28 de outubro de 2009

CAMÕES: O MUNDO DESCONCERTADO

O mundo, como a vida, é visto igualmente sob o prisma de um exacerbado negativismo pelos poetas maneiristas. Para eles, o mundo é cruel, enganador; é lugar onde imperam a maldade, a desgraça, o caos, os conflitos; onde o homem é espreitado por perigos de toda espécie, onde caminhará, como vítima de um inclemente calvário, até o instante final das suas vidas.

Integra-se nessa linha o tema do “mundo desconcertado”, que abre espaço para queixas e críticas dos poetas contra a desordem, a injustiça, a corrupção e a inversão de valores prevalecentes na sociedade do seu tempo, que Camões tão bem traduz em sua lírica, prodigalizando lamentos por tais desconcertos.

No longo poema que escreveu sobre o assunto, Oitavas a um amigo sobre o desconcerto do mundo, o poeta vai enumerando e analisando, melancólica e criticamente, o espetáculo que o mundo proporciona, protagonizado pelas mais diversas facetas que assumem os desequilíbrios sociais e morais aos quais ninguém está isento:

Quem pode ser no mundo tão quieto,
Ou quem terá tão livre o pensamento,
Quem tão exp’rimentado e tão discreto,
Tão fora, enfim, de humano entendimento
Que, ou com público efeito, ou com secreto,
Lhe não revolva e espante o sentimento,
Deixando-lhe o juízo quase incerto,
Ver e notar do mundo o desconcerto?

É importante notar que o poeta rejeita qualquer manifestação de espanto por parte dos homens sensíveis, dos homens conscientes, perante a realidade caótica de um mundo às avessas, transtornado pelo “desconcerto”.

Tem o tempo sua ordem já sabida;
o mundo não; mas anda tão confuso,
que parece que dele Deus se esquece.

Em outros passos de sua lírica, Camões torna a fazer do “desconcerto do mundo” matéria poética, mercê da reflexão sobre a condição do homem em meio à desordem, à inversão de valores e à injustiça predominantes numa sociedade cujo mal era, antes de tudo, moral:

Os bons vi sempre passar
No mundo graves tormentos
E, para mais me espantar,
Os maus vi sempre nadar
Em mar de contentamentos.

No soneto Correm turvas as águas deste rio, Camões retoma as suas reflexões sobre as manifestações do desconcerto do mundo social contrapondo-se à ordem do tempo natural em sua previsibilidade e constância:

Correm turvas as águas deste rio,
Que as do céu e as do monte turbaram;
Os campos florescidos se secaram;
Intratável se fez o vale, e frio.

Passou o verão, passou o ardente estio;
as cousas por outras se trocaram;
Os fementidos Fados já deixaram
Do mundo o regimento ou desvario.

Tem o tempo a sua ordem já sabida;
O mundo não; mas anda tão confuso,
Que parece que dele Deus se esquece.

Casos, opiniões, natura e uso
Fazem que nos pareça desta vida
Que não há nela mais que o que parece.

Também Os Lusíadas são pontilhados por versos críticos, quando não amargos, contra os destrambelhos que o poeta observa na sociedade do seu tempo. Nos exórdios, que encerram sete dos dez cantos, por exemplo, sobressaem a melancolia, o desengano, o pessimismo, a consciência do autor acerca do desconcerto do mundo e da insignificância do homem, tão genuinamente maneiristas.
O Maneirismo, conforme ficou explicitado, ultrapassa a mera expressão de uma crise espiritual. No entender de Gustav René Hocke, mais que isso, ele significa a tomada de consciência do homem acerca “de um mundo que se desagrega e de uma crise epocal.”
A essa crise, que afeta a todos, se soma, por inevitável conseqüência, uma desencantada visão do real, geradora de uma inquietude que, em muitos casos, se exaspera em amargura, suscitando versos que expressam o non sense do mundo e, nele, o papel protagonizado pelo homem: o de um ser esmagado pela aflição e invadido por impotente angústia.
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Nota:
1. Gustav René Hocke. El mundo como laberinto, v.I, p.195

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Autora: Zenóbia Collares Moreira, In O lirismo maneirista de Luís de Camões (no prelo).


17 de outubro de 2009

Rosa Lobato: A retórica do desejo e da volúpia feminina

Poetisa e romancista, Rosa Lobato de Faria nasceu em Lisboa em 1932. Escreveu e publicou vários romances, desde 1995, todos muito bem recepcionados pela crítica. O essencial de sua poesia está reunido no volume Poemas escolhidos e dispersos, de 1997. Em 1999, publicou A gaveta de baixo, um longo poema acompanhado por aquarelas do pintor Oliveira Tavares.
Do livro Memória do corpo, livro publicado em 1992, foram selecionadas algumas as poesias, para representá-la neste ensaio, tanto pela renovação estética que nele sobressai, quanto pelo sopro de refinado erotismo que perpassa as linhas e entrelinhas dos seus poemas. A “memória” que conduz a mensagem da autora neste livro segue um itinerário afetivo que se inicia com a memória materna vinculada à infância da autora, a quem dirige os mais belos versos que o amor de uma filha poderia escrever (Minha amante secreta / Meu barco na memória / Razão da minha história / e meu primeiro amor); continua com a revivescência da adolescência (O corpo adolescendo em ventos e sargaços / pôs-se a aprender a lua / as algas as marés / a descobrir em si / gritos ondas e grutas com animais marinhos).
Livro da “memória do corpo” em suas várias idades e mutações: memória da delícia mortal / de ter dezoito fomes / de ter dezoito gritos / de ter dezoito anos. Depois vem o tempo da memória da memória / do corpo que há no corpo da saudade. Mas antes de ser saudade, domínios o qual só ela devassa e conhece, a memória do corpo é de novo poema, beijo, afago. / É de novo no corpo que te trago / a exótica festa da nudez

SONETO DE ABERTURA

Outra coisa que o corpo há quem conheça.
Eu não. Somente nele me cumpro viva.
Poema, beijo, estrela, afago, intriga
só no corpo me são pés e cabeça.

E coração também que às vezes teça
razão de me saber mais que a medida
nessa trágica trama tão antiga
a que chamam ficar de amor possessa.

E é de novo poema, beijo, afago.
É de novo no corpo que te trago
A exótica festa da nudez,

E tudo quanto sinto e quanto penso
Toma corpo no corpo a que pertenço.
E aqui estou: de barro, como vês.

No longo poema que vem a seguir, a atitude do eu-lírico é de cumplicidade e de participação ativa no jogo amoroso. A retórica do desejo e da voluptuosidade feminina não negaceia palavras na expressão da fruição do prazer do próprio corpo e do corpo do homem amado, com todos os sentidos num só confundidos. O prazer visual faz a festa do olhar, seduzido pelo encantamento pelo corpo masculino

A tua boca é uva sol e mosto
vinho luar setembro tangerina
Tens o cabelo solto sobre a testa
dois olhos transviados de assassino
e dizes-me lençol lago floresta
pássaro sangue cântaro destino

Devoras os meus braços os meus ombros
os seios resplandecem de saliva
e descobres na gruta dos assombros
a vaga a lava o lume o sumo a vida

Há algo teatral nas tuas coxas
nas tuas mãos abertas de profeta
a rosa do teu corpo quase murcha
insinua a fragância mais secreta

Por fim há gritos facas e segredos
mastros erguidos sob um céu profano
e a tua nau vencidos mares e medos
navega no meu corpo a todo o pano

Desvendamos o rasto dos cometas
a rota secretíssima das aves
Só me falta a palavra dos poetas
para dizer amor como tu sabes.

Rosa Lobato não é apenas mais uma poetisa que se integra do Parnaso lusitano contemporâneo. Ela avulta no cenário das letras portuguesa como personalidade revestida de exemplar dignidade poética que transforma em expressão a vibração e a força as imagens guardadas na memória, as vivências da véspera e as promessas pressentidas do amanhã:

Eu te prometo meu corpo vivo
Eu te prometo minha centelha
minha candura meu paraíso
minha loucura meu mel de abelha
eu te prometo meu corpo vivo

Eu te prometo meu corpo branco
meu corpo brando meu corpo louco
minha inventiva meu grito rouco
tudo o que é muito tudo o que é pouco
meu corpo casto meu corpo santo

Eu te prometo meu corpo lasso
mar de aventura mar de sargaço
vaga de náufrago onda de espanto
orla de espuma do meu cansaço
eu te prometo meu doce pranto

Eu te prometo todo o meu corpo
ardendo eterno na nossa cama
como um abraço como um conforto

P´ra que me lembres além da chama
eu te prometo meu corpo morto

Memória do corpo não é o primeiro nem o único livro de poesias de Rosa Lobato de Farias, mas é,decerto, como os outros que o antecederam, uma das mais refinadas expressões da sensualidade feminina da poesia de cunho erótico, sensual ou amoroso da literatura contemporânea. A autora,  com seus dois primeiros romances já traduzidos na Alemanha e, mais recentemente, com o romance O Prenúncio das águas, publicado na França, é hoje uma referência obrigatória na nova ficção, bem como na nova poesia portuguesas.

Autora: Zenóbia Collares Moreira.

10 de outubro de 2009

Fernanda Leal: a focalização do real cotidiano.:

Nascida em Lisboa, em 1942, Fernanda Leal fez a sua estréia na literatura com o livro de poesias intitulado Do outro lado do ar, no ano de 1983. Como ocorre com outras poetas da sua geração, a autora busca no cotidiano o referente principal para seu discurso poético, seguindo uma tendência bem atual, na década de oitenta do século passado, de valorização  :

O FUMO DO MEU CIGARRO
Sopro o fumo do cigarro
No papel
Explosão sobre letras
Que se expandem.
A nuvem resplandece
O ar move-se.
Lá em baixo
Tudo morre.
E eu fico a ver a nuvem
Do meu fumo
Que esmorece.

Esta focalização do quotidiano envereda por caminhos abertos pela visão particularizada da autora acerca da realidade interior e exterior do “eu”, da sua busca de algo que ultrapassa por vezes os limites da concretude, que se projeta “do outro lado do ar”, espaço da imprecisão e da ambigüidade, mas também da renovação que o resgata a realidade circundante com outras roupagens:

Tenho um quadro na parede
E no quarto uma janela
Toda aberta, aberta ao mundo,
Sem vidros e sem cortinas.
Entra luz doirada e quente
P´la janela do meu quarto,
Tem sol por dentro e por fora.
Fica tão linda a parede
Com o mundo pendurado.
Mundo em tinta mundo em luz
E só eu posso abraçá-lo
Fico com oiro nos braços
Luz do sol que está no quadro
Da parede do meu quarto.

No silêncio abaulado
Do meu canto
Sob a sombra axadrezada
Da cortina
Escorrem cores
Devagar
Nos vidros da janela
Ainda dorme
Ao pé de mim.
E eu espero
Que ela acorde.
Devagar
Eu abro os braços
E aperto contra o peito
Este momento
No silêncio abaulado
Do meu canto.

Na poesia de Fernanda Leal, a concisão da expressão poética está ao serviço de um estilo depurado, construído pelo viés de uma rigorosa síntese, sustentada pelo uso da expressão precisa, sem volteios retóricos ou floreados metafóricos.

TÉDIO
Por aqui
Estou a viver
Horas minutos morrendo
Não há fome
Não há medo
Não há trigo
Não há vento
Só há tempo
Muito tempo
A sobrar dentro de mim.

ANOITECER
Um mundo nascido
Dentro do meu quarto,
Ao som refractado
Do canto do sol
Deslizam por mim
Cheios de penumbra
Os nós destacados
Da noite a chegar.

Variada e desconcertante, a poesia de Fernanda Leal por vezes alça vôo de lirismo pelos horizontes do real, revelando-o a partir de uma expressão subjetiva, matizada de depurado sentimento, de timbre camoniano:

DESPEDIDA

Despedida
É sentir que a alma se entristece
Por deixar um amigo ao fim do dia
É beijar em cada dia o sol que desce
Sem deixar o sol da véspera que nos grita
É correr sem ver a praia rente ao mar
E sentir a brisa branda na corrida.

Despedida
É ver fugir o vento na cortina
Quando ele se revolta ao pé da gente
É ficar à beirinha do passeio
E fechar o ar da noite em nosso peito
P´ra apagar um candeeiro em cada esquina.

Apesar da brevidade de alguns textos, estes se abrem para diversas leituras e múltiplas interpretações. A poesia de Fernanda Leal resulta de uma postura poética das mais interessantes da poesia dos anos 80, que nos faz remontar, por vezes, a uma romântica visão de mundo.
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Autora: Zenóbia Collares Moreira (O intinerário da poesia feminina portuguesa no século  XX- Ensaio.).

                                                                                  

7 de outubro de 2009

A poesia feminina portuguesa no limiar do século XX.


Na altura em que o Decadentismo e o Simbolismo irromperam nas letras portuguesas, ainda coexistiam no mesmo espaço literário o Romantismo retardatário e o já exaurido Realismo, com os quais os dois estilos finisseculares iriam disputar as preferências dos poetas. A coexistência destes estilos de época no final do século XIX resultou em uma encruzilhada de estilos que só iria se dissipar nas primeiras décadas do século XX, com o advento das novas idéias vanguardistas que preludiaram a instauração o Modernismo, em 1915. É em razão dessa evidência que ana Hatherly afirma que "nas teorias do Simbolismo vamos encontrar o germe de toda a poesia moderna, de toda a literatura moderna mesmo".
Para compreender o Decadentismo/Simbolismo como antecâmeras do Modernismo, faz-se necessário olhar para as mudanças radicais que os seus pressupostos estético-literários provocaram no panorama poético dos finais do século XIX. O Decadentismo arrastando os poetas para a busca de novas e mais intensas sensações para a expressão do pessimismo e do desencanto crepuscular “fin de siècle”, caminhando pari passu com o Simbolismo, ambos resultantes da mesma atmosfera sócio-cultural.
Estas tendências estéticas proporcionaram a evasão dos poetas para o mundo da imaginação, irmanando-se na forma de encarar a poesia enquanto finalidade em si mesma e expressão da “Arte pela Arte”, da palavra e “modo discendi” de realidades outras que têm a ver com a subjetividade profunda do sujeito e não com a materialidade dos objetos do mundo, dos fatos observáveis e da problemática social tão caras aos poetas que defenderam e praticaram em suas obras o realismo literário.
A poesia de alguns poetas modernistas anteriores ao movimento Orpheu revela a assimilação da lição haurida nos poetas simbolistas, não somente nos portugueses, mas também nos pioneiros do simbolismo francês. Exemplo paradigmático dessa relação pode ser encontrado nas poesias de Mário de Sá-Carneiro e Florbela Espanca., nas quais, transitam elementos do figurino simbolista, seja no vocabulário peculiar da “escola”, seja na opacidade da linguagem ou no uso de expressões caras ao gosto simbolista. O Decadentismo faz-se presente na obra de Judith Teixeira com a mesma exuberância que a “novidade” da vanguarda modernista.
A inclusão de Florbela Espanca, Irene Lisboa e de Judith Teixeira na galeria de poetisas que representam o lirismo feminino português a partir das primeiras décadas do século XX tem, portanto, a mesma pertinência da de outros poetas que antecederam o movimento Orpheu, instaurador do Modernismo em Portugal. 
Autora: Zenóbia Collares Moreira.