16 de maio de 2010

A poesia barroca feminina fora do cláustro

Podemos dizer que a afirmação do Barroco português, nos finais da segunda década do século XVII, assinalou também a abertura de um espaço triunfante para a escrita feminina no cenário literário lusitano, no qual algumas mulheres escritoras notabilizaram-se pelas obras que produziram. Após dois séculos em que a participação da mulher na literatura portuguesa havia sido reduzidíssima e praticamente insignificante, deu-se a irrupção de excepcionais talentos literários femininos, principalmente no terreno fecundo da poesia, no qual quase todas se projetaram. Além das poetisas religiosas Violante do Céu, Maria do Céu, Magdalena da Glória, revelaram-se, fora dos muros conventuais, poetisas do quilate de Bernarda Correia de Lacerda, Maria de Lara e Meneses, Feliciana de Milão, além de outras escritoras, como Mariana Alcoforado e Antónia Margarida Castelo Branco, que abrilhantaram o período barroco com a qualidade das suas obras nas áreas da epistolografia, da prosa autobiográfica.
As poetisas surgidas ao longo do período barroco, por meio da obra que produziram, comprovaram e justificaram o sucesso que alcançaram em uma época na qual a poesia era “concebida como arte da palavra, criação de beleza verbal, jogo segundo técnicas complexas visando à exibição do engenho do poeta e o deslumbramento do leitor.” Tratava-se, portanto, de uma prática poética que exigia muito da inteligência e da habilidade dos poetas.


A POESIA BARROCA PORTUGUESA FORA DO CLÁUSTRO.

Fora dos claustros doa conventos, com suas bibliotecas e acesso ao saber, poucas mulheres recebiam uma instrução que lhes permitisse ir além de ler mal e escrever pior ainda. Somente as meninas nascidas em famílias abastadas ou pertencentes à aristocracia tinham acesso aos livros e ao aprimoramento de suas capacidades intelectuais. Essa realidade explica a rara aparição na cena literária de escritoras vindas das camadas sociais economicamente menos privilegiadas. Para estas, a via de acesso ao saber e à cultura teria que ser buscada nos claustros de alguma ordem religiosa. Vale acentuar que tal situação não é exclusiva do período barroco; ela pode ser observada ao longo dos períodos literários, desde o século XV, ou seja, desde a entrada da mulher na literatura, através de D. Filipa de Almada. Foi, portanto, nos salões do palácio real que as mulheres fizeram a sua estréia na poesia, na literatura do país. Dentre as poetisas religiosas que se destacaram na cena literária fora dos conventos, figuram os nomes de Bernarda Ferreira de Lacerda, Maria de Lara e Meneses e Feliciana de Milão, todas três muito celebradas em sua época e freqüentadoras da corte.


BERNARDA FERREIRA DE LACERDA

Natural do Porto, nascida em 1595 e falecida em 1644, Bernarda Ferreira de Lacerda pertencia a uma família aristocrática, sendo filha do Dr. Inácio Ferreira Leitão, chanceler-mor do reino. Muito religiosa, a poetisa pretendia ingressar no convento, porém desistiu de professar para atender ao pedido do seu pai para que se casasse com Fernão Corrêa de Sousa, de quem ficou viúva oito anos após o casamento, com seis filhos pequenos. Pelo conjunto das suas qualidades literárias, pelos seus dotes intelectuais, Bernarda Ferreira de Lacerda gozou de grande prestígio em sua época, tornando-se célebre em Portugal e em outros países europeus. A maior parte de sua obra foi escrita em língua espanhola, conforme o uso generalizado entre os escritores portugueses de seu tempo. É autora consagrada do longo poema épico Espanha libertada e do livro de poesias líricas Saudades de Bussaco, as duas principais obras que escreveu, revelando grande habilidade e desenvoltura tanto no gênero épico quanto no lírico. Depois de uma curta e atormentada vida, Bernarda Ferreira de Lacerda morreu em 1º de outubro de 1645, aos 45 anos de idade, nos braços de sua filha. Ela mesma expõe a dolorosa vida que suportou, numa das estrofes do seu poema Saudades de Bussaco:

Ali nos crespos troncos
Com lágrimas suaves
A minha escreverei trágica vida.
Ali no mar os roncos,
A música das aves,
O murmurar das fontes, que convida
A amorosa saudade,
Roubarão para o céu minha vontade.

As Saudades do Bussaco, segundo a autora, tiveram a sua gênese por ocasião de um passeio que ela fez ao Bussaco, atraída pela fama do lugar serrano, afastado da cidade, dotado de uma estupenda paisagem. A extraordinária beleza região fascinou-a e, seduzida pela atmosfera mágica daquele espaço privilegiado, a poetisa não conseguia aceitar a idéia de abandoná-lo, como confessa nas estrofes do poema:

Oh! Se minha ventura,
Eliano deserto,
Tão desejado bem me concedera,
Que na densa espessura
Do teu céu encoberto

Em ócio branco e doce paz vivera,
Gozando de um retiro
Por quem suspiros dou, e em vão suspiro;
Que ufana, que contente
De tudo me apartara
Por chegar a gozar tal paraíso,
Onde, do mundo ausente,

Segura sempre andaria,
Dando ao bosque alegria, aos campos riso,
Livre de sobressaltos,
Porém não livre o céu de meus assaltos!
Quem de pombas tivera
As asas voadoras,

Que sobre teus penedos subira!
Quem n´elles estivera,
Não momentos, mas horas,
Não horas só, mas annos, sem que vira
Fim a tão feliz sorte,
Senão com o da Parca mortal corte!

Os altos medronheiros,
Que com corado fructo,
Estão seus verdes ramos inclinando
Por cima dos outeiros,
Me dariam tributo
Para que fosse a vida sustentando,
O que hervas ajudaram,
Quando fructas agrestes me faltaram.

As fontes crystalinas,
Que rindo se despenham
Por entre musgo pardo e grama verde,
Abrindo ricas minas
De prata com que despenham
A quem ganhando alento sede perde,
De néctar excelente
Me dariam docíssima corrente.

As frescas espadarias,
Que os lírios se cobrem,
Me puderam servir de branco estrado,
E as relvas que ufanas
Mil boninas encobrem,
De livro, onde vive deuxado
Do autor da Natureza
A providência, amor, graça e beleza.

O poema Saudades do Bussaco é formado por um conjunto de quadros esplêndidos, nascidos do encantamento da poetisa pela formosura que brota de cada elemento da paisagem, de cada recanto, tudo captado por seu delicado sentimento, pela sedução que exerce sobre a sua sensibilidade a aquarela de cores, os aromas das flores e das ervas, os sons das aves e das fontes cristalinas que despencam pela serra. As descrições da autora se sucedem em cascata, numa tentativa reiterada de retratar tudo quanto naquele recanto isolado a deixa maravilhada. Todavia ela sabe que só com a sensibilidade, com o sentimento estético da natureza tudo aquilo pode ser percebido:
Vivei, vivei venturosos,
Divinos habitadores,
Que d´este jardim sois flores,
Deste céu sois luminosos,
Soldados que valorosos,
De pelejar não cansais,
Viver, por merecer mais,
N´este sagrado deserto,
D´onde o céu tendes tão perto,
Quão longe da terra estais.

O que singulariza Saudades do Bussaco é a forma inovadora como a poetisa focaliza a paisagem, fazendo dela o tema do poema. Esse sentimento estético da natureza não está previsto no cânone do Barroco, tampouco era usual entre os poetas lusitanos. Estes não chegaram a manifestar um sentimento estético da natureza, o gosto pela descrição pintores do espaço físico, da paisagem. Bernarda Ferreira de Lacerda dá um salto à frente do seu tempo e, ignorando os lugares-comuns, os surradíssimos clichês exaustivamente usados pelos poetas, principalmente a partir do classicismo renascentista, substituem a paisagem convencional dos clássicos por uma paisagem viva. Os quadros descritivos da paisagem do Bussaco são reveladores de um profundo sentimento estético da natureza. A autora se compraz em descrever os espetáculos naturais, os esplendores da paisagem.

Vale salientar que, nos domínios da literatura, a valorização da paisagem não constitui um fenômeno atinente ao século XVII, espaço do Barroco, mas sim ao século XVIII, mais precisamente ao Pré-romantismo. Com o avanço da botânica e da astronomia, passou-se a olhar para a natureza de forma diferente, ampliou-se a percepção de sua beleza e do multifacetado aspecto que pode ser captado do seu conjunto. Na verdade, somente com o advento do Pré-romantismo alemão, no limiar do século XVIII, a natureza foi sendo percebida e tornada tema predileto dos poetas, que a despojaram do convencionalismo que sempre fizera dela uma imagem padronizada, sem vida e artificial. O poema épico “Espanha libertada” é desenvolvido em 20 cantos, em oitava rima, nos quais a poetisa celebra a libertação da Espanha do domínio maometano, como evidencia a estância que abre o canto. Logo à primeira leitura dessa estância, fica bem claro o eco dos versos camonianos em “Os Lusíadas” (canto I, estr. 1). Como Camões, a poetisa constrói seu canto épico em oitava rima, ou seja, com rimas cruzadas nos seis primeiros versos e rimas emparelhadas nos dois últimos.

Da nossa Espanha a liberdade canto,
E as façanhas do Godo valoroso,
Que com ânimo ousado e zelo santo
A foi tirando ao jugo trabalhoso;
E os feitos também dignos de espanto,
E de sublime verso belicoso,
Que em Espanha praticou a gente forte
Triunfando dos tempos e da morte.

O soneto abaixo justifica a inserção da poetisa na vertente cultista da estética barroca. A autora desenvolve o soneto através de um jogo imagético constituído por metáforas, em alguns versos obscuras, sugerindo mais do que dizendo. Se, por um lado, sacrifica a clareza da idéia, por outro permite que seja inteligível, justamente porque todo o seu preciosismo radica no rebuscado da construção dialética, fundada na metáfora que estabelece a articulação entre os quartetos e os tercetos. Sem dúvida, a poetisa revela domínio de um dos aspectos mais típicos do estilo barroco: a capacidade de invenção verbal, a volúpia em manipular ludicamente a linguagem.

Na minha solidão a fénix retirada
Em ajuntar de aromas cópia entende
Quando prudente renovar pretende
A vida, e formosura já gastada.
E na região das nuvens levantadas
As asas quando o sol mais arde, estende,
Dali desce, e batendo-as fogo acende
Donde, depois renasce de abrasadas.
Assim o solitário no deserto
Méritos ajuntando, bate as asas
Da consideração, e amor excita,
Que o fere o soberano Sol de perto,
E tudo o que era humano feito brasa
Das cinzas já divino ressuscita.

Bernarda Ferreira de Lacerda não foi reconhecida e celebrizada apenas em Portugal. Na época em que viveu e produziu a sua obra, ela foi uma das escritoras que gozaram do maior prestígio dentro e fora do país, especialmente na Espanha.
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Zenóbia Collares Moreira Cunha (Barroco no Feminino. Ensaio a ser publicado)

                                                   

12 de maio de 2010

O lirismo homoerótico de Judith Teixeira


As poesias de Florbela Espanca e de Judith Teixeira ecoam no panorama poético português como os primeiros vagidos de uma liberdade de expressão até então desconhecida no lirismo feminino, escandalizando a falsa pudicícia da moral burguesa, melindrando a susceptibilidade dos defensores da pureza, da nobreza e da dignidade da linguagem poética que, como tal, excluía a verbalização da sexualidade. Nas primeiras décadas do século XX, qualquer incursão na área da sexualidade, do erotismo poético, provocava a execração e a rejeição no meio social, principalmente se partia de uma figura feminina.
Judith Teixeira nunca ocultou o seu fascínio pelas inovações (estou em arte, na vanguarda”), seu espírito de liberdade e de independência colocava-a acima dos preconceitos e hipocrisias sociais, especialmente a dos seus aguerridos censores. Para ela, “as atitudes de Arte, nada têm a ver com as atitudes da vida”. Daí o à vontade com que constrói o seu universo lírico “como sua meta representação, sua proposta lúdica e narcísica e o encontro com um conjunto de espelhos nos quais a autora se ficcionaliza”.[1]
Judith reconhece o poder da luxúria como conceito chave de sua ficção... e em sua realidade ficcionalizada. Na primeira estrofe do poema, que se segue, está todo o ritual que preludia a entrega espontânea do corpo: prazeroso jogo do amor sem pressa, a fruição do beijo, da voluptuosidade sem culpas:

Assim...de mansinho...
une a tua boca à minha boca.
Amor, assim... devagarinho...
entorna mais sombra nos teus olhos!...
E sonha, e sofre aindaa luxúria do meu beijo...
Oh, como a volúpia é linda,
Crispando o teu desejo!
Asas longuíssimas, esguias,
tumultuando indominadas
no vendaval das nossas sensações!
Escuta amor: este turbado rumorcálido e dolorido,
é o eco de tantas vezes repetido
das nossas fervidase magoadas crispações!...
Lá fora, o dia morre tristemente.
Não vejas, meu bem,
oh! não queiras ver o céu nostálgico,
opacescentee agonizante!...
Tenha ainda mais, na ternura dos teus braços,
a graça perturbadado meu corpo feminino...
E sofre... queima ainda
a linda Sultana do teu desejo,
na brasa so teu beijo
agônico...soluçante...e que não finda!

Em alguns poemas a carga dramática do discurso poético atinge um ponto altíssimo. Suas palavras surgem, em cada verso, impulsionadas pela força do desejo, sempre urgente e inadiado. O poema intitulado A minha colcha encarnada (1922) é tecido pela embriagues dos sentidos, pela luxúria e o poema Mais beijos (1925), não menos inflamado pela sofreguidão dos beijos desejados: ei-los, a seguir.

Devagar...outro beijo...outro ainda...
O teu olhar, misterioso e lento,
vejo desgrenhara cálida tempestade
que me desvaira o pensamento!
Mais beijos!...
Deixa que eu, endoidecida,
incendeie a tua boca e domine a tua vida!
Sim, amor...
deixa que se alongue mais
este momento breve!...-
que o meu desejo subindo
solte a rubra asae nos leve.

Esquecida durante décadas, somente após a revolução dos cravos, em 1974, chega ao fim a proibição de autores condenados ao ostracismo em consequentemente, retornam todos do esquecimento a que estiveram relegados pela intolerância ditatorial salazarista. Judith Teixeira, falecida, desde 1959, foi então lembrada por Couto Viana com estas palavras: “É irresistível: leio as poesias de Judith Teixeira e, separando muito trigo de muito joio, penso-as merecedoras de melhor sorte do que têm estado votadas.”
Um dos índices que remete para o homoerotismo nas poesias de Judith Teixeira é a ausência de indicadores de gênero masculino identificando a pessoa a quem ela dirige as suas confissões de amor, ou com a qual vive a experiência luxuriosa que tematiza dos poemas. Quando não faz alusão clara ao gênero feminino, como nas poesias A estátua, A minha amante, dentre outras, refere-se à pessoa amada ou objeto de desejo com a expressão neutra “amor” ou “meu amor”.
Judith Teixeira não foi menos importante que Florbela Espanca, enquanto exponenciais da literatura feminina das primeiras três décadas do século XX. A problematização em torno de sua obra também originou-se de motivos semelhantes aos que atingiram a obra florbeliana: sua poesia, como a dela, era avançada demais para a época em que foi publicada, principalmente pelo apelo erótico que transita nas linhas e entrelinhas de seus versos, desafiando os tabus sociais que impunham a lei do silêncio para a exteriorização da intimidade feminina, que amordaçavam os gritos do corpo, quando não puniam a audácia dos que ousavam transgredi-los, através das várias formas que revestem a rejeição e a censura condenatória.
Nas obras poéticas de Florbela e de Judite Teixeira, já se pode ver, avant la lettre, toda a dinâmica de um projeto libertário da mulher que iria, décadas depois, eclodir e conquistar a permanência nos textos femininos, já explicitamente indicado textualmente através da construção da imagem de uma mulher atuante na experiência amorosa. Quando Florbela Espanca faleceu, em 1939, Judite Teixeira já dividia com ela o espaço da qualidade e do talento literários, desde 1923.
As poesias de Florbela e de Judith foram “a irrupção da linguagem enterrada da paixão”, foram a pedra inaugural, a abertura dos caminhos, a fertilização do terreno onde se fincariam as raízes da poesia erótica feminina na literatura portuguesa. Todavia, as suas poesia não é ainda a festa do erotismo triunfante, da sexualidade feminina resgatada, do corpo liberto que se instauraria principalmente com Teresa Horta, secundada por Rosa Farias Lobato, Ana Hartherly e Luiza Neto Jorge, dentre outras, bem mais ousadas e transgressivas que elas.

Autora: Zenóbia Collares Moreira Cunha (In O Itinerário da poesia feminina portuguesa - Século XX- Ensaio a ser publicado brevemente. Direitos autorais reservados)
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Nota : [1] Alicia Perdomo, "Judith Teixeira, uma escritora portuguesa vanguardista dos anos 20" In



1 de maio de 2010

Fernando Pessoa: Autopsicografia





Fernando Pessoa era um poeta muito complexo, intensamente intelectualizado e dotado de rara genialidade. Autopsicografia é considerado uma espécie de profissão de fé pessoana acerca da gênese e da natureza do seu processo de criação poética.
Logo à primeira leitura do poema, fica evidente a divisão do mesmo em três partes bem definidas, correspondentes às três estrofes que o compõem. Observe-se que a primeira estrofe é fixada na imagem do poeta, não do poeta Fernando Pessoa, mas do poeta em sentido genérico. Ela traz, em seu verso inicial, uma afirmação taxativa de grande força expressiva que tanto define o que Pessoa pensa acerca do poeta enquanto criador, em seu processo de elaboração poética, quanto expõe a estranha idéia de que “O POETA É UM FINGIDOR”.

Autopsicografia

O poeta é um fingidor.
Finge tão completamente
Que chega a fingir que é dor
A dor que deveras sente.

E os que lêem o que escreve,
Na dor lida sentem bem,
Não as duas que ele teve,
Mas só a que eles não têm.

E assim nas calhas de roda
Gira, a entreter a razão,
Esse comboio de corda
Que se chama coração.

Vale salientar que “FINGIR”, neste caso, não significa ser falso, mentiroso ou insincero. Não. O sentido do fingimento atribuído ao poeta radica numa sinceridade imaginária, da mesma natureza do “fingimento”. O ato de fingir, neste contexto, equivale a usar a imaginação criadora e transmutadora da realidade, sentida ou não, numa verdade poética.
Observemos que todo o poema lança mão dos elementos próprios da comunicação verbal: Um “emissor” (poeta) + uma mensagem (poema) + um receptor (leitor e decodificador da mensagem), abrindo um espaço fundamental para o leitor no processo criativo, anulando a idéia de que a criação poética seja um ato isolado e solitário do poeta, que exclui a cumplicidade do leitor e decodificador da mensagem contida no poema.
Isto posto, passemos a examinar os dois semas que transitarão pelas estrofes, ora referindo-se ao poeta, ora relacionando-se ao leitor: os semas “FINGE” e “DOR” que juntos tanto definem a natureza do poeta, quando a natureza do leitor, ambos “fingidores”.

Temos, assim, dois fingidores e cinco tipos de dores:
Da parte de poeta existem três dores:  A DOR SENTIDA (REAL)   A DOR FINGIDA ( a dor real transfigurada) e a A DOR ESCRITA.
Da parte do leitor existem duas dores:   A DOR LIDA (síntese da das dores do poeta), A DOR FINGIDA (a que eles não têm)

A dor sentida (real) do poeta é transformada poeticamente em dor fingida (imaginada) e esta em dor escrita. Por sua vez, o leitor desconhece as duas dores do poeta (a dor sentida e a dor fingida). Na leitura da dor escrita que este “sente bem”, não as duas dores que o poeta teve (sentida/fingida), mas a dor “que eles não têm”, ou seja: a sua dor também fingida. O leitor então é aquele que acredita na magia da linguagem. Lê a dor sentida/fingida/escrita/ e a assume como sua mesmo não sendo.
Em síntese, o que Pessoa deseja comunicar aos seus leitores é que a poesia não é um ato solitário, mas sim um ato solidário entre o poeta e seu leitor, é que a poesia não está na dor realmente sofrida (ou numa experiência realmente vivida), mas sim na habilidade do poeta para fingir a dor sentida, a dor real que o aflige, na certeza de que para se transforme em arte poética, ela deverá passar pelo imaginário, metamorfoseando-se em puro fingimento, expresso em linguagem poética, como roupagem da dor imaginada
Todavia, na segunda estrofe do poema, o poeta convoca a participação do leitor (aqueles que o lêem) nesse processo de elaboração poética. Como seu parceiro e cúmplice no fingimento.
A terceira estrofe se afirma como o ato final da elaboração poética, no qual participam a Emoção (coração e sensibilidade) e a Razão.  A Emoção é metaforizada na imagem de um “comboio de corda”, sempre a girar nas “calhas de roda”, visando entreter a disciplinada razão. 
Os pólos que estabelecem a oposição no processo criativo – a emoção e a razão – são os responsáveis pela dinâmica da poesia. O coração, como sede das emoções, das sensações e da sensibilidade que instituem a gênese da criação e a razão como centro da imaginação, do pensamento e das idéias que elaboram o poema. Logo, a poesia, segundo Pessoa, é um ato dinâmico entre a emoção e a razão.
Fica bem evidenciada a ênfase dada nesta última estrofe à função lúdica da poesia. Quer dizer que a poesia não é exteriorização imediata dos sentimentos. Estes passam por uma modelagem estética, Todo processo que constrói poesia é algo que é perpassado pela linguagem – não há experiência imediata. Esse é o “fingimento”, o poeta imagina algo que sequer imaginou em poesia.
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Autora: Zenóbia Collares Moreira Cunha