12 de maio de 2010

O lirismo homoerótico de Judith Teixeira


As poesias de Florbela Espanca e de Judith Teixeira ecoam no panorama poético português como os primeiros vagidos de uma liberdade de expressão até então desconhecida no lirismo feminino, escandalizando a falsa pudicícia da moral burguesa, melindrando a susceptibilidade dos defensores da pureza, da nobreza e da dignidade da linguagem poética que, como tal, excluía a verbalização da sexualidade. Nas primeiras décadas do século XX, qualquer incursão na área da sexualidade, do erotismo poético, provocava a execração e a rejeição no meio social, principalmente se partia de uma figura feminina.
Judith Teixeira nunca ocultou o seu fascínio pelas inovações (estou em arte, na vanguarda”), seu espírito de liberdade e de independência colocava-a acima dos preconceitos e hipocrisias sociais, especialmente a dos seus aguerridos censores. Para ela, “as atitudes de Arte, nada têm a ver com as atitudes da vida”. Daí o à vontade com que constrói o seu universo lírico “como sua meta representação, sua proposta lúdica e narcísica e o encontro com um conjunto de espelhos nos quais a autora se ficcionaliza”.[1]
Judith reconhece o poder da luxúria como conceito chave de sua ficção... e em sua realidade ficcionalizada. Na primeira estrofe do poema, que se segue, está todo o ritual que preludia a entrega espontânea do corpo: prazeroso jogo do amor sem pressa, a fruição do beijo, da voluptuosidade sem culpas:

Assim...de mansinho...
une a tua boca à minha boca.
Amor, assim... devagarinho...
entorna mais sombra nos teus olhos!...
E sonha, e sofre aindaa luxúria do meu beijo...
Oh, como a volúpia é linda,
Crispando o teu desejo!
Asas longuíssimas, esguias,
tumultuando indominadas
no vendaval das nossas sensações!
Escuta amor: este turbado rumorcálido e dolorido,
é o eco de tantas vezes repetido
das nossas fervidase magoadas crispações!...
Lá fora, o dia morre tristemente.
Não vejas, meu bem,
oh! não queiras ver o céu nostálgico,
opacescentee agonizante!...
Tenha ainda mais, na ternura dos teus braços,
a graça perturbadado meu corpo feminino...
E sofre... queima ainda
a linda Sultana do teu desejo,
na brasa so teu beijo
agônico...soluçante...e que não finda!

Em alguns poemas a carga dramática do discurso poético atinge um ponto altíssimo. Suas palavras surgem, em cada verso, impulsionadas pela força do desejo, sempre urgente e inadiado. O poema intitulado A minha colcha encarnada (1922) é tecido pela embriagues dos sentidos, pela luxúria e o poema Mais beijos (1925), não menos inflamado pela sofreguidão dos beijos desejados: ei-los, a seguir.

Devagar...outro beijo...outro ainda...
O teu olhar, misterioso e lento,
vejo desgrenhara cálida tempestade
que me desvaira o pensamento!
Mais beijos!...
Deixa que eu, endoidecida,
incendeie a tua boca e domine a tua vida!
Sim, amor...
deixa que se alongue mais
este momento breve!...-
que o meu desejo subindo
solte a rubra asae nos leve.

Esquecida durante décadas, somente após a revolução dos cravos, em 1974, chega ao fim a proibição de autores condenados ao ostracismo em consequentemente, retornam todos do esquecimento a que estiveram relegados pela intolerância ditatorial salazarista. Judith Teixeira, falecida, desde 1959, foi então lembrada por Couto Viana com estas palavras: “É irresistível: leio as poesias de Judith Teixeira e, separando muito trigo de muito joio, penso-as merecedoras de melhor sorte do que têm estado votadas.”
Um dos índices que remete para o homoerotismo nas poesias de Judith Teixeira é a ausência de indicadores de gênero masculino identificando a pessoa a quem ela dirige as suas confissões de amor, ou com a qual vive a experiência luxuriosa que tematiza dos poemas. Quando não faz alusão clara ao gênero feminino, como nas poesias A estátua, A minha amante, dentre outras, refere-se à pessoa amada ou objeto de desejo com a expressão neutra “amor” ou “meu amor”.
Judith Teixeira não foi menos importante que Florbela Espanca, enquanto exponenciais da literatura feminina das primeiras três décadas do século XX. A problematização em torno de sua obra também originou-se de motivos semelhantes aos que atingiram a obra florbeliana: sua poesia, como a dela, era avançada demais para a época em que foi publicada, principalmente pelo apelo erótico que transita nas linhas e entrelinhas de seus versos, desafiando os tabus sociais que impunham a lei do silêncio para a exteriorização da intimidade feminina, que amordaçavam os gritos do corpo, quando não puniam a audácia dos que ousavam transgredi-los, através das várias formas que revestem a rejeição e a censura condenatória.
Nas obras poéticas de Florbela e de Judite Teixeira, já se pode ver, avant la lettre, toda a dinâmica de um projeto libertário da mulher que iria, décadas depois, eclodir e conquistar a permanência nos textos femininos, já explicitamente indicado textualmente através da construção da imagem de uma mulher atuante na experiência amorosa. Quando Florbela Espanca faleceu, em 1939, Judite Teixeira já dividia com ela o espaço da qualidade e do talento literários, desde 1923.
As poesias de Florbela e de Judith foram “a irrupção da linguagem enterrada da paixão”, foram a pedra inaugural, a abertura dos caminhos, a fertilização do terreno onde se fincariam as raízes da poesia erótica feminina na literatura portuguesa. Todavia, as suas poesia não é ainda a festa do erotismo triunfante, da sexualidade feminina resgatada, do corpo liberto que se instauraria principalmente com Teresa Horta, secundada por Rosa Farias Lobato, Ana Hartherly e Luiza Neto Jorge, dentre outras, bem mais ousadas e transgressivas que elas.

Autora: Zenóbia Collares Moreira Cunha (In O Itinerário da poesia feminina portuguesa - Século XX- Ensaio a ser publicado brevemente. Direitos autorais reservados)
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Nota : [1] Alicia Perdomo, "Judith Teixeira, uma escritora portuguesa vanguardista dos anos 20" In



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