Sóror Maria do Céu nasceu em 1658 e faleceu, já nonagenária, em 1753. Nascida em uma família pertencente à nobreza, aos dezoito anos de idade ingressou no Convento da Esperança, onde chegou a abadessa. Sob o criptônimo Marina Clemência, que se dizia Religiosa franciscana no Convento da Ilha de São Miguel, escreveu, além de poesias, comédias alegórico-morais e hagiográficas para uso didático nos conventos. A fama da poetisa-freira ultrapassou os muros do claustro e as suas obras foram mandadas imprimir com a aprovação e os louvores dos censores do santo Ofício, do Ordinário e do Paço. Fr. José de Oliveira, censor do Ordinário, qualificou Sóror Maria do Céu como “assombro do sexo feminino, inveja do masculino, e admiração de ambos”. A autora deixou uma vasta obra publicada.
A poetisa se afirma, não somente no âmbito do lirismo feminino, como no panorama da literatura seiscentista como uma das poetisas mais bem dotadas no manejo da palavra poética, mantendo um equilíbrio e um comedimento formais nos quais se diluem as excrescências do verso gongórico. Do seu livro Obras Várias e Admiráveis, foi colhido o poema Mortal doença, no qual pode ser observada a habilidade da autora na utilização da metáfora barroca.
O poema, como um todo, se organiza a partir do uso reiterado de metáforas da doença consumidora, ou seja, do significado do pecado por ela representado. O recurso à repetição, tão do gosto barroco, e do gerúndio no final de cada verso da primeira, terceira e quarta estrofes, intensifica o sentido da ação por ele expressa. Fato este decorrente da idéia de sua continuidade, de seu prolongamento no tempo, em contraste com os verbos no tempo presente, utilizados no refrão, acompanhado do advérbio já, conferindo à temporalidade da ação um caráter imediato e definitivo. O paralelismo da construção dos versos e do refrão, tanto confere à noção do pecado um caráter obsessivo, quanto remete para a construção própria das ladainhas, sugerida e reforçada pela construção anafórica do poema:
MORTAL DOENÇA
Na febre do amor próprio estou ardendo,
No frio da tibieza tiritando,
No fastio ao bem desfalecendo,
Na sezão do meu mal delirando,
Na fraqueza do ser vou falecendo,
Na inchação da soberba arrebentando.
Na dureza do peito atormendada,
Na sede dos alívios consumida,
No sono da preguiça amadornada,
No desmaio à razão amortecida,
Nos temores da morte trespassada,
No soluço do pranto esmorecida,
Já morro, já feneço, já termino,
Vão-me chamar o Médico Divino.
Na dor de ver-me assim, vou desfazendo,
Nos sintomas do mal descoroçoando,
Na sezão de meu dano estou tremendo,
No risco da doença imaginando,
No fervor de querer-me enardecendo,
Na tristeza de ver-me sufocando,
Já morro, já feneço, já termino,
Vão-me chamar o Médico Divino.
Vou ao pasmo do mal emudecendo,
À sombra da vontade vou cegando,
Aos gritos do delito emouquecendo,
Na tristeza de ver-me sufocando,
Já morro, já feneço, já termino,
Vão-me chamar o Médico Divino.
Além de escrever na língua materna, a poetisa compôs muitos poemas em castelhano, alguns insertos em sua obra Enganos do Bosque. Dentre eles, chama a atenção o que se segue por sua curiosa construção, espécie de glosa cujos versos do mote vão sendo desmembrados e usados como fecho de cada estrofe:
Cobri-me de flores,
Que muero de amores.
Por que de mi aliento el ayre
No lleve el olor sublime,
Cobridme
Sea, porque todo es uno
Alientos de amor y olores
De flores
De azucenas y jasmines
Aqui la mortaja espero,
Que muero.
Si me perguntais de que
Respondo, en dulces rigores:
De amores
Os poemas de Sóror Maria do Céu encontram-se disseminados por textos narrativos em prosa de caráter alegórico como A Preciosa (1731); Enganos do Bosque, Desenganos do Rio (1736-1741), e ainda em um volume que reúne textos diversos e foi publicado com o título de Obras Várias e Admiráveis (1735).
Na Preciosa estão alguns dentre os melhores sonetos e glosas da poetisa, inclusive os que dirige à Clemência, seu alter-ego poético: Já por Clemência deixei/ tudo mais que ela não fosse.../ quero-lhe bem, acabou-se:
Ai! Minha Pastora,
Divina Clemência:
Quem me dera ver-vos
Guardando as ovelhas...
[...]
Quem me dera ver-vos
Entre as montanhezas,
O leite nas bilhas,
E fruta nas cestas,
O suave favo;
E vós nesta oferta
Mais doce que o mel,
Mais branda que a cera.
Ai! Minha Pastora,
Divina Clemência.
[...]
Perguntais-me se é Clemência
Minha pastora feliz?
Sim, sim.
Porque tão depressa amei
Tão depressa respondi,
Sim,sim?
Porque o amor não tem não,
Quem quem ama, só tem sim.
Numa das suas éclogas, Sóror Maria do Céu revela uma outra feliz faceta do seu variado repertório, elogiada pelos estudiosos de sua obra:
Montanheza que foste à fonte,
Como suspeito;
Que trouxeste água nos olhos,
Fogo no peito.
Quem te trocou no caminho,
Serrana dos olhos negros?
Pois te conheço só hoje
Pelo que te desconheço?
Como suspeito
Que encontrastes teus cuidados
A roubar-te tais assossegos.
Suas tentativas de alçar vôos na área da prosa filosófica não foram tão felizes quanto o foi na expressão do seu incontestável talento lírico. Na obra da freira-poeta podem ser observadas duas fases bem distintas e, quiçá, simultâneas: a fase do divino, ou seja, a dos seus escritos religiosos e moralizantes e a fase de expressão do humano, ou seja, a da mulher culta e artista sedenta de expandir a sua humanidade, seus sentimentos e sua visão de mundo.
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Autora:Zenóbia Collares Moreira.