10 de outubro de 2009

Fernanda Leal: a focalização do real cotidiano.:

Nascida em Lisboa, em 1942, Fernanda Leal fez a sua estréia na literatura com o livro de poesias intitulado Do outro lado do ar, no ano de 1983. Como ocorre com outras poetas da sua geração, a autora busca no cotidiano o referente principal para seu discurso poético, seguindo uma tendência bem atual, na década de oitenta do século passado, de valorização  :

O FUMO DO MEU CIGARRO
Sopro o fumo do cigarro
No papel
Explosão sobre letras
Que se expandem.
A nuvem resplandece
O ar move-se.
Lá em baixo
Tudo morre.
E eu fico a ver a nuvem
Do meu fumo
Que esmorece.

Esta focalização do quotidiano envereda por caminhos abertos pela visão particularizada da autora acerca da realidade interior e exterior do “eu”, da sua busca de algo que ultrapassa por vezes os limites da concretude, que se projeta “do outro lado do ar”, espaço da imprecisão e da ambigüidade, mas também da renovação que o resgata a realidade circundante com outras roupagens:

Tenho um quadro na parede
E no quarto uma janela
Toda aberta, aberta ao mundo,
Sem vidros e sem cortinas.
Entra luz doirada e quente
P´la janela do meu quarto,
Tem sol por dentro e por fora.
Fica tão linda a parede
Com o mundo pendurado.
Mundo em tinta mundo em luz
E só eu posso abraçá-lo
Fico com oiro nos braços
Luz do sol que está no quadro
Da parede do meu quarto.

No silêncio abaulado
Do meu canto
Sob a sombra axadrezada
Da cortina
Escorrem cores
Devagar
Nos vidros da janela
Ainda dorme
Ao pé de mim.
E eu espero
Que ela acorde.
Devagar
Eu abro os braços
E aperto contra o peito
Este momento
No silêncio abaulado
Do meu canto.

Na poesia de Fernanda Leal, a concisão da expressão poética está ao serviço de um estilo depurado, construído pelo viés de uma rigorosa síntese, sustentada pelo uso da expressão precisa, sem volteios retóricos ou floreados metafóricos.

TÉDIO
Por aqui
Estou a viver
Horas minutos morrendo
Não há fome
Não há medo
Não há trigo
Não há vento
Só há tempo
Muito tempo
A sobrar dentro de mim.

ANOITECER
Um mundo nascido
Dentro do meu quarto,
Ao som refractado
Do canto do sol
Deslizam por mim
Cheios de penumbra
Os nós destacados
Da noite a chegar.

Variada e desconcertante, a poesia de Fernanda Leal por vezes alça vôo de lirismo pelos horizontes do real, revelando-o a partir de uma expressão subjetiva, matizada de depurado sentimento, de timbre camoniano:

DESPEDIDA

Despedida
É sentir que a alma se entristece
Por deixar um amigo ao fim do dia
É beijar em cada dia o sol que desce
Sem deixar o sol da véspera que nos grita
É correr sem ver a praia rente ao mar
E sentir a brisa branda na corrida.

Despedida
É ver fugir o vento na cortina
Quando ele se revolta ao pé da gente
É ficar à beirinha do passeio
E fechar o ar da noite em nosso peito
P´ra apagar um candeeiro em cada esquina.

Apesar da brevidade de alguns textos, estes se abrem para diversas leituras e múltiplas interpretações. A poesia de Fernanda Leal resulta de uma postura poética das mais interessantes da poesia dos anos 80, que nos faz remontar, por vezes, a uma romântica visão de mundo.
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Autora: Zenóbia Collares Moreira (O intinerário da poesia feminina portuguesa no século  XX- Ensaio.).

                                                                                  

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