A criança que fui chora na estrada.
Deixei-a ali quando vim ser quem sou;
Mas hoje, vendo que o que sou é nada,
Quero ir buscar quem fui onde ficou.
Ah, como hei-de encontrá-lo? Quem errou
A vinda tem a regressão errada.
Já não sei de onde vim nem onde estou.
De o não saber, minha alma está parada.
Se ao menos atingir neste lugar
Um alto monte, de onde possa enfim
O que esqueci, olhando-o, relembrar,
Na ausência, ao menos, saberei de mim,
E, ao ver-me tal qual fui ao longe, achar
Em mim um pouco de quando era assim.
Fernando Pessoa
“A criança que fui chora na estrada” é mais um poema pessoano que evoca a infância do poeta, na nostálgica provocada pela lembrança da ventura perdida, levando no turbilhão dos anos que passaram o mistério e a doçura daquele mundo infantil perfeito. Tais lembranças despertam no eu-lírico dolorosa angústia derivada da impossibilidade de recuperar esse bem perdido inapelavelmente.
O poema se organiza a partir da oposição temporal passado/presente. O adulto sente que a a criança que ele foi não sumiu de forma absoluta, ele sabe que ela permanece viva e oculta na pessoa que se tornou no presente, pronta para ser resgatada. Todavia, a criança não se sente feliz, chora , sofre pelo abandono sofrido por quem abriu mão dela para se tornar diferente.
O eu-lírico sente-se insatisfeito por não ser mais do que é. Seu desejo é poder voltar no tempo até chegar ao momento em que foi feliz, voltando a ser criança que não pensa, que apenas sente. Mas, sabe que podem ocorrer erros ao se tentar voltar ao passado, que é possível não mais encontrar a criança que agasalha em si mesmo, ficando sem norte para saber de onde veio e de onde está. Este estado de alienação do sujeito significa que se sente perdido em si mesmo, parado, infeliz e sem possibilidades de sentir, de fazer progresso (com a alma parada).
Zenóbia Collares Moreira