12 de fevereiro de 2011

F. Pessoa: A criança que fui chora na estrada


A criança que fui chora na estrada.
Deixei-a ali quando vim ser quem sou;
Mas hoje, vendo que o que sou é nada,
Quero ir buscar quem fui onde ficou.

Ah, como hei-de encontrá-lo? Quem errou
A vinda tem a regressão errada.
Já não sei de onde vim nem onde estou.
De o não saber, minha alma está parada.

Se ao menos atingir neste lugar
Um alto monte, de onde possa enfim
O que esqueci, olhando-o, relembrar,

Na ausência, ao menos, saberei de mim,
E, ao ver-me tal qual fui ao longe, achar
Em mim um pouco de quando era assim. 

Fernando Pessoa

A criança que fui chora na estrada” é mais um poema pessoano que evoca a infância do poeta, na nostálgica provocada pela lembrança da ventura perdida, levando no turbilhão dos anos que passaram o mistério e a doçura daquele mundo infantil perfeito. Tais lembranças despertam no eu-lírico dolorosa angústia derivada da impossibilidade de recuperar esse bem perdido inapelavelmente. 


O poema se organiza a partir da oposição temporal passado/presente. O adulto sente que a a criança que ele foi não sumiu de forma absoluta, ele sabe que ela permanece viva e oculta na pessoa que se tornou no presente, pronta para ser resgatada. Todavia, a criança não se sente feliz, chora , sofre pelo abandono sofrido por quem abriu mão dela para se tornar diferente.

O eu-lírico sente-se insatisfeito por não ser mais do que é. Seu desejo é poder voltar no tempo até chegar ao momento em que foi feliz, voltando a ser criança que não pensa, que apenas sente. Mas, sabe que podem ocorrer erros ao se tentar voltar ao passado, que é possível não mais encontrar a criança que agasalha em si mesmo, ficando sem norte para saber de onde veio e de onde está. Este estado de alienação do sujeito significa que se sente perdido em si mesmo, parado, infeliz e sem possibilidades de sentir, de fazer progresso (com a alma parada).

Zenóbia Collares Moreira

6 de fevereiro de 2011

O "locus horrendus" na poesia de Bocage.

Na lírica bocageana, a evocação do Locus Horrendus, mais das vezes, ultrapassa a mera descrição de um cenário lúgubre e medonho, propício ao desafogo das mágoas do poeta, para se constituir como projeção de sua paisagem interior conturbada pela onda emocional de tormentos e agonias, provocada pelos seus estados de alma depressivos, pelos dolorosos sentimentos e experiências vitais. A paisagem  torna-se, assim, uma espécie de espelho do “eu”, como no soneto em que se projeta na natureza convulsionada pela fúria dos seus elementos, a própria violência da saudade e do ciúme, causadores do seu tormento e agonia:

O céu, de opacas sombras abafado,
Tornando mais medonha a noite feia;
Mugindo sobre as rochas, que salteia,
O mar, em crespos montes levantado;

Desfeitos em furacões o vento irado;
Pelos ares zunindo a solta areia;
O pássaro nocturno, que vozeia
No agoureiro cipreste além pousado,

Formam quadro terrível, mas aceito,
Mas grato aos olhos meus, grato à fereza
Do ciúme e saudade, a que ando afeito

Quer no horror igualar-me a Natureza;
Porém cansa-se em vão, que no meu peito
Há mais escuridade, há mais tristeza. 

A expressão poética da dor, da tristeza, em Bocage, elege o aspecto do mundo objetivo que melhor metaforiza o seu mundo interior e mais se ajusta à sua perene crise existencial: a natureza noturna, ensombrada e terrífica (ó Noite amiga,/ por cuja escuridão suspiro há tanto!), o mistério das trevas com seus tenebrosos habitantes (Fantasmas vagos, mochos piadores,/ Inimigos como eu da claridade! (...) Quero a vossa medonha sociedade). Por esta via, Bocage representa o ponto culminante do sentimentalismo sombrio no Pré-Romantismo português. Em sua obra, esta vertente sombria e saturniana do sentimentalismo encontra a sua expressão justamente no comprazimento do poeta com a infelicidade, com a solidão em lugares apartados, lúgubres e medonhos, no gosto da tristeza, das paixões avassaladoras e, enfim, na sedução pela morte e suas metáforas. No caso de Bocage, a própria Noite funciona na metáfora da morte:

Oh retrato da Morte! Ó Noite amiga,
Por cuja escuridão suspiro há tanto!
[...]
Noite escura e feia
Que profundo silêncio me rodeia
Neste deserto bosque, à luz vedado!
[...]
Consola-me este horror, esta tristeza,
Porque a meus olhos se afigura a morte
No silêncio total da Natureza.


A morte é, na poesia de Bocage, um tema tão recorrente como o fora na poesia dos poetas barrocos. Todavia, na literatura pré-romântica, o tema mudou de roupagem, adquiriu outros sentidos, na medida em que a força motivadora que leva os poetas à evocação da morte já não é a mesma. Assim, na lírica pré-romântica portuguesa, inexiste a meditação de ordem religiosa e filosófica acerca da morte, em suas vinculações com a vida eterna, com a temporalidade do homem, etc. A morte é evocada como alívio para os males de amor, para os padecimentos da vida. O poeta pré-romântico, de modo geral, não se volta para os aspectos religiosos que envolvem a idéia da morte senão em situação em que a vida está a perigo e o confronto com a morte é inevitável. Então, surgem poesias de contrição e de súplica a Deus de uma venturosa eternidade


Zenóbia Collares Moreira . A poesia pre-romântica portuguesa. 2000