28 de abril de 2010

Camões: Endechas à Bárbara Escrava

Neste poema, mais uma vez, Camões volta a fazer uso da “medida velha”. As endechas são constituídas por cinco estrofes, em redondinha menor (versos de cinco sílabas), em conformidade com a herança da poesia palaciana, famosa pelos jogos de galanteria. Nesta e em outras composições escritas na mocidade, o poeta não exprime a amargura e o desengano expressos nas composições posteriores às suas vicissitudes existenciais.
Endechas à Bárbara Cativa é um canto de louvor à beleza de uma mulher negra e escrava que despertara a paixão do poeta. Para esboçar o perfil da sua musa de ébano, Camões instaura um jogo antíteses estabelecendo o contraste entre a negritude da Cativa e a alvura da mulher branca e loura, celebrada, petrarquianamente, pelos poetas seus contemporâneos. Assim, os cabelos negros de Bárbara são mais belos que os louros, e seus olhos possuem “Ua graça viva/ que lhe mora. / para ser senhora de quem é cativa”.
Antes de dar continuidade aos comentários, já iniciados, vamos à leitura das endechas, uma das composições mais geniais de Camões, especialmente pela liberdade e independência com que rompe com o cânone renascentista que exalta a beleza loura, semelhante à Laura tão exaltada por Petrarca, a quem todos imitavam e reverenciavam.

ENDECHAS À BÁRBARA CATIVA

Aquela cativa
Que me tem cativo,
Porque nela vivo
Já não quer que viva.
Eu nunca vi rosa
Em suaves molhos,
Que pera meus olhos
Fosse mais fermosa.

Nem no campo flores,
Nem no céu estrelas
Me parecem belas
Como os meus amores.
Rosto singular,
Olhos sossegados,
Pretos e cansados,
Mas não de matar.

Ua graça viva,
Que neles lhe mora,
Pera ser senhora
De quem é cativa.
Pretos os cabelos,
Onde o povo vão
Perde opinião
Que os louros são belos.

Pretidão de Amor,
Tão doce a figura,
Que a neve lhe jura
Que trocara acor.
Leda mansidão,
Que o siso acompanha;
Bem parece estranha,

Mas bárbara não.
Presença serena
Que a tormenta amansa;
Nela, enfim, descansa
Toda a minha pena.
Esta é a cativa
Que me tem cativo;
E. pois nela vivo,
É força que viva

Nesta composição, como em outras, nas quais descreve mulheres amadas, o poeta retrata a Cativa mais do ponto de vista moral que físico, dando ênfase a pólos contrastantes como: “cativa-cativadora”; “cativa-Senhora”; “pretidão-brancura de neve”. “Assim, Camões constrói um retrato impreciso quanto ao aspecto físico de Bárbara, privilegiando os componentes morais e espirituais de sua personalidade: “olhos sossegados”, “ua graça viva”, “doce figura”, leda de costumes bárbaros”, “presença serena”, “cativa submissa que me tem cativo”, “leda mansidão”, etc.
Bárbara escrava afirma-se como uma mulher exótica, primitiva, mas dotada de extraordinária leveza, de uma suavidade marcadamente espiritualizada e superior, semelhante ao perfil de mulher exaltado por Petrarca. Todavia, o negror dos seus olhos, a pretidão da sua pele e dos seus cabelos, assinalam o imensurável distanciamento da Cativa em relação ao tipo de Mulher – branca, loura, de faces rosadas - introduzida na literatura pela poesia petrarquiana. Laura era o modelo, a moda e a paixão lírica dos poetas que, como Petrarca, atribuíam à mulher loura e branca o protótipo da beleza ideal.
Camões ousadamente rompe com esse modelo consagrado erigindo seu canto de exaltação à uma negra de pele e cabelos escuros, por quem se sentia atraído, como está bem evidente nas primeira e última estrofes do poema, por meio dos trocadilhos que usou: “aquela cativa que me cativa / porque nela vivo já não quer que viva”; “Esta é a cativa que me tem cativo/ e, pois nela vivo, / É força que viva”.
De certo modo, a Cativa se assemelha à mulher presente nas cantigas dos trovadores medievais e na poesia clássica, ou seja: a mulher inacessível, endeusada, cuja graça mais sedutora está no olhar, nos “olhos sossegados”, descrito pelo poeta como “Ua graça viva / que neles lhe mora. / Para ser Senhora de quem é cativa”. Assim, pelo poder de sedução que emana de sua pessoa, Bárbara Cativa torna-se “Senhora” do seu Senhor, dona do seu dono.
Vale salientar que os versos em redondilha menor conferem um ritmo leve e ligeiro, de uma suavidade ímpar à expressão do envolvimento amoroso do poeta, bem como à felicidade que lhe proporcionava a “presença serena, a doce figura” daquela mulher estrangeira e de outra raça por quem se apaixonara. Essa é uma das raras poesias em que Camões fala de um amor correspondido e venturoso, que se refere à experiência da paixão sem o travo do desengano e da dor da perda, como viria a fazer na maturidade amargurada, quando se tornou um dos exponenciais do Maneirismo português.

Autora: Zenóbia Collares Moreira

25 de abril de 2010

Um vilancete de Camões.


A vertente tradicionalista da lírica camoniana, cultivada pelo poeta em sua juventude, caracteriza-se pela espontaneidade, pela leveza e pela simplicidade, típicas das composições dos poetas do período da chamada Poesia Palaciana, compiladas no Cancioneiro Geral, que utilizavam as redondilhas maior e menor com grande habilidade.  Para os estudiosos da lírica camoniana, as redondilhas do poeta têm tanta importância quanto os seus sonetos, canções, elegias, etc.
A sedução das redondilhas camoniana radica na dicotomia requinte/ingenuidade, bem como em sua habilidade no desenvolvimento do tema oferecido pelo mote. Este apresenta-se sob o aspecto de uma curta citação ou de uma estrofe de três versos, colhidos de uma velha cantiga popular espanhola ou portuguesa, quando não é da própria autoria do poeta.
O Vilancete, que se segue, é formado de um mote de três versos e por duas voltas (glosas) de sete versos (redondilha maior). Trata-se, portanto, de uma composição na “medida velha”. Observe-se que o último verso do mote é repetido no final de cada verso das duas voltas.

Descalça vai para a fonte
Leonor pela verdura;
Vai fermosa, e não segura.

Leva na cabeça o pote,
O testo nas mãos de prata,  -------(mãos de prata = mãos alvas)
Cinta de fina escarlata, ----- ------(escarlata = tecido vermelho de lã)          
Sainho de chamalote; ------------ -(sainho = casaco curto)
Traz a vasquinha de cote, ---------(vasquinha de cote = saia com muitas pregas de uso diário)
Mais branca que a neve pura.
Vai fermosa e não segura.

Descobre a touca a garganta,
Cabelos de ouro entrançado -----------(cabelos louros arrumado em tranças)
Fita de cor de encarnado,
Tão linda que o mundo espanta.
Chove nela graça tanta,
Que dá graça à fermosura.
Vai fermosa e não segura.

Para quem está habituada com as “Cantigas de Amigo” a leitura do vilancete “Descalça vai para a fonte", provoca a evocação da imagem da donzela que vai à fonte, È num cenário semelhante, que Camões traça o retrato de Leonor.
O poeta contempla a jovem donzela que se encaminha para a fonte, cumprindo uma tarefa bem típica em sua época. Ela desperta a sua atenção tanto pela beleza de sua imagem, integrada no cenário bucólico verdejante, quanto por vislumbrar em seu semblante certa inquietação interior (vai fermosa e não segura), derivada, quiçá, de uma sua incerteza de ordem afetiva: ela tem a formosura que seduz, mas não está protegida contra a paixão. 
A descrição externa de Leonor é detalhada, colorida como uma aquarela, parecendo resultar da idealização do poeta que hiperboliza a sua formosura (tão linda que o mundo espanta), aproximando-a dentro dos padrão petrarquiano: loura e muito alva.
Este vilancete estabelece um acentuado contrastante com o soneto “Um mover de olhos brando e piedoso”, no qual Camões intertextualiza um soneto de Petrarca, ocupando-se em traçar um retrato moral e psicológico da mulher amada, sem nenhuma preocupação em descrever seu aspecto físico.

Zenóbia Collares Moreira

20 de abril de 2010

O Amor na Poesia Palaciana.


A poesia, que se segue, de João Ruiz de Castelo Branco, compilada no Cancioneiro Geral, de Garcia de Resende, tem ainda um parentesco muito próximo com as cantigas da época dos trovadores, como a súplica chorosa e apaixonada, o sofrimento por amor e o platonismo que bem caracterizam a poesia trovadoresca. Todavia, apesar de cultivarem a mesma concepção do amor do período medieval, já se observa a irrupção do erotismo e da expressão do desejo carnal, que será tão apreciada pelos poetas renascentista.


Senhora, partem tam tristes
Meus olhos por vós, meu bem,
Que nunca tam tristes vistes
Outros nenhuns por ninguém.

Tam tristes, tam saudosos,
Tam doentes da partida.
Tam cansados, tam chorosos,
Da morte mais desejosos
Cem mil vezes que da vida.

Partem tam tristes os tristes,
Tam fora de esperar bem,
Que nunca tam tristes vistes
Outros nenhuns por ninguém.

João Ruiz de Castelo Branco, nesta cantiga, desenvolve um tema privilegiadíssimo pelos trovadores medievais e pelos poetas quinhentistas: o tema da separação da mulher amada, da tristeza derivada da partida, também desenvolvido por Camões, em sua lírica.
Na cantiga acima, o eu-lírico assume a postura do amante desiludido de encontrar correspondência ao seu amor no coração da mulher amada, indiferente aos seus sentimentos (partem tam tristes os tristes,/ tam fora de esperar bem). Ao mesmo tempo em que se lamenta, o eu-lirico procura despertar sentimentos de culpa na sua “Senhora” pelo seu desgosto e por sua partida (Que nunca tam tristes vistes / Outros nenhuns por ninguém).
O vocativo “Senhora”, iniciando o primeiro verso da cantiga, caracteriza a mulher em conformidade com a tipologia própria do período trovadoresco: a mulher de classe superior a do poeta, inacessível, distante e indiferente aos apelos amorosos do homem apaixonado.
Vale observar a enorme importância que é dada aos “olhos”, ao longo das estrofes. Eles são personificados e, num processo metonímico, passam a significar o próprio eu-lírico (partem meus olhos= eu parto, intensificando o sentido das palavras e da dor do amante desprezado).
Tal personificação concede uma poderosa expressividade à dimensão do padecimento do amante, ao seu estado de espírito melancólico e turvado pela tristeza, pela saudade, pelo pranto copioso e, por conseqüência, enfatiza o seu desejo exagerado de morrer, hiperbolicamente traduzido no verso “Da morte mais desejosos / Cem mil vezes que da vida”.
A anáfora impõe-se, também, como um elemento intensificador de grande expressividade no contexto da cantiga (Tam tristes, tam saudosos, /Tam doentes da partida / Tam doentes, tam chorosos [...] Tam fora de esperar bem).
Apesar da frivolidade da maioria da produção poética do Período da Poesia Palaciana, compilada no Cancioneiro Geral, alguns poetas chamam a nossa atenção, em razão da qualidade das suas composições, especialmente os pré-renascentistas e, depois, adeptos da “novidade” renascentista, como Bernardim Ribeiro, João de Aguiar, D. Diogo de Noronha, dentre outros.
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Autora: Zenóbia Collares Moreira