Neste poema, mais uma vez, Camões volta a fazer uso da “medida velha”. As endechas são constituídas por cinco estrofes, em redondinha menor (versos de cinco sílabas), em conformidade com a herança da poesia palaciana, famosa pelos jogos de galanteria. Nesta e em outras composições escritas na mocidade, o poeta não exprime a amargura e o desengano expressos nas composições posteriores às suas vicissitudes existenciais.
Endechas à Bárbara Cativa é um canto de louvor à beleza de uma mulher negra e escrava que despertara a paixão do poeta. Para esboçar o perfil da sua musa de ébano, Camões instaura um jogo antíteses estabelecendo o contraste entre a negritude da Cativa e a alvura da mulher branca e loura, celebrada, petrarquianamente, pelos poetas seus contemporâneos. Assim, os cabelos negros de Bárbara são mais belos que os louros, e seus olhos possuem “Ua graça viva/ que lhe mora. / para ser senhora de quem é cativa”.
Antes de dar continuidade aos comentários, já iniciados, vamos à leitura das endechas, uma das composições mais geniais de Camões, especialmente pela liberdade e independência com que rompe com o cânone renascentista que exalta a beleza loura, semelhante à Laura tão exaltada por Petrarca, a quem todos imitavam e reverenciavam.
ENDECHAS À BÁRBARA CATIVA
Aquela cativa
Que me tem cativo,
Porque nela vivo
Já não quer que viva.
Eu nunca vi rosa
Em suaves molhos,
Que pera meus olhos
Fosse mais fermosa.
Nem no campo flores,
Nem no céu estrelas
Me parecem belas
Como os meus amores.
Rosto singular,
Olhos sossegados,
Pretos e cansados,
Mas não de matar.
Ua graça viva,
Que neles lhe mora,
Pera ser senhora
De quem é cativa.
Pretos os cabelos,
Onde o povo vão
Perde opinião
Que os louros são belos.
Pretidão de Amor,
Tão doce a figura,
Que a neve lhe jura
Que trocara acor.
Leda mansidão,
Que o siso acompanha;
Bem parece estranha,
Mas bárbara não.
Presença serena
Que a tormenta amansa;
Nela, enfim, descansa
Toda a minha pena.
Esta é a cativa
Que me tem cativo;
E. pois nela vivo,
É força que viva
Nesta composição, como em outras, nas quais descreve mulheres amadas, o poeta retrata a Cativa mais do ponto de vista moral que físico, dando ênfase a pólos contrastantes como: “cativa-cativadora”; “cativa-Senhora”; “pretidão-brancura de neve”. “Assim, Camões constrói um retrato impreciso quanto ao aspecto físico de Bárbara, privilegiando os componentes morais e espirituais de sua personalidade: “olhos sossegados”, “ua graça viva”, “doce figura”, leda de costumes bárbaros”, “presença serena”, “cativa submissa que me tem cativo”, “leda mansidão”, etc.
Bárbara escrava afirma-se como uma mulher exótica, primitiva, mas dotada de extraordinária leveza, de uma suavidade marcadamente espiritualizada e superior, semelhante ao perfil de mulher exaltado por Petrarca. Todavia, o negror dos seus olhos, a pretidão da sua pele e dos seus cabelos, assinalam o imensurável distanciamento da Cativa em relação ao tipo de Mulher – branca, loura, de faces rosadas - introduzida na literatura pela poesia petrarquiana. Laura era o modelo, a moda e a paixão lírica dos poetas que, como Petrarca, atribuíam à mulher loura e branca o protótipo da beleza ideal.
Camões ousadamente rompe com esse modelo consagrado erigindo seu canto de exaltação à uma negra de pele e cabelos escuros, por quem se sentia atraído, como está bem evidente nas primeira e última estrofes do poema, por meio dos trocadilhos que usou: “aquela cativa que me cativa / porque nela vivo já não quer que viva”; “Esta é a cativa que me tem cativo/ e, pois nela vivo, / É força que viva”.
De certo modo, a Cativa se assemelha à mulher presente nas cantigas dos trovadores medievais e na poesia clássica, ou seja: a mulher inacessível, endeusada, cuja graça mais sedutora está no olhar, nos “olhos sossegados”, descrito pelo poeta como “Ua graça viva / que neles lhe mora. / Para ser Senhora de quem é cativa”. Assim, pelo poder de sedução que emana de sua pessoa, Bárbara Cativa torna-se “Senhora” do seu Senhor, dona do seu dono.
Vale salientar que os versos em redondilha menor conferem um ritmo leve e ligeiro, de uma suavidade ímpar à expressão do envolvimento amoroso do poeta, bem como à felicidade que lhe proporcionava a “presença serena, a doce figura” daquela mulher estrangeira e de outra raça por quem se apaixonara. Essa é uma das raras poesias em que Camões fala de um amor correspondido e venturoso, que se refere à experiência da paixão sem o travo do desengano e da dor da perda, como viria a fazer na maturidade amargurada, quando se tornou um dos exponenciais do Maneirismo português.
Autora: Zenóbia Collares Moreira
Autora: Zenóbia Collares Moreira