O poema Aniversário se inscreve na fase depressiva da obra do poeta Álvaro de Campos, caracterizada pelo intimismo, pela depressão, pelo cansaço e pela melancolia perante a incapacidade das realizar os seus projetos.
As saudades da infância e uma visão sombria da vida são também temas recorrentes nessa fase, como pode ser constatado na leitura do longo de Aniversário.
As saudades da infância e uma visão sombria da vida são também temas recorrentes nessa fase, como pode ser constatado na leitura do longo de Aniversário.
No dia em que festejavam o dia dos meus anos,
Eu era feliz e ninguém estava morto.
Na casa antiga, até eu fazer anos era uma tradição de há séculos,
E a alegria de todos, e a minha, estava certa com uma religião qualquer.
No TEMPO em que festejavam o dia dos meus anos,
Eu tinha a grande saúde de não perceber coisa nenhuma,
De ser inteligente para entre a família,
E de não ter as esperanças que os outros tinham por mim.
Quando vim a ter esperanças, já não sabia ter esperanças.
Quando vim a olhar para a vida, perdera o sentido da vida.
Sim, o que fui de suposto a mim-mesmo,
O que fui de coração e parentesco.
O que fui de serões de meia-província,
O que fui de amarem-me e eu ser menino,
O que fui — ai, meu Deus!, o que só hoje sei que fui...
A que distância!...
(Nem o acho...)
O tempo em que festejavam o dia dos meus anos!
O que eu sou hoje é como a umidade no corredor do fim da casa,
Pondo grelado nas paredes...
O que eu sou hoje (e a casa dos que me amaram treme através das minhas
lágrimas),
O que eu sou hoje é terem vendido a casa,
É terem morrido todos,
É estar eu sobrevivente a mim-mesmo como um fósforo frio...
No tempo em que festejavam o dia dos meus anos...
Que meu amor, como uma pessoa, esse tempo!
Desejo físico da alma de se encontrar ali outra vez,
Por uma viagem metafísica e carnal,
Com uma dualidade de eu para mim...
Comer o passado como pão de fome, sem tempo de manteiga nos dentes!
Vejo tudo outra vez com uma nitidez que me cega para o que há aqui...
A mesa posta com mais lugares, com melhores desenhos na loiça, com mais copos,
O aparador com muitas coisas — doces, frutas o resto na sombra debaixo do alçado —,
As tias velhas, os primos diferentes, e tudo era por minha causa,
No tempo em que festejavam o dia dos meus anos...
Pára, meu coração!
Não penses! Deixa o pensar na cabeça!
Ó meu Deus, meu Deus, meu Deus!
Hoje já não faço anos.
Duro.
Somam-se-me dias.
Serei velho quando o for.
Mais nada.
Raiva de não ter trazido o passado roubado na algibeira!...
O tempo em que festejavam o dia dos meus anos!...
Em Aniversário, Álvaro de Campos vai tecendo, com indisfarçável amargura e funda melancolia, um fio de lembranças que religam seu eu adulto ao seu outro eu perdido no passado remoto de sua infância. É pela memória que o poeta revive e reconstitui sua história. A época da sua infância é caracterizada pela despreocupada inocência, pelo alheamento absoluto acerca do que se passava à sua volta. Assim, o passado avulta como o tempo feliz, tempo da alegria, da vida plena partilhada com a família:
No tempo em que festejavam o dia dos meus anos,
Eu era feliz e ninguém estava morto.
Na casa antiga, até eu fazer anos era uma tradição de há séculos,
E a alegria de todos, e a minha, estava certa com uma religião qualquer.
O cotejo da vida da criança com a do adulto gera um sentimento de aflitivo vazio, de perda irremediável de um tempo feliz não mais possível de ser recuperado no tempo presente. O presente, para o poeta, já na maturidade, nada mais é que um imenso e doloroso nada, resultante da perda definitiva do bem mais caro que possuia outrora: o sentimento de aconchego, de proteção e de contentamento, proporcionado pela vida em família. A infância assume, assim, uma conotação de tempo bom, de vida perfeita e de felicidade absoluta, metáfora do paraíso e reduto da nostalgia e da saudade.
O eu lírico expressa o seu desejo impossível de voltar à infância, seu anseio inútil de recuperar o passado. “Vejo tudo outra vez com uma nitidez que me cega para o que há aqui...”, diz o poeta tentando em vão substituir imagem do presente obscuro pela do passado venturoso, rejeitando o presente como um tempo de dor, de ausência, de perda, de aflitivo vazio e de agônica solidão, ou seja, um tempo que já perdeu o sentido e no qual não há espaço para a alegria.
Assim, a festa de aniversário reveste o sentido simbólico de um ritual familiar no qual a criança é celebrada, torna-se o centro das atenções e do carinho de todos. No presente, ele é apenas o sobrevivente triste de si mesmo, o solitário ser humano, envelhecido, amargurado, vivendo das memórias do que já não é, do que já não tem.
____________________
____________________
Zenóbia Collares Moreira.