31 de janeiro de 2011

O lirismo pré-romântico de Bocage...

 Ao lado de uma vertente luminosa do pré-romantismo, desenvolveu-se uma outra sombria, que inclui os poetas pré-românticos que cultuavam a infelicidade, a melancolia, as paixões fatais, destrutivas, enfim, alçavam a um primeiro plano o lado negativo do amor e da vida. Nesta vertente se afirma o talento poético privilegiado de Bocage, o mais pré-romântico dentre os poetas de sua época. Dele foram selecionados alguns sonetos nos quais aflora o seu irreprimível erotismo. E é justamente no erotismo do poeta, na explosiva sensualidade que irrompe dos seus versos, ou na ousada expressão do desejo e da paixão – inadmissíveis na poesia dos árcades – que se revela mais uma dentre as múltiplas facetas do lirismo pré-romântico bocageano. Observe-se como o poeta verbera a tibieza da amada que não lhe corresponde, com o mesmo ardor que o inflama, à vibração dos sentidos, à efervescência da sua paixão:

A frouxidão no amor é uma ofensa,
Ofensa que se eleva a grau supremo,
Paixão requer paixão; fervor e extremo
Com extremo e fervor se recompensa

Vê qual sou, vê qual és, vê que diferença!
Eu descoro, eu praguejo, eu ardo, eu gemo;
Eu choro, eu desespero, eu clamo, eu tremo;[i]
Em sombras a Razão se me condensa.

Tu só tens gratidão, só tens brandura,
E antes que um coração pouco amoroso,
Quisera ver-te uma alma ingrata e dura.

Talvez me enfadaria aspecto iroso,
Mas de teu peito a lânguida ternura
Tem-me cativo, e não me faz ditoso.

Em outro soneto, o poeta implora à noite, amiga de Amor, calada, escura, que recolha os seus véus, os seus horrores, enquanto vai gozar de mil favores:

Em deleitoso e tácito retiro,
Suspensa entre o temor, entre o desejo,
Flutua a bela, a cuja posse aspiro.

Ah! já nos braços meus a aperto e bejo!
Já, desprendendo um lânguido suspiro,
No seio do prazer se absorve o pejo.

Em outro soneto, atormentado pelo voraz ciúme, Bocage execra a impotência da Razão que não consegue pôr freios aos seus excessos amorosos:

 Sobre estas duras, cavernosas fragas,
Que o marinho furor vai carcomendo,
Me estão negras paixões n’alma fervendo
Como fervem no pego as crespas vagas.

Razão feroz, o coração me indagas,
De meus erros a sombra esclarecendo,
E vás nele (ai de mim!) esclarecendo,
De agudas ânsias venenosas chagas.

Cego a meus males, surdo a teu reclamo,
Mil objectos de horror co’a ideia eu corro,
Solto gemidos, lágrimas derramo.

Razão, de que me serve o teu socorro?
Mandas-me não amar, eu ardo, eu amo;
Dizei-me que sossegue, eu peno, eu morro!

O soneto acima, é dos mais impetuosos de Elmano Sadino e, também, um dos que condensam mais elementos caracterizadores  do estilo pré-romântico. Observe-se na primeira estrofe a projeção do tumulto interior do eu-lírico nos elementos da natureza, seguida do jogo entre razão e sentimento, no qual a força cegadora da paixão avassaladora sobrepõe-se às luzes do pensamento racional, arrastando o apaixonado à dor e a agonias tenebrosas.

19 de janeiro de 2011

Na mão de Deus, soneto de A. de Quental




Na mão de Deus, na sua mão direita,


Descansou afinal meu coração.

Do palácio encantado da Ilusão
Desci a passo e passo a escada estreita.

Como as flores mortais, com que se enfeita

A ignorância infantil, despojo vão,

Depus do Ideal e da Paixão
A forma transitória e imperfeita.

Como criança, em lôbrega jornada,

Que a mãe leva no colo agasalhada

E atravessa, sorrindo vagamente,

Selvas, mares, areias do deserto…

Dorme o teu sono, coração liberto,

Dorme na mão de Deus eternamente!
__________
COMENTÁRIO
Esse soneto, escrito na maturidade do poeta, quando já estava doente da depressão que o levaria ao suicídio, é singularíssimo, considerando ser Antero ateu. Nele, o eu-lírico afirma-se livre do mundo ilusório e efêmero do Ideal e da Paixão que moveram seus arroubos da mocidade. Libertou o coração, desceu a escada estreita da Ilusão que lhe propiciara tanta angústia e sofrimento, abandonou o mundo das aparências, das coisas perecíveis e imperfeitas encontrou a paz nirvânica que buscava sob a proteção de Deus.

Os versos do último terceto revelam através de uma imagem mística a plenitude da paz que serena o coração do poeta, enfim "liberto" a dormir na mão de Deus eternamente…
Dizem os biógrafos de Antero que este havia pedido a Oliveira Martins que lesse esse soneto no momento de sua morte. Infelizmente seu pedido não pode ser atendido, porque o poeta morreu sozinho, no banco de uma praça, onde acabou a sua atormentada e infeliz vida, com um tiro de revólver no ouvido.


Zenóbia Collares Moreira

1 de janeiro de 2011

O lirismo cultista de D. Francisco Manuel de Mello



Parto, parto-me enfim, Senhora minha;
O fado o quis assim, que nos reparte.
Mas quem cuidareis vós que é que parte?
Parte aquele que só partir convinha.


E verdade que parte o que caminha,
Mas parte-se e caminha por tal arte.
Que cá vos deixa aquela ilustre parte,
Que não terá melhor, nem melhor tinha.

Ao céu, ao mar, ao vento, ao lenho, ao linho,
A vida entregarei, que os satisfaça.
Temo quem dos perigos não tem medo.

A vinda temo mais do que o caminho,
Porque, para me dar maior desgraça,
Sei que me há-de trazer a Sorte cedo.

Soneto tipicamente barroco, habilmente construído pelo grande poeta D. Francisco Manuel de Mello, conforme os princípios do Cultismo, estilo que corresponde ao jogo de palavras e imagens, visando ao rebuscamento da forma do texto, à ornamentação e à erudição vocabular.
Neste soneto, o autor lança mão do jogo com as palavras, mais precisamente, com o verbo partir significando tanto o ato de “ir embora”, como a fragmentação interior gerada pelo conflito instaurado por dois sentimentos opostos: a necessidade imperiosa de partir e o desejo desesperado de ficar. Soma-se a esse jogo de palavras termos derivados do verbo partir, como o verbo “repartir” (com o sentido de separar, apartar) , o substantivo “parte”, além de metáforas revestidas de opacidade que obscurece o sentido e exige maior esforço mental aos que lêem o soneto.
Se atentarmos para a mensagem do texto, veremos que se trata de uma poesia de amor impossível do eu-lírico por uma “Senhora” inacessível ou indiferente ao seu sentimento. Depreende-se que a partida do apaixonado homem foi determinada pela conveniência da dama, quiçá casada, que o deseja bem longe de si (como convinha).
O eu - lírico declara que parte com a alma e o coração partidos (Parto, parto-me), conforme determinou “o Fado” que os separa (reparte). Todavia, declara que apenas seu corpo partirá, como “convinha”, parte apenas a parte de si mesmo que é visível, mas partirá vazia, porque deixará sua alma com a Senhora amada. Deixar-lhe-á “aquela ilustre parte” de seu ser, o que nele há de melhor para lhe oferecer.
O discurso de despedida do eu - lírico configura-se como uma tentativa de sensibilizar a “Senhora” e, quiçá, de fazê-la se sentir culpada por sua desgraça e eventual morte, na arriscada viagem, realizada em uma embarcação à vela, ao sabor dos caprichos do vento e do mar revolto (Ao céu, ao mar, ao vento, ao lenho, ao linho, / A vida entregarei, que os satisfaça). A consciência do perigo que o ameaça não esmorece o ímpeto de afastar-se, mesmo sabendo que poderá perder a vida (Temo quem dos perigos não tem medo).
Para esse homem que padece do mal do amor impossível, a partida é menos cruel que um eventual retorno, pois, para ele, desgraça ainda maior é a certeza de que “a Sorte” (o destino) o trará de volta sem que tenha esquecido a sua desdita, sem que tenha a esperança de ter o amor da sua senhora..