29 de novembro de 2009

ANIVERSÁRIO: Álvaro de Campos

O poema Aniversário se inscreve na fase depressiva da obra do poeta Álvaro de Campos, caracterizada pelo intimismo, pela depressão, pelo cansaço e pela melancolia perante a incapacidade das realizar os seus projetos. 

As saudades da infância e uma visão sombria da vida são também temas recorrentes nessa fase, como pode ser constatado na leitura do longo de Aniversário.

ANIVERSÁRIO

No dia em que festejavam o dia dos meus anos,
Eu era feliz e ninguém estava morto.
Na casa antiga, até eu fazer anos era uma tradição de há séculos,
E a alegria de todos, e a minha, estava certa com uma religião qualquer.

No TEMPO em que festejavam o dia dos meus anos,
Eu tinha a grande saúde de não perceber coisa nenhuma,
De ser inteligente para entre a família,
E de não ter as esperanças que os outros tinham por mim.
Quando vim a ter esperanças, já não sabia ter esperanças.
Quando vim a olhar para a vida, perdera o sentido da vida.

Sim, o que fui de suposto a mim-mesmo,
O que fui de coração e parentesco.
O que fui de serões de meia-província,
O que fui de amarem-me e eu ser menino,
O que fui — ai, meu Deus!, o que só hoje sei que fui...
A que distância!...
(Nem o acho...)

O tempo em que festejavam o dia dos meus anos!
O que eu sou hoje é como a umidade no corredor do fim da casa,
Pondo grelado nas paredes...
O que eu sou hoje (e a casa dos que me amaram treme através das minhas
lágrimas),
O que eu sou hoje é terem vendido a casa,
É terem morrido todos,
É estar eu sobrevivente a mim-mesmo como um fósforo frio...

No tempo em que festejavam o dia dos meus anos...
Que meu amor, como uma pessoa, esse tempo!
Desejo físico da alma de se encontrar ali outra vez,
Por uma viagem metafísica e carnal,
Com uma dualidade de eu para mim...
Comer o passado como pão de fome, sem tempo de manteiga nos dentes!

Vejo tudo outra vez com uma nitidez que me cega para o que há aqui...
A mesa posta com mais lugares, com melhores desenhos na loiça, com mais copos,
O aparador com muitas coisas — doces, frutas o resto na sombra debaixo do alçado —,
As tias velhas, os primos diferentes, e tudo era por minha causa,
No tempo em que festejavam o dia dos meus anos...

Pára, meu coração!
Não penses! Deixa o pensar na cabeça!
Ó meu Deus, meu Deus, meu Deus!
Hoje já não faço anos.
Duro.
Somam-se-me dias.
Serei velho quando o for.
Mais nada.
Raiva de não ter trazido o passado roubado na algibeira!...
O tempo em que festejavam o dia dos meus anos!...

Em Aniversário, Álvaro de Campos vai tecendo, com indisfarçável amargura e funda melancolia, um fio de lembranças que religam seu eu adulto ao seu outro eu perdido no passado remoto de sua infância. É pela memória que o poeta revive e reconstitui sua história. A época da sua infância é caracterizada pela despreocupada inocência, pelo alheamento absoluto acerca do que se passava à sua volta. Assim, o passado avulta como o tempo feliz, tempo da alegria, da vida plena partilhada com a família:

No tempo em que festejavam o dia dos meus anos,
Eu era feliz e ninguém estava morto.
Na casa antiga, até eu fazer anos era uma tradição de há séculos,
E a alegria de todos, e a minha, estava certa com uma religião qualquer.

O cotejo da vida da criança com a do adulto gera um sentimento de aflitivo vazio, de perda irremediável de um tempo feliz não mais possível de ser recuperado no tempo presente. O presente, para o poeta, já na maturidade, nada mais é que um imenso e doloroso nada, resultante da perda definitiva do bem mais caro que possuia outrora: o sentimento de aconchego, de proteção e de contentamento, proporcionado pela vida em família. A infância assume, assim, uma conotação de tempo bom, de vida perfeita e de felicidade absoluta, metáfora do paraíso e reduto da nostalgia e da saudade.
O eu lírico expressa o seu desejo impossível de voltar à infância, seu anseio inútil de recuperar o passado. “Vejo tudo outra vez com uma nitidez que me cega para o que há aqui...”, diz o poeta tentando em vão substituir  imagem do presente obscuro pela do passado venturoso, rejeitando o presente como um tempo de dor, de ausência, de perda, de aflitivo vazio e de agônica solidão, ou seja, um tempo que já perdeu o sentido e no qual não há espaço para a alegria.
Assim, a festa de aniversário reveste o sentido simbólico de um ritual familiar no qual a criança é celebrada, torna-se o centro das atenções e do carinho de todos. No presente, ele é apenas o sobrevivente triste de si mesmo, o solitário ser humano, envelhecido, amargurado, vivendo das memórias do que já não é, do que já não tem.
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Zenóbia Collares Moreira. 


12 de novembro de 2009

Adélia Prado: Poesias


"Meu primeiro livro foi feito num entusiasmo de fundação e descoberta nesta felicidade. Emoções para mim inseparáveis da criação, ainda que nascidas, muitas vezes, do sofrimento”. Com estas palavras, Adélia Prado apresentou ao público seu primeiro livro – Bagagem - publicado em 1976, com o apoio de Carlos Drummond de Andrade, grande admirador da poeta de Diamantina.
Este primeiro livro foi efusivamente recebido pela crítica, seduzida pelo estilo diferente da autora na expressão dos seus sentimentos e da sua singular visão do mundo que a rodeava, privilegiando a poesia do cotidiano magistralmente recriado.

GRANDE DESEJO

Não sou matrona, mãe dos Gracos, Cornélia,
sou mulher do povo, mãe de filhos, Adélia.
Faço comida e como.
Aos domingos bato o osso no prato pra chamar cachorro
e atiro os restos.
Quando dói, grito ai.
quando é bom, fico bruta,
as sensibilidades sem governo.
Mas tenho meus prantos,
claridades atrás do meu estômago humilde
e fortíssima voz pra cânticos de festa.
Quando escrever o livro com o meu nome
e o nome que eu vou pôr nele, vou com ele a uma igreja,
a uma lápide, a um descampado,
para chorar, chorar, e chorar,
requintada e esquisita como uma dama.

Adélia Prado também lança seu olhar para a problemática feminina. O poema “Enredo para um tema” uma espécie de denúncia ao amordaçamento das mulheres, a sua subalternização à vontade autoritária do homem nas sociedades regidas pelo poder e supremacia do masculino, exemplifica bem a incidência do seu olhar crítico sobre a condição feminina:

ENREDO PARA UM TEMA

Ele me amava, mas não tinha dote,
só os cabelos pretíssimos e um beleza
de príncipe de estórias encantadas.
Não tem importância, falou a meu pai,
se é só por isto, espere.
Foi-se com uma bandeira
e ajuntou ouro pra me comprar três vezes.
Na volta me achou casada com D. Cristóvão.
Estimo que sejam felizes, disse.
O melhor do amor é sua memória, disse meu pai.
Demoraste tanto, que...disse D. Cristóvão.
Só eu não disse nada,
nem antes, nem depois.

Observe-se a ironia que perpassa as palavras do pai e do marido, marcando o contraste entre o romantismo fantasioso da jovem mulher e o frio poder decisório do pai e a irônica observação do marido. À mulher cabia obedecer e calar, enquanto sua vida era tratada como uma mercadoria posta em leilão, sem nenhum respeito aos seus sentimentos e à sua vontade. Claro que a poesia é um retorno a costumes que remontam a uma época muito remota, mas se institui como uma metáfora do silenciamento e da submissão da mulher onde o milenar autoritarismo do homem é privilegiado.
A problemática da mulher e as questões de gênero são abordadas na poesia adeliana bem à sua maneira de focalizar outras práticas de cunho cultural, ora se revelando identificada, ora se distanciando. Na poesia que se segue, a autora começa com uma irônica referência, de cunho feminista (se quiser pescar, pesque, mas que limpe os peixes), logo seguida de uma atitude oposta de cumplicidade no compartilhamento da tarefa doméstica e de plenitude no amor, protagonizada por um casal simples que vive um casamento harmonioso:

CASAMENTO

Há mulheres que dizem:
Meu marido, se quiser pescar, pesque,
mas que limpe os peixes.
Eu não. A qualquer hora da noite me levanto,
ajudo a escamar, abrir, retalhar e salgar.
É tão bom, só a gente sozinhos na cozinha,
de vez em quando os cotovelos se esbarram,
ele fala coisas como 'este foi difícil'
'prateou no ar dando rabanadas'
e faz o gesto com a mão.
O silêncio de quando nos vimos a primeira vez
atravessa a cozinha como um rio profundo.
Por fim, os peixes na travessa,
vamos dormir.
Coisas prateadas espocam:
somos noivo e noiva.

Adélia poetiza os acontecimentos, aparentemente, banais e insignificantes do cotidiano, familiar ou não, focalizando a mulher - seus afazeres, sua condição existencial e visão de mundo:

ENSINAMENTO

Minha mãe achava estudo
a coisa mais fina do mundo.
Não é.
A coisa mais fina do mundo é o sentimento.
Aquele dia de noite, o pai fazendo serão,
ela falou comigo:
"Coitado, até essa hora no serviço pesado".
Arrumou pão e café, deixou tacho no fogo com água quente.
Não me falou em amor.
Essa palavra de luxo.

E na apreensão dos pequenos gestos e das situações particularmente humanas que Adélia imprimirá a singularidade de sua marca, a especificidade de sua poesia e a grandeza do seu talento inovador.




6 de novembro de 2009

MANUEL BANDEIRA: Poesias


Aprecio de uma forma muito especial a poesia POÉTICA de Manuel Bandeira, pelo espírito da mudança, pelo ímpeto de ruptura com a tradição lírica da época que ela veicula e, mais que tudo, pela ousadia do poeta de erguer a bandeira do Modernismo, dando seu grito de liberdade de expressão e de defesa de uma inovadora postura estética.
Bandeira foi notável no uso do verso livre, mas não chegou a desprezar as formas fixas, chegando a compor sonetos e uma cantiga bem no estilo dos cancioneiros medievais portugueses, manifestando assim a liberdade que se permitia de expressar-se como lhe ditava a inspiração.
Sua ruptura com o Parnasianismo retardatário, ou com a tradição lírica da época, ainda mesclada de um romantismo desgastado e dessorado, era inevitável e inadiável, pois o espírito livre do poeta não conseguiria ficar prisioneiro às regras e aos limites impostos pela herança de estéticas oitocentistas.


POÉTICA

Estou farto do lirismo comedido
Do lirismo bem comportado
Do lirismo funcionário público com livro de ponto expediente
protocolo e manifestações de apreço ao Sr. diretor.
Estou farto do lirismo que pára e vai averiguar no dicionário
o cunho vernáculo de um vocábulo.
Abaixo os puristas
Todas as palavras sobretudo os barbarismos universais
Todas as construções sobretudo as sintaxes de exceção
Todos os ritmos sobretudo os inumeráveis
Estou farto do lirismo namorador

Político
Raquítico
Sifilítico
De todo lirismo que capitula ao que quer que seja
fora de si mesmo
De resto não é lirismo
Será contabilidade tabela de co-senos secretário do amante
exemplar com cem modelos de cartas e as diferentes
maneiras de agradar às mulheres, etc.
Quero antes o lirismo dos loucos
O lirismo dos bêbedos
O lirismo difícil e pungente dos bêbedos
O lirismo dos clowns de Shakespeare
— Não quero mais saber do lirismo que não é libertação.


O resultado do espírito libertário de Bandeira foi a produção de uma obra diversificada que transitou por vários estilos sem perder a sua unidade e a sua coerência estética. Para ele "... a poesia está em tudo - tanto nos amores quanto nos chinelos, tanto nas coisas lógicas como nas disparatadas". Sua linguagem prima pela simplicidade. Sua poesia não se debruçou sobre temáticas sociais, tampouco se voltou para a reflexão filosófica. Bandeira privilegiou a poesia do cotidiano, os fatos comuns do dia-a-dia, ou as suas próprias experiências.


PROFUNDAMENTE


Quando ontem adormeci
Na noite de São João
Havia alegria e rumor
Vozes cantigas e risos
Ao pé das fogueiras acesas.
No meio da noite despertei
Não ouvi mais vozes nem risos
Apenas balões
Passavam errantes
Silenciosamente


Apenas de vez em quando
O ruído de um bonde
Cortava o silêncio
Como um túnel.
Onde estavam os que há pouco
Dançavam
Cantavam
E riam
Ao pé das fogueiras acesas?
— Estavam todos dormindo
Estavam todos deitados
Dormindo
Profundamente.


Quando eu tinha seis anos
Não pude ver o fim da festa de São João
Porque adormeci.
Hoje não ouço mais as vozes daquele tempo
Minha avó
Meu avô
Totônio Rodrigues
Tomásia
Rosa
Onde estão todos eles?
— Estão todos dormindo
Estão todos deitados
Dormindo
Profundamente


É notório que os fatos do cotidiano são recriados poeticamente, a partir da visão particularizada que o poeta tem desses memos fatos, observados por um prisma todo seu, filtrados pelo crivo de sua singular visão de mundo, de sua percepção do real.

Autora: Zenóbia Collares Moreira.