6 de julho de 2011

Fernando Pessoa - Abdicação



Toma-me, ó noite eterna, nos teus braços
E chama-me teu filho. Eu sou um rei
que voluntariamente abandonei
O meu trono de sonhos e cansaços.

Minha espada, pesada a braços lassos,
Em mão viris e calmas entreguei;
E meu cetro e coroa — eu os deixei
Na antecâmara, feitos em pedaços

Minha cota de malha, tão inútil,
Minhas esporas de um tinir tão fútil,
Deixei-as pela fria escadaria.

Despi a realeza, corpo e alma,
E regressei à noite antiga e calma
Como a paisagem ao morrer o dia.

"Abdicação" é um poema que explora um tema recorrente na poesia pessoana - a noite e a solidão. No caso deste poema, a noite simboliza um estado de aflitiva solidão que não era estranho a Pessoa, pois fazia parte do seu viver, tornara-se rotina em seu dia-a-dia.

Todavia, o poema, apesar da tristeza que o atravessa, revela a plenitude de um estado de serenidade absoluta a acompanhar a melancolia do poeta. Talvez isto de deva à natureza da tristeza que o invade: uma tristeza típica de quem se vê despojado de esperança, de quem se deixa esmagar pelo sentimento de irrealização, de falência, e já não tem ânimo para lutar, para resistir. Daí a razão da escolha do titulo dado ao poema, “abdicação”.

Só abdica quem desiste voluntariamente, sem ser pressionado para fazê-lo. Pessoa simplesmente abdica da vida, busca abrigo na noite eterna, (também metáfora da morte), depois de abandonar o seu trono de sonhos irrealizados e de buscas vãs que resultaram em “cansaços” e amarguras. Despida da realeza corpo e alma, o que restou ao eu-lírico foi apenas a solidão, o isolamento e a melancolia.
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Zenóbia Collares Moreira


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