26 de maio de 2011

Drummond: Poema de sete faces.


O "Poema de sete faces" faz parte da coletânea poética "Alguma Poesia", de Carlos Drummond de Andrade. 
Divulgadíssimo, o texto tornou-se tão consagrado quanto o poema "No meio do caminho", especialmente no ambiente universitário, passando a ser um dos textos mais conhecidos, apreciados e comentados da obra de Carlos Drummond de Andrade.

Quando nasci, um anjo torto
desses que vivem na sombra disse:
Vai, Carlos!, ser gauche na vida.

As casas espiam os homens

que correm atrás de mulheres.
A tarde talvez fosse azul,
não houvesse tantos desejos.

O bonde passa cheio de pernas:
pernas brancas pretas amarelas.
Para que tanta perna, meu Deus,
pergunta meu coração.

Porém meus olhos não perguntam nada.
O homem atrás do bigode
é sério, simples e forte.
Quase não conversa.
Tem poucos, raros amigos
o homem atrás dos óculos e do bigode.

Meu Deus por que me abandonaste
se sabias que eu não era Deus
se sabias que eu era fraco.

Mundo mundo vasto mundo
se eu me chamasse Raimundo
seria uma rima, não seria uma solução.
Mundo mundo vasto mundo,
mais vasto é meu coração. 
Eu não devia te dizer
mas essa lua
mas esse conhaque
botam a gente comovido como o diabo.”

O conteúdo do poema remete a uma das temáticas fundamentais da obra poética de Drummond: a problemática convivência do homem com o mundo que ele considera absurdo, sem lógica e difícil de ser compreendido. Assim, cada estrofe do poema configura-se como uma face dessa relação problemática entre um eu desajustado (gauche) e a realidade na qual está inserido.

O próprio poeta se apresenta no poema como um ser “gauche”, ou seja: inadaptado em um mundo que lhe é estranho, incompreensível e sem lógica. Por isso, ele opta por um distanciamento dessa realidade, assumindo uma postura de simples observador, que analisa o mundo que o rodeia de forma individualista e pejada de ironia.
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Zenóbia Collares Moreira

11 de maio de 2011

Sonetos de Camões.





Quando da bela vista e doce riso,
tomando estão meus olhos mantimento,
tão enlevado sinto o pensamento
que me faz ver na terra o Paraíso.


Tanto do bem humano estou diviso,
que qualquer outro bem julgo por vento;
assi, que em caso tal, segundo sento,
assaz de pouco faz quem perde o siso.


Em vos louvar, Senhora, não me fundo,
porque quem vossas cousas claro sente,
sentirá que não pode merecê-las.


Que de tanta estranheza sois ao mundo,
que não é de estranhar, Dama excelente,
que quem vos fez, fizesse Céu e estrelas.


Este é mais um soneto de Camões pautado no neoplatonismo herdado do lirismo petrarquiano, tão do gosto dos poetas maneiristas, especialmente daqueles que compunham sonetos de louvação a uma dama pela qual nutriam um sentimento amoroso de índole platônica.
Vale salientar o comedimento do poeta na expressão dos seus sentimentos e no reduzido esboço que faz da mulher amada, caracterizada por traços que pertencem apenas ao plano espiritual. O simples fato de contemplá-la, de referir-se a ela, enleva-lhe o pensamento, purifica-o, ensejando-lhe visualizar o Paraíso, na mesma medida em que o faz se sentir distante do plano humano, do mundo material.
Com o uso desse recurso, a imagem da mulher torna-se altamente valorizada e reverenciada, pois é ela quem possibilita a volta do poeta ao bem maior, ao espaço primordial, o Paraíso (Bíblico) ou ao Mundo das Idéias (Platão).
O soneto exprime com perfeição a visão luminosa que Camões sempre revela ter da Mulher. Não apenas na sua poesia lírica, como em Os Lusíadas, sempre que esse poeta, privilegiado pelo toque da genialidade poética, escreve sobre a mulher, ele abre um campo de extremada beleza, de poeticidade e de encantamento, que traduzem seu amor pelo feminino, o seu fascínio pelo que há de delicado, sedutor e especial na mulher.
Mesmo, quando se queixa dos males do amor, jamais ele acusa ou execra aquela que o fez padecer as piores dores e agonias.
Camões amor muito, amou muitas mulheres em suas andanças de exilado pelas colônias portuguesas da Ásia e da Índia. Amou e foi amado. Dizem alguns dos seus biógrafos que amou a Infanta D. Maria de Portugal e, quiçá, esse amor impossível e não aprovado pelo rei, tenha concorrido para a sua condenação ao exílio, embora outras razões existissem para tal penalização.
Camões, um homem sensual, de temperamento apaixonado e cheio de impulsos eróticos, tinha uma grande experiência em matéria de amor e de todas as vicissitudes e alegrias, todas as dores, prazeres e contradições que lhe são adstritos, como demonstra o célebre soneto AMOR É FOGO QUE ARDE SEM SE VER:

Amor é um fogo que arde sem se ver,
é ferida que dói, e não se sente;
é um contentamento descontente,
é dor que desatina sem doer.

É um não querer mais que bem querer;
é um andar solitário entre a gente;
é nunca contentar-se de contente;
é um cuidar que ganha em se perder.


É querer estar preso por vontade;
é servir a quem vence, o vencedor;
é ter com quem nos mata, lealdade.


Mas como causar pode seu favor
nos corações humanos amizade,
se tão contrário a si é o mesmo Amor?

O que mais chama a atenção nesse magnífico soneto é a forma inusitada usada pelo seu autor para definir o Amor, mantendo até a última estrofe justamente a impossibilidade de elaborar uma definição precisa desse sentimento. Vejamos: O amor é o objeto a ser definido. Contudo, todos os elementos evocados para defini-lo, para atribuir-lhe predicados, são constituídos por oxímoros, um tipo especial de antítese que nada mais é que a ligação entre duas idéias ou pensamentos que se excluem.
Portanto, o seu uso intensivo por Camões em nada contribuiu para a elaboração de uma definição exata, clara e precisa do amor. Ao contrário disso, apontou para uma noção do amor como um sentimento de natureza contraditória e, como tal, impossível ser definido. Observe-se que além do uso reiterado do oxímoro, Camões trabalha a sua definição do amor lançando mão de outros recursos comuns a lírica maneirista, dentre os quais se destaca a anáfora da forma verbal “é”, no início de sucessivos versos.
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Zenóbia Collares Moreira