5 de dezembro de 2009

A hipertrofia do eu em Augusto dos Anjos


Paraibano, nascido em 1884, Augusto dos Anjos morreu muito cedo, aos trinta anos. Deixou uma obra breve,contundente e inovadora, surgida em um ambiente adverso. O único livro deixado pelo poeta -EU- é perpassado por intenso sofrimento, é eivado de verdades apreendidas e de protestos acerca das dores que lhe dilaceravam. Seu livro provocou um grande abalo nos críticos da época (1912), chocados com o estranho estilo e a inusitada temática da obra. Portando a recepção de críticos e de intelectuais dividiu-se entre os que lhe teciam elogios e entre os que lhe lançavam impropérios. Todavia, todos eram unânimes em relação à originalidade da obra, com sua expressão poética técnico-científica, escatológica e grotesca absolutamente oposta à usual nas primeiras décadas do século XX, em plena “belle époque”.
Na visão abalizada de Otto Maria Carpeaux, Augusto dos Anjos não teve sorte na vida: ninguém o compreendeu, ninguém lhe leu os versos nos cafés superficialmente afrancesados do Rio de Janeiro. Quem salvou a fama póstuma de Augusto dos Anjos foi seu povo, do nordeste e do interior do Brasil. A abundância de estranhas expressões científicas e de palavras esquisitas em seus versos atraiu os leitores semicultos que não compreenderam nada de sua poesia e ficavam, no entanto, fascinados pelas metáforas de decomposição em seus versos assim como estavam em decomposição suas vidas. Nada menos que 31 edições do seu livro EU dão testemunho dessa imensa popularidade que é o reverso da medalha - repeliu os leitores exigentes, de tal modo que, até durante a fase modernista da literatura brasileira, os versos de Augusto dos Anjos passaram por exemplos de mau gosto de uma época superada.
Foram alguns poucos leitores dedicados que conseguiram reivindicar e restabelecer a verdadeira grandeza de Augusto dos Anjos: Álvaro Lins, Antônio Houaiss, Francisco de Assis Barbosa e eu mesmo. Relendo o EU, sempre descobrimos coisas novas, estranhas e admiráveis. Existem em Augusto dos Anjos inúmeros casos assim, de descoberta de um sentido novo das palavras. Nem sempre percebemos claramente os motivos da nossa admiração".
Descrente do amor e da possibilidade de ser amado, o poeta centralizou no próprio EU  o sujeito dos seus versos, gravitando obsessivamente em torno de seus problemas existenciais, dos seus sentimentos, pensamentos, angústias e dores, sempre tematizados com amargo e denso pessimismo.  Esta hipertrofia do "eu" , evidente no próprio título do seu único livro, perrassa todos os seus poemas.

Idealização

Falas de amor, e eu ouço tudo e calo
O amor na Humanidade é uma mentira.
É. E é por isto que na minha lira
De amores fúteis poucas vezes falo.

O amor! Quando virei por fim a amá-lo?!
Quando, se o amor que a Humanidade inspira
É o amor do sibarita e da hetaíra,
De Messalina e de Sardanapalo?

Pois é mister que, para o amor sagrado,
O mundo fique imaterializado
- Alavanca desviada do seu fulcro -

E haja só amizade verdadeira
Duma caveira para outra caveira,
Do meu sepulcro para o teu sepulcro?!


Versos íntimos
Vês?! Ninguém assistiu ao formidável
Enterro de tua última quimera.
Somente a ingratidão - esta pantera -
Foi tua companheira inseparável!

Acostuma-te à lama que te espera!
O Homem, que, nesta terra miserável,
Mora, entre feras sente inevitável
Necessidade de também ser fera.

Toma um fósforo. Acende teu cigarro!
O beijo, amigo, é a vespera do escarro,
A mão que afaga é a mesma que apedreja.

Se alguém causa inda pena tua chaga,
Apedreja essa mão vil que te afaga,
Escarra nessa boca que te beija

Ao Luar
Quando, à noite, o Infinito se levanta
À luz do luar, pelos caminhos quedos
Minha tátil intensidade é tanta
Que eu sinto a alma do Cosmos nos meus dedos!

Quebro a custódia dos sentidos tredos
E a minha mão, dona, por fim, de quanta
Grandeza o Orbe estrangula em seus segredos,
Todas as coisas íntimas suplanta!

Penetro, agarro, ausculto, apreendo, invado
Nos paroxismos da hiperestesia,
O Infinitésimo e o Indeterminado...

Transponho ousadamente o átomo rude
E, transmudado em rutilância fria,
Encho o Espaço com a minha plenitude

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Autora: Zenóbia Collares Moreira Cunha



Um comentário:

EVA-RN (ZCMC) disse...

ABRINDO O HALOSCAN PARA OS COMENTARISTAS. FELIZ FIM DE SEMANA PARA TODOS.