundo tem estado à tua espera; mas
não há flores nas jarras, nem velas sobre a mesa,
nem retratos escondidos no fundo das gavetas. ei
que um poema se escreveria entre nós dois; mas
não comprei o vinho, não mudei os lençóis,
não perfumei o decote do vestido.
Se ouço falar de ti, comove-me o teu nome
(mas nem pensar em suspira-lo ao teu ouvido);
se me dizem que vens, o corpo é uma fogueira –
estalam-me brasas no peito, desvairadas, e respiro
com a violência de um incêndio; mas parto
antes de saber como seria. Não me perguntes
porque se mata o sol na lâmina dos dias
e o meu mundo continua à tua espera:
houve sempre coisas de esguelha nas paisagens
e amores imperfeitos – Deus tem as mãos grandes..

O segundo livro de Maria do Rosário, O canto do vento nos ciprestes, enfeixa poemas que, apesar do intimismo que os plasma, mesmo quando aborda o amor, não resvala para a área já tão desgastada e demodée do confessionalismo, mesmo porque a escrita do amor ou o amor escrito não dá conta da dimensão desse amor único, especialíssimo, que transcende à dimensão da palavra. daí dizer: O meu amor não cabe num poema – há coisas assim,/ que não se rendem à geometria deste mundo;/[...] O meu amor é maior que as palavras; e daí inútil / a agitação dos dedos na intimidade do texto-/ [...]. O meu amor anda por dentro do silêncio a formular loucuras/ com a nudez do teu nome – é um fantasma que estrebucha/ no Dédalo das veias e sangra quando o encerram em metáforas...
A poetisa tematiza o amor numa perspectiva que nada tem a ver com a realidade vivenciada e voltada para os apelos carnais. O erotismo está absolutamente ausente no lirismo amoroso da autora. Não há lugar para a sensualidade, para a poética do corpo no espaço deste livro. Trata-se de uma focalização do amor estruturada na intensidade do sentimento, uma abordagem do tema amoroso mais preocupada em dar relevo ao velho tema “morrer de amor” que de falar em pequenos ou grandes dramas amorosos pessoais.

Este foi o nosso último abraço. E quando,
daqui a nada, deixares o chão desta casa
encostarei amorosamente os lábios ao teu copo
para sentir o sabor desse beijo que hoje não
daremos. E então, sim, poderei também eu
partir, sabendo que, afinal, o que tive da vida
foi mais, muito mais, do que mereci.

O amor na poesia de Maria do Rosário habita o espaço da memória, ele é sempre exibido em sua incompletude ou como metáfora de uma extrema perda. O discurso poético, depurado de excrescências de sentimentalismo, revela um eu-lírico consciente de que o amor é também a angústia da perda.

Diz-me o teu nome - agora, que perdi
quase tudo, um nome pode ser o princípio
de alguma coisa. Escreve-o na minha mão
com os teus dedos - como as poeiras se
escrevem, irrequietas, nos caminhos e os
lobos mancham o lençol da neve com os
sinais da sua fome. Sopra-mo no ouvido,
como a levares as palavras de um livro para
dentro de outro - assim conquista o vento
o tímpano das grutas e entra o bafo do verão
na casa fria. E, antes de partires, pousa-o
nos meus lábios devagar: é um poema
açucarado que se derrete na boca e arde
como a primeira menta da infância.
Ninguém esquece um corpo que teve
nos braços um segundo - um nome sim

O canto do vento nos ciprestes, estão vivas as marcas deixadas pela solidão dolorosamente vivenciada e pela experiência do abandono, bem como a presença de uma ausência evocada do homem amado, reiteradamente trazida à memória, revivida e, pouco a pouco, despojada de da gravidade que provoca a dor. Obra que tem a sua gênese numa experiência de “perda”, transformada em “canto”:

Dorme, meu amor, que o mundo já viu morrer mais
este dia e eu estou aqui, de guarda aos pesadelos.
Fecha os olhos agora e sossega – o pior já passou
há muito tempo; e o vento amaciou; e a minha mão
desvia os passos do medo. Dorme, meu amor –
a morte está deitada sob o lençol da terra onde nasceste
e pode levantar-se como um pássaro assim que
adormeceres. Mas nada temas: as suas asas de sombra
não hão-de derrubar-me – eu já morri muitas vezes
e é ainda da vida que tenho mais medo. Fecha os olhos
agora e sossega – a porta está trancada; e os fantasmas
da casa que o jardim devorou andam perdidos
nas brumas que lancei ao caminho. Por isso, dorme,
meu amor, larga a tristeza à porta do meu corpo e
nada temas: eu já ouvi o silêncio, já vi a escuridão, já
olhei a morte debruçada nos espelhos e estou aqui,
de guarda aos pesadelos – a noite é um poema
que conheço de cor e vou cantar-to até adormeceres.

A poesia lírica praticada por Maria do Rosário Pedreira é bem distanciada dos lugares comuns de que, freqüentemente, este tipo de expressão poética se recente.

Não tenhas medo do amor. Pousa a tua mão
devagar sobre o peito da terra e sente respirar
no seu seio os nomes das coisas que ali estão a
crescer: o linho e genciana; as ervilhas-de-cheiro
e as campainhas azuis; a menta perfumada para
as infusões do verão e a teia de raízes de um
pequeno loureiro que se organiza como uma rede
de veias na confusão de um corpo. A vida nunca
foi só Inverno, nunca foi só bruma e desamparo.
Se bem que chova ainda, não te importes: pousa a
tua mão devagar sobre o teu peito e ouve o clamor
da tempestade que faz ruir os muros: explode no
teu coração um amor-perfeito, será doce o seu
pólen na corola de um beijo, não tenhas medo,
hão-de pedir-to quando chegar a primavera.

Em alguns poemas há a presença da doença e da morte. O binômio amor/morte figura como o grande tema do livro. O amor nutre-se “na instabilidade, na precariedade, na insegurança. Como não é o amor consumado e feliz que Maria do Rosário aborda, estes poemas estão pejados de desolação, medo, ameaças, pressentimentos”. O livro de Maria do Rosário Pedreiras sobressai no contexto da poesia portuguesa do terceiro milênio por tudo quanto nele, sendo diferente, inovador e original, institui a sua singularidade.

Autora: Zenóbia Collares Moreira


5 de dezembro de 2009

A hipertrofia do eu em Augusto dos Anjos


Paraibano, nascido em 1884, Augusto dos Anjos morreu muito cedo, aos trinta anos. Deixou uma obra breve,contundente e inovadora, surgida em um ambiente adverso. O único livro deixado pelo poeta -EU- é perpassado por intenso sofrimento, é eivado de verdades apreendidas e de protestos acerca das dores que lhe dilaceravam. Seu livro provocou um grande abalo nos críticos da época (1912), chocados com o estranho estilo e a inusitada temática da obra. Portando a recepção de críticos e de intelectuais dividiu-se entre os que lhe teciam elogios e entre os que lhe lançavam impropérios. Todavia, todos eram unânimes em relação à originalidade da obra, com sua expressão poética técnico-científica, escatológica e grotesca absolutamente oposta à usual nas primeiras décadas do século XX, em plena “belle époque”.
Na visão abalizada de Otto Maria Carpeaux, Augusto dos Anjos não teve sorte na vida: ninguém o compreendeu, ninguém lhe leu os versos nos cafés superficialmente afrancesados do Rio de Janeiro. Quem salvou a fama póstuma de Augusto dos Anjos foi seu povo, do nordeste e do interior do Brasil. A abundância de estranhas expressões científicas e de palavras esquisitas em seus versos atraiu os leitores semicultos que não compreenderam nada de sua poesia e ficavam, no entanto, fascinados pelas metáforas de decomposição em seus versos assim como estavam em decomposição suas vidas. Nada menos que 31 edições do seu livro EU dão testemunho dessa imensa popularidade que é o reverso da medalha - repeliu os leitores exigentes, de tal modo que, até durante a fase modernista da literatura brasileira, os versos de Augusto dos Anjos passaram por exemplos de mau gosto de uma época superada.
Foram alguns poucos leitores dedicados que conseguiram reivindicar e restabelecer a verdadeira grandeza de Augusto dos Anjos: Álvaro Lins, Antônio Houaiss, Francisco de Assis Barbosa e eu mesmo. Relendo o EU, sempre descobrimos coisas novas, estranhas e admiráveis. Existem em Augusto dos Anjos inúmeros casos assim, de descoberta de um sentido novo das palavras. Nem sempre percebemos claramente os motivos da nossa admiração".
Descrente do amor e da possibilidade de ser amado, o poeta centralizou no próprio EU  o sujeito dos seus versos, gravitando obsessivamente em torno de seus problemas existenciais, dos seus sentimentos, pensamentos, angústias e dores, sempre tematizados com amargo e denso pessimismo.  Esta hipertrofia do "eu" , evidente no próprio título do seu único livro, perrassa todos os seus poemas.

Idealização

Falas de amor, e eu ouço tudo e calo
O amor na Humanidade é uma mentira.
É. E é por isto que na minha lira
De amores fúteis poucas vezes falo.

O amor! Quando virei por fim a amá-lo?!
Quando, se o amor que a Humanidade inspira
É o amor do sibarita e da hetaíra,
De Messalina e de Sardanapalo?

Pois é mister que, para o amor sagrado,
O mundo fique imaterializado
- Alavanca desviada do seu fulcro -

E haja só amizade verdadeira
Duma caveira para outra caveira,
Do meu sepulcro para o teu sepulcro?!


Versos íntimos
Vês?! Ninguém assistiu ao formidável
Enterro de tua última quimera.
Somente a ingratidão - esta pantera -
Foi tua companheira inseparável!

Acostuma-te à lama que te espera!
O Homem, que, nesta terra miserável,
Mora, entre feras sente inevitável
Necessidade de também ser fera.

Toma um fósforo. Acende teu cigarro!
O beijo, amigo, é a vespera do escarro,
A mão que afaga é a mesma que apedreja.

Se alguém causa inda pena tua chaga,
Apedreja essa mão vil que te afaga,
Escarra nessa boca que te beija

Ao Luar
Quando, à noite, o Infinito se levanta
À luz do luar, pelos caminhos quedos
Minha tátil intensidade é tanta
Que eu sinto a alma do Cosmos nos meus dedos!

Quebro a custódia dos sentidos tredos
E a minha mão, dona, por fim, de quanta
Grandeza o Orbe estrangula em seus segredos,
Todas as coisas íntimas suplanta!

Penetro, agarro, ausculto, apreendo, invado
Nos paroxismos da hiperestesia,
O Infinitésimo e o Indeterminado...

Transponho ousadamente o átomo rude
E, transmudado em rutilância fria,
Encho o Espaço com a minha plenitude

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Autora: Zenóbia Collares Moreira Cunha



2 de dezembro de 2009

O antilirismo na poesia de Maria Amélia Neto


Maria Amélia Neto nasceu em Montijo a 30 de outubro de 1928. Poliglota, trabalhou como tradutora e como secretária. Manteve-se sempre à margem de grupos e de revistas literários. Desde o ano de 1960 vem publicando livros de poesias, que lhe angariaram grande prestígio no meio literário pela indiscutível qualidade do que escreve.
Jorge de Sena, referindo-se à obra da poeta, chama atenção para a sua “dicção hierática e solene, quer no verso curto, quer no verso longo”, a que se somam uma viva sensibilidade visionária, uma contida melancolia solitária” e um intenso sentimento do mundo, despido de sentimentalismo e de derramamentos emocionais, sem contudo ser árida, seca ou dura. Seu texto é enxuto, sua palavra é precisa e sem rodeios.
Maria Amélia posterga para um plano secundário a presença da primeira pessoa do discurso, incluída em um nós de cariz coletivo, lança mão de uma expressão quase despojada de emoção, evitando o empobrecimento das imagens pelo uso de metáforas banais, animando cada palavra e cada verso com subterrânea e insólita intensidade.

MEDITAÇÃO SOBRE SÍSIFO

Vi-o de novo,
pela alquimia ancestral da solidão.
De novo se afundou no tempo
A pergunta desde sempre murmurada,
E o fogo crepitou suavemente
E queimou, uma a uma,
As horas da noite.
Trazemos na retina a eternidade.
Da aurora
Conhecemos os sinais,
Os planetas adormecidos,
O rio coberto de junquilhos mortos.
Do resto do tempo
Conhecemos o orgulho,
A lucidez desumana,
A tela por pintar
E o ruído subtil do medo.
Aprenderemos a crescer ao lado das roseiras?
A saciar de sol a demência do vazio?
A destruir as velhas raízes?
Fluido, fluido é o cerco da solidão.

Anti-lírica por excelência, a emoção e o sentimento, na poesia de Maria Amélia Neto, estão submetidos a um filtro intelectual que conduz com rigor os versos dos poemas. Sua linguagem é a do despojamento sentimental.

O AREAL
Só há areia
E um céu demasiado lúcido.
A transparência intacta feriu o nosso cérebro,
Mutilou os nossos pensamentos,
Fez nascer violetas de fogo no silêncio.
Arrastados pelas torrentes de luz,
Alagamos de solidão os nossos olhos.
Nem silvados, nem pauis,
Nem o pulsar do álamo.
É necessário continuar,
Mas quem descobre o rumo na areia?
Escutei vozes e nem uma conhecia o caminho,
Inventei vultos para me fazerem companhia,
E todos mantiveram os olhos cerrados.
Se eram cegos, porque me sorriam?
E porque havia nos seus dedos
A sugestão da cítara?
E porque me apontou um deles
Um flamingo, um cipreste, um lago,
Que os seus olhos não viam
E que os meus tinham começado a imaginar?

A poeta não se integrou na Poesia 61, seguindo uma linha contrária, muito pessoal, alheada das propostas poéticas relacionadas com a meta-poesia, com a questão de gênero e com a discussão acerca da identidade feminina.

Autora: Zenóbia Collares Moreira,


                                                          

29 de novembro de 2009

ANIVERSÁRIO: Álvaro de Campos

O poema Aniversário se inscreve na fase depressiva da obra do poeta Álvaro de Campos, caracterizada pelo intimismo, pela depressão, pelo cansaço e pela melancolia perante a incapacidade das realizar os seus projetos. 

As saudades da infância e uma visão sombria da vida são também temas recorrentes nessa fase, como pode ser constatado na leitura do longo de Aniversário.

ANIVERSÁRIO

No dia em que festejavam o dia dos meus anos,
Eu era feliz e ninguém estava morto.
Na casa antiga, até eu fazer anos era uma tradição de há séculos,
E a alegria de todos, e a minha, estava certa com uma religião qualquer.

No TEMPO em que festejavam o dia dos meus anos,
Eu tinha a grande saúde de não perceber coisa nenhuma,
De ser inteligente para entre a família,
E de não ter as esperanças que os outros tinham por mim.
Quando vim a ter esperanças, já não sabia ter esperanças.
Quando vim a olhar para a vida, perdera o sentido da vida.

Sim, o que fui de suposto a mim-mesmo,
O que fui de coração e parentesco.
O que fui de serões de meia-província,
O que fui de amarem-me e eu ser menino,
O que fui — ai, meu Deus!, o que só hoje sei que fui...
A que distância!...
(Nem o acho...)

O tempo em que festejavam o dia dos meus anos!
O que eu sou hoje é como a umidade no corredor do fim da casa,
Pondo grelado nas paredes...
O que eu sou hoje (e a casa dos que me amaram treme através das minhas
lágrimas),
O que eu sou hoje é terem vendido a casa,
É terem morrido todos,
É estar eu sobrevivente a mim-mesmo como um fósforo frio...

No tempo em que festejavam o dia dos meus anos...
Que meu amor, como uma pessoa, esse tempo!
Desejo físico da alma de se encontrar ali outra vez,
Por uma viagem metafísica e carnal,
Com uma dualidade de eu para mim...
Comer o passado como pão de fome, sem tempo de manteiga nos dentes!

Vejo tudo outra vez com uma nitidez que me cega para o que há aqui...
A mesa posta com mais lugares, com melhores desenhos na loiça, com mais copos,
O aparador com muitas coisas — doces, frutas o resto na sombra debaixo do alçado —,
As tias velhas, os primos diferentes, e tudo era por minha causa,
No tempo em que festejavam o dia dos meus anos...

Pára, meu coração!
Não penses! Deixa o pensar na cabeça!
Ó meu Deus, meu Deus, meu Deus!
Hoje já não faço anos.
Duro.
Somam-se-me dias.
Serei velho quando o for.
Mais nada.
Raiva de não ter trazido o passado roubado na algibeira!...
O tempo em que festejavam o dia dos meus anos!...

Em Aniversário, Álvaro de Campos vai tecendo, com indisfarçável amargura e funda melancolia, um fio de lembranças que religam seu eu adulto ao seu outro eu perdido no passado remoto de sua infância. É pela memória que o poeta revive e reconstitui sua história. A época da sua infância é caracterizada pela despreocupada inocência, pelo alheamento absoluto acerca do que se passava à sua volta. Assim, o passado avulta como o tempo feliz, tempo da alegria, da vida plena partilhada com a família:

No tempo em que festejavam o dia dos meus anos,
Eu era feliz e ninguém estava morto.
Na casa antiga, até eu fazer anos era uma tradição de há séculos,
E a alegria de todos, e a minha, estava certa com uma religião qualquer.

O cotejo da vida da criança com a do adulto gera um sentimento de aflitivo vazio, de perda irremediável de um tempo feliz não mais possível de ser recuperado no tempo presente. O presente, para o poeta, já na maturidade, nada mais é que um imenso e doloroso nada, resultante da perda definitiva do bem mais caro que possuia outrora: o sentimento de aconchego, de proteção e de contentamento, proporcionado pela vida em família. A infância assume, assim, uma conotação de tempo bom, de vida perfeita e de felicidade absoluta, metáfora do paraíso e reduto da nostalgia e da saudade.
O eu lírico expressa o seu desejo impossível de voltar à infância, seu anseio inútil de recuperar o passado. “Vejo tudo outra vez com uma nitidez que me cega para o que há aqui...”, diz o poeta tentando em vão substituir  imagem do presente obscuro pela do passado venturoso, rejeitando o presente como um tempo de dor, de ausência, de perda, de aflitivo vazio e de agônica solidão, ou seja, um tempo que já perdeu o sentido e no qual não há espaço para a alegria.
Assim, a festa de aniversário reveste o sentido simbólico de um ritual familiar no qual a criança é celebrada, torna-se o centro das atenções e do carinho de todos. No presente, ele é apenas o sobrevivente triste de si mesmo, o solitário ser humano, envelhecido, amargurado, vivendo das memórias do que já não é, do que já não tem.
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Zenóbia Collares Moreira. 


12 de novembro de 2009

Adélia Prado: Poesias


"Meu primeiro livro foi feito num entusiasmo de fundação e descoberta nesta felicidade. Emoções para mim inseparáveis da criação, ainda que nascidas, muitas vezes, do sofrimento”. Com estas palavras, Adélia Prado apresentou ao público seu primeiro livro – Bagagem - publicado em 1976, com o apoio de Carlos Drummond de Andrade, grande admirador da poeta de Diamantina.
Este primeiro livro foi efusivamente recebido pela crítica, seduzida pelo estilo diferente da autora na expressão dos seus sentimentos e da sua singular visão do mundo que a rodeava, privilegiando a poesia do cotidiano magistralmente recriado.

GRANDE DESEJO

Não sou matrona, mãe dos Gracos, Cornélia,
sou mulher do povo, mãe de filhos, Adélia.
Faço comida e como.
Aos domingos bato o osso no prato pra chamar cachorro
e atiro os restos.
Quando dói, grito ai.
quando é bom, fico bruta,
as sensibilidades sem governo.
Mas tenho meus prantos,
claridades atrás do meu estômago humilde
e fortíssima voz pra cânticos de festa.
Quando escrever o livro com o meu nome
e o nome que eu vou pôr nele, vou com ele a uma igreja,
a uma lápide, a um descampado,
para chorar, chorar, e chorar,
requintada e esquisita como uma dama.

Adélia Prado também lança seu olhar para a problemática feminina. O poema “Enredo para um tema” uma espécie de denúncia ao amordaçamento das mulheres, a sua subalternização à vontade autoritária do homem nas sociedades regidas pelo poder e supremacia do masculino, exemplifica bem a incidência do seu olhar crítico sobre a condição feminina:

ENREDO PARA UM TEMA

Ele me amava, mas não tinha dote,
só os cabelos pretíssimos e um beleza
de príncipe de estórias encantadas.
Não tem importância, falou a meu pai,
se é só por isto, espere.
Foi-se com uma bandeira
e ajuntou ouro pra me comprar três vezes.
Na volta me achou casada com D. Cristóvão.
Estimo que sejam felizes, disse.
O melhor do amor é sua memória, disse meu pai.
Demoraste tanto, que...disse D. Cristóvão.
Só eu não disse nada,
nem antes, nem depois.

Observe-se a ironia que perpassa as palavras do pai e do marido, marcando o contraste entre o romantismo fantasioso da jovem mulher e o frio poder decisório do pai e a irônica observação do marido. À mulher cabia obedecer e calar, enquanto sua vida era tratada como uma mercadoria posta em leilão, sem nenhum respeito aos seus sentimentos e à sua vontade. Claro que a poesia é um retorno a costumes que remontam a uma época muito remota, mas se institui como uma metáfora do silenciamento e da submissão da mulher onde o milenar autoritarismo do homem é privilegiado.
A problemática da mulher e as questões de gênero são abordadas na poesia adeliana bem à sua maneira de focalizar outras práticas de cunho cultural, ora se revelando identificada, ora se distanciando. Na poesia que se segue, a autora começa com uma irônica referência, de cunho feminista (se quiser pescar, pesque, mas que limpe os peixes), logo seguida de uma atitude oposta de cumplicidade no compartilhamento da tarefa doméstica e de plenitude no amor, protagonizada por um casal simples que vive um casamento harmonioso:

CASAMENTO

Há mulheres que dizem:
Meu marido, se quiser pescar, pesque,
mas que limpe os peixes.
Eu não. A qualquer hora da noite me levanto,
ajudo a escamar, abrir, retalhar e salgar.
É tão bom, só a gente sozinhos na cozinha,
de vez em quando os cotovelos se esbarram,
ele fala coisas como 'este foi difícil'
'prateou no ar dando rabanadas'
e faz o gesto com a mão.
O silêncio de quando nos vimos a primeira vez
atravessa a cozinha como um rio profundo.
Por fim, os peixes na travessa,
vamos dormir.
Coisas prateadas espocam:
somos noivo e noiva.

Adélia poetiza os acontecimentos, aparentemente, banais e insignificantes do cotidiano, familiar ou não, focalizando a mulher - seus afazeres, sua condição existencial e visão de mundo:

ENSINAMENTO

Minha mãe achava estudo
a coisa mais fina do mundo.
Não é.
A coisa mais fina do mundo é o sentimento.
Aquele dia de noite, o pai fazendo serão,
ela falou comigo:
"Coitado, até essa hora no serviço pesado".
Arrumou pão e café, deixou tacho no fogo com água quente.
Não me falou em amor.
Essa palavra de luxo.

E na apreensão dos pequenos gestos e das situações particularmente humanas que Adélia imprimirá a singularidade de sua marca, a especificidade de sua poesia e a grandeza do seu talento inovador.




6 de novembro de 2009

MANUEL BANDEIRA: Poesias


Aprecio de uma forma muito especial a poesia POÉTICA de Manuel Bandeira, pelo espírito da mudança, pelo ímpeto de ruptura com a tradição lírica da época que ela veicula e, mais que tudo, pela ousadia do poeta de erguer a bandeira do Modernismo, dando seu grito de liberdade de expressão e de defesa de uma inovadora postura estética.
Bandeira foi notável no uso do verso livre, mas não chegou a desprezar as formas fixas, chegando a compor sonetos e uma cantiga bem no estilo dos cancioneiros medievais portugueses, manifestando assim a liberdade que se permitia de expressar-se como lhe ditava a inspiração.
Sua ruptura com o Parnasianismo retardatário, ou com a tradição lírica da época, ainda mesclada de um romantismo desgastado e dessorado, era inevitável e inadiável, pois o espírito livre do poeta não conseguiria ficar prisioneiro às regras e aos limites impostos pela herança de estéticas oitocentistas.


POÉTICA

Estou farto do lirismo comedido
Do lirismo bem comportado
Do lirismo funcionário público com livro de ponto expediente
protocolo e manifestações de apreço ao Sr. diretor.
Estou farto do lirismo que pára e vai averiguar no dicionário
o cunho vernáculo de um vocábulo.
Abaixo os puristas
Todas as palavras sobretudo os barbarismos universais
Todas as construções sobretudo as sintaxes de exceção
Todos os ritmos sobretudo os inumeráveis
Estou farto do lirismo namorador

Político
Raquítico
Sifilítico
De todo lirismo que capitula ao que quer que seja
fora de si mesmo
De resto não é lirismo
Será contabilidade tabela de co-senos secretário do amante
exemplar com cem modelos de cartas e as diferentes
maneiras de agradar às mulheres, etc.
Quero antes o lirismo dos loucos
O lirismo dos bêbedos
O lirismo difícil e pungente dos bêbedos
O lirismo dos clowns de Shakespeare
— Não quero mais saber do lirismo que não é libertação.


O resultado do espírito libertário de Bandeira foi a produção de uma obra diversificada que transitou por vários estilos sem perder a sua unidade e a sua coerência estética. Para ele "... a poesia está em tudo - tanto nos amores quanto nos chinelos, tanto nas coisas lógicas como nas disparatadas". Sua linguagem prima pela simplicidade. Sua poesia não se debruçou sobre temáticas sociais, tampouco se voltou para a reflexão filosófica. Bandeira privilegiou a poesia do cotidiano, os fatos comuns do dia-a-dia, ou as suas próprias experiências.


PROFUNDAMENTE


Quando ontem adormeci
Na noite de São João
Havia alegria e rumor
Vozes cantigas e risos
Ao pé das fogueiras acesas.
No meio da noite despertei
Não ouvi mais vozes nem risos
Apenas balões
Passavam errantes
Silenciosamente


Apenas de vez em quando
O ruído de um bonde
Cortava o silêncio
Como um túnel.
Onde estavam os que há pouco
Dançavam
Cantavam
E riam
Ao pé das fogueiras acesas?
— Estavam todos dormindo
Estavam todos deitados
Dormindo
Profundamente.


Quando eu tinha seis anos
Não pude ver o fim da festa de São João
Porque adormeci.
Hoje não ouço mais as vozes daquele tempo
Minha avó
Meu avô
Totônio Rodrigues
Tomásia
Rosa
Onde estão todos eles?
— Estão todos dormindo
Estão todos deitados
Dormindo
Profundamente


É notório que os fatos do cotidiano são recriados poeticamente, a partir da visão particularizada que o poeta tem desses memos fatos, observados por um prisma todo seu, filtrados pelo crivo de sua singular visão de mundo, de sua percepção do real.

Autora: Zenóbia Collares Moreira.



28 de outubro de 2009

CAMÕES: O MUNDO DESCONCERTADO

O mundo, como a vida, é visto igualmente sob o prisma de um exacerbado negativismo pelos poetas maneiristas. Para eles, o mundo é cruel, enganador; é lugar onde imperam a maldade, a desgraça, o caos, os conflitos; onde o homem é espreitado por perigos de toda espécie, onde caminhará, como vítima de um inclemente calvário, até o instante final das suas vidas.

Integra-se nessa linha o tema do “mundo desconcertado”, que abre espaço para queixas e críticas dos poetas contra a desordem, a injustiça, a corrupção e a inversão de valores prevalecentes na sociedade do seu tempo, que Camões tão bem traduz em sua lírica, prodigalizando lamentos por tais desconcertos.

No longo poema que escreveu sobre o assunto, Oitavas a um amigo sobre o desconcerto do mundo, o poeta vai enumerando e analisando, melancólica e criticamente, o espetáculo que o mundo proporciona, protagonizado pelas mais diversas facetas que assumem os desequilíbrios sociais e morais aos quais ninguém está isento:

Quem pode ser no mundo tão quieto,
Ou quem terá tão livre o pensamento,
Quem tão exp’rimentado e tão discreto,
Tão fora, enfim, de humano entendimento
Que, ou com público efeito, ou com secreto,
Lhe não revolva e espante o sentimento,
Deixando-lhe o juízo quase incerto,
Ver e notar do mundo o desconcerto?

É importante notar que o poeta rejeita qualquer manifestação de espanto por parte dos homens sensíveis, dos homens conscientes, perante a realidade caótica de um mundo às avessas, transtornado pelo “desconcerto”.

Tem o tempo sua ordem já sabida;
o mundo não; mas anda tão confuso,
que parece que dele Deus se esquece.

Em outros passos de sua lírica, Camões torna a fazer do “desconcerto do mundo” matéria poética, mercê da reflexão sobre a condição do homem em meio à desordem, à inversão de valores e à injustiça predominantes numa sociedade cujo mal era, antes de tudo, moral:

Os bons vi sempre passar
No mundo graves tormentos
E, para mais me espantar,
Os maus vi sempre nadar
Em mar de contentamentos.

No soneto Correm turvas as águas deste rio, Camões retoma as suas reflexões sobre as manifestações do desconcerto do mundo social contrapondo-se à ordem do tempo natural em sua previsibilidade e constância:

Correm turvas as águas deste rio,
Que as do céu e as do monte turbaram;
Os campos florescidos se secaram;
Intratável se fez o vale, e frio.

Passou o verão, passou o ardente estio;
as cousas por outras se trocaram;
Os fementidos Fados já deixaram
Do mundo o regimento ou desvario.

Tem o tempo a sua ordem já sabida;
O mundo não; mas anda tão confuso,
Que parece que dele Deus se esquece.

Casos, opiniões, natura e uso
Fazem que nos pareça desta vida
Que não há nela mais que o que parece.

Também Os Lusíadas são pontilhados por versos críticos, quando não amargos, contra os destrambelhos que o poeta observa na sociedade do seu tempo. Nos exórdios, que encerram sete dos dez cantos, por exemplo, sobressaem a melancolia, o desengano, o pessimismo, a consciência do autor acerca do desconcerto do mundo e da insignificância do homem, tão genuinamente maneiristas.
O Maneirismo, conforme ficou explicitado, ultrapassa a mera expressão de uma crise espiritual. No entender de Gustav René Hocke, mais que isso, ele significa a tomada de consciência do homem acerca “de um mundo que se desagrega e de uma crise epocal.”
A essa crise, que afeta a todos, se soma, por inevitável conseqüência, uma desencantada visão do real, geradora de uma inquietude que, em muitos casos, se exaspera em amargura, suscitando versos que expressam o non sense do mundo e, nele, o papel protagonizado pelo homem: o de um ser esmagado pela aflição e invadido por impotente angústia.
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Nota:
1. Gustav René Hocke. El mundo como laberinto, v.I, p.195

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Autora: Zenóbia Collares Moreira, In O lirismo maneirista de Luís de Camões (no prelo).


17 de outubro de 2009

Rosa Lobato: A retórica do desejo e da volúpia feminina

Poetisa e romancista, Rosa Lobato de Faria nasceu em Lisboa em 1932. Escreveu e publicou vários romances, desde 1995, todos muito bem recepcionados pela crítica. O essencial de sua poesia está reunido no volume Poemas escolhidos e dispersos, de 1997. Em 1999, publicou A gaveta de baixo, um longo poema acompanhado por aquarelas do pintor Oliveira Tavares.
Do livro Memória do corpo, livro publicado em 1992, foram selecionadas algumas as poesias, para representá-la neste ensaio, tanto pela renovação estética que nele sobressai, quanto pelo sopro de refinado erotismo que perpassa as linhas e entrelinhas dos seus poemas. A “memória” que conduz a mensagem da autora neste livro segue um itinerário afetivo que se inicia com a memória materna vinculada à infância da autora, a quem dirige os mais belos versos que o amor de uma filha poderia escrever (Minha amante secreta / Meu barco na memória / Razão da minha história / e meu primeiro amor); continua com a revivescência da adolescência (O corpo adolescendo em ventos e sargaços / pôs-se a aprender a lua / as algas as marés / a descobrir em si / gritos ondas e grutas com animais marinhos).
Livro da “memória do corpo” em suas várias idades e mutações: memória da delícia mortal / de ter dezoito fomes / de ter dezoito gritos / de ter dezoito anos. Depois vem o tempo da memória da memória / do corpo que há no corpo da saudade. Mas antes de ser saudade, domínios o qual só ela devassa e conhece, a memória do corpo é de novo poema, beijo, afago. / É de novo no corpo que te trago / a exótica festa da nudez

SONETO DE ABERTURA

Outra coisa que o corpo há quem conheça.
Eu não. Somente nele me cumpro viva.
Poema, beijo, estrela, afago, intriga
só no corpo me são pés e cabeça.

E coração também que às vezes teça
razão de me saber mais que a medida
nessa trágica trama tão antiga
a que chamam ficar de amor possessa.

E é de novo poema, beijo, afago.
É de novo no corpo que te trago
A exótica festa da nudez,

E tudo quanto sinto e quanto penso
Toma corpo no corpo a que pertenço.
E aqui estou: de barro, como vês.

No longo poema que vem a seguir, a atitude do eu-lírico é de cumplicidade e de participação ativa no jogo amoroso. A retórica do desejo e da voluptuosidade feminina não negaceia palavras na expressão da fruição do prazer do próprio corpo e do corpo do homem amado, com todos os sentidos num só confundidos. O prazer visual faz a festa do olhar, seduzido pelo encantamento pelo corpo masculino

A tua boca é uva sol e mosto
vinho luar setembro tangerina
Tens o cabelo solto sobre a testa
dois olhos transviados de assassino
e dizes-me lençol lago floresta
pássaro sangue cântaro destino

Devoras os meus braços os meus ombros
os seios resplandecem de saliva
e descobres na gruta dos assombros
a vaga a lava o lume o sumo a vida

Há algo teatral nas tuas coxas
nas tuas mãos abertas de profeta
a rosa do teu corpo quase murcha
insinua a fragância mais secreta

Por fim há gritos facas e segredos
mastros erguidos sob um céu profano
e a tua nau vencidos mares e medos
navega no meu corpo a todo o pano

Desvendamos o rasto dos cometas
a rota secretíssima das aves
Só me falta a palavra dos poetas
para dizer amor como tu sabes.

Rosa Lobato não é apenas mais uma poetisa que se integra do Parnaso lusitano contemporâneo. Ela avulta no cenário das letras portuguesa como personalidade revestida de exemplar dignidade poética que transforma em expressão a vibração e a força as imagens guardadas na memória, as vivências da véspera e as promessas pressentidas do amanhã:

Eu te prometo meu corpo vivo
Eu te prometo minha centelha
minha candura meu paraíso
minha loucura meu mel de abelha
eu te prometo meu corpo vivo

Eu te prometo meu corpo branco
meu corpo brando meu corpo louco
minha inventiva meu grito rouco
tudo o que é muito tudo o que é pouco
meu corpo casto meu corpo santo

Eu te prometo meu corpo lasso
mar de aventura mar de sargaço
vaga de náufrago onda de espanto
orla de espuma do meu cansaço
eu te prometo meu doce pranto

Eu te prometo todo o meu corpo
ardendo eterno na nossa cama
como um abraço como um conforto

P´ra que me lembres além da chama
eu te prometo meu corpo morto

Memória do corpo não é o primeiro nem o único livro de poesias de Rosa Lobato de Farias, mas é,decerto, como os outros que o antecederam, uma das mais refinadas expressões da sensualidade feminina da poesia de cunho erótico, sensual ou amoroso da literatura contemporânea. A autora,  com seus dois primeiros romances já traduzidos na Alemanha e, mais recentemente, com o romance O Prenúncio das águas, publicado na França, é hoje uma referência obrigatória na nova ficção, bem como na nova poesia portuguesas.

Autora: Zenóbia Collares Moreira.