23 de junho de 2011

Ramos Rosa: Poema dum Funcionário Cansado




A noite trocou-me os sonho
e as mãos dispersou-me os amigos
tenho o coração confundido
e a rua é estreita estreita
em cada passo as casas engolem-nos
sumimo-nos
estou num quarto só
num quarto só com os sonhos trocados
com toda a vida às avessas a arder num quarto só
*
*
Sou um funcionário apagado um funcionário triste
a minha alma não acompanha a minha mão
Débito e Crédito Débito e Crédito
a minha alma não dança com os números
tento escondê-la envergonhado
o chefe apanhou-me com o olho lírico
na gaiola do quintal em frente
e debitou-me na minha conta de empregado
Sou um funcionário cansado dum dia exemplar
Por que não me sinto orgulhoso de ter cumprido o meu dever?
Por que me sinto irremediavelmente perdido no meu cansaço?
*
*
Soletro velhas palavras generosas
Flor rapariga amigo menino
irmão beijo namorada
mãe estrela música
São as palavras cruzadas do meu sonho
palavras soterradas na prisão da minha vida
isto todas as noites do mundo numa só noite comprida
num quarto só
*
*

COMENTÁRIO

Este é um dos mais belos e intimistas poemas de António Ramos Rosa. Iniciado com um desabafo do eu - lírico, um poeta impregnado pelo sentimento poético do mundo, voltado para as coisas sensíveis da vida, para a leveza dos afetos e seduzido pela palavra inspirada pelo sonho da escrita. Solitário, sem amigos e despojado dos sonhos, nutre uma visão pessimista do mundo que o rodeia e oprime, sentindo-se emparedado pelas ruas estreitas, nas quais as casas são espécies de monstros antropofágicos que engolem as pessoas e onde entre as paredes todos somem, só restando a solidão.

Confuso, o eu lírico, obsessivamente refere ao espaço no qual vive a sua solidão, a sua angústia e a sua confusão interior: o quarto, reiteradamente evocado, como um refrão denunciador da sua agonia solitária. O quarto para onde retorna todas as noites com o coração pesado e a alma triste.Na segunda estrofe, delineiam-se as razões da sua insatisfação: a árida atividade que exerce como funcionário público. Nela, o eu - lírico traça ironicamente o seu perfil de “funcionário público apagado”, triste e inadaptado com a mesmice estiolante da rotina de um trabalho que não é compatível com sua alma de “poeta”.

A estéril lida com contas e contabilidade, cálculos e números, os gestos mecânicos, rotineiros e repetitivos fazem parte de um mundo material, de um tipo de atividade, do qual sua alma lírica não participa (“a minha alma não acompanha a minha mão / Débito e Crédito Débito e Crédito / a minha alma não dança com os números / tento escondê-la envergonhado).

Fica claro que para o eu - lírico, a existência sem a poesia, ou sem o ato de escrever, é uma aridez desoladora, um grande vazio. Assim, na última estrofe ele tenta fruir um momento de evasão, no qual soletra as “palavras generosas” que povoam seu imaginário poético, transitam em seu sonho, sem as quais sua vida é nada.

Zenóbia Collares Moreira Cunha



4 de junho de 2011

Cruz e Sousa : Antífona


João da Cruz e Sousa nasceu em 1861, na antiga Desterro, filho do casal de negros alforriados, Guilherme da Cruz, mestre-pedreiro, e Carolina Eva da Conceição. Cruz e Sousa, desde pequeno recebeu a tutela e uma educação refinada de seu ex-senhor, o Marechal Guilherme Xavier de Sousa - de quem adotou o nome de família, Sousa. A esposa de Guilherme Xavier de Sousa, Dona Clarinda Fagundes Xavier de Sousa, não tinha filhos, e passou a proteger e cuidar da educação de João. Aprendeu francês, latim e grego, além de ter sido discípulo do alemão Fritz Müller, com quem aprendeu Matemática e Ciências Naturais.
Aos vinte anos já dirigia um jornal. Em função da hostilidade dos brancos, deixou sua terra. Percorreu o Brasil e foi recebido em vários lugares como um grande poeta. Casou-se com Gavita, negra, com quem teve quatro filhos. Após a morte do pai, da mãe e de dois filhos, lutou ainda com a loucura da mulher e com a miséria. Acometido de uma tuberculose violenta, faleceu pobre e sozinho, em Minas Gerais, sendo transportado para o Rio de Janeiro em um vagão de cavalos. Teve um sepultamento digno graças à iniciativa de José do Patrocínio que cuidou do funeral e pagou todas as despesas.
Cruz e Sousa é o maior representante do Simbolismo brasileiro e do continente sul e norte americano, além de figurar entre os cinco poetas mais consagrados da literatura simbolista internacional. Sua poesia é reconhecida como uma das cinco melhores entre os simbolistas de todo o mundo, a melhor entre os sul-americanos. Sua temática, seu vocabulário e sua forma de expressão são nitidamente Simbolistas. Publicou os seguintes livros: Tropos e Fantasias, em colaboração com Virgílo Várzea; Missal e Broqueis; Evocações; Faróis; Últimos sonetos.
ANTÍFONA
I
Ó Formas alvas, brancas, Formas claras

De luares, de neves, de neblinas!...
Ó Formas vagas, fluidas, cristalinas...
Incensos dos turíbulos das aras...
II
Formas do Amor, constelarmente puras,
De Virgens e de Santas vaporosas...
Brilhos errantes, mádidas frescuras
E dolências de lírios e de rosas...
III
Indefiníveis músicas supremas,
Harmonias da Cor e do Perfume...
Horas do Ocaso, trêmulas, extremas,
Réquiem do Sol que a Dor da Luz resume...
IV
Visões, salmos e cânticos serenos,
Surdinas de órgãos flébeis, soluçantes...
Dormências de volúpicos venenos
Sutis e suaves, mórbidos, radiantes...
V
Infinitos espíritos dispersos,
Inefáveis, edênicos, aéreos,
Fecundai o Mistério destes versos
Com a chama ideal de todos os mistérios.
VI
Do Sonho as mais azuis diafaneidades
Que fuljam, que na Estrofe se levantem
E as emoções, sodas as castidades
Da alma do Verso, pelos versos cantem.
VII
Que o pólen de ouro dos mais finos astros
Fecunde e inflame a rime clara e ardente...
Que brilhe a correção dos alabastros
Sonoramente, luminosamente.
VIII
Forças originais, essência, graça
De carnes de mulher, delicadezas...
Todo esse eflúvio que por ondas passe
Do Éter nas róseas e áureas correntezas...
IX
Cristais diluídos de clarões alacres,

Desejos, vibrações, ânsias, alentos,
Fulvas vitórias, triunfamentos acres,
Os mais estranhos estremecimentos...
X
Flores negras do tédio e flores vagas
De amores vãos, tantálicos, doentios...
Fundas vermelhidões de velhas chagas
Em sangue, abertas, escorrendo em rios...
XI
Tudo! vivo e nervoso e quente e forte,
Nos turbilhões quiméricos do Sonho,
Passe, cantando, ante o perfil medonho
E o tropel cabalístico da Morte...

Antífona foi escrito com a finalidade de ser usado como introdução de “Broqueis”, livro de poesias publicado em 1893 que assinala o início do Simbolismo no Brasil. É constituído de 54 poemas, entre eles Antífona, poema que abre o livro como uma “profissão de fé” simbolista e passou a ser considerado uma espécie de Arte Poética do autor. Os estudiosos da literatura brasileira não discrepam acerca do valor e da grandiosidade do poema, construído com a notável habilidade de Mestre do maior representante do movimento simbolista brasileiro.
Para a profunda fruição desse extraordinário poema, o mais sensato é desistir de entendê-lo de forma plena, deixando-se penetrar pelo que ele sugere e insinua, por sua musicalidade, pela riqueza das suas metáforas e pela sensualidade e misticismo que veicula.. A insistência em decodificá-lo não irá muito longe, em razão da opacidade de sua linguagem, eivada de imagens herméticas, portanto de difícil compreensão, do que nele é comunicado.
O que fica claro em “Antífona” é a insistente invocação do poeta a formas para que fecundem o mistério dos seus versos. Broqueis traz em seu bojo as incontidas angústias que afligem o poeta que, de forma subjetiva e pelo viés de suave misticismo, de velada religiosidade, inicia o poema com uma espécie de evocação à “formas” vagas, a forças indefinidas, à elementos diáfanos, ao transcendente que paira sobre tudo, pedindo inspiração para seus versos: “Ó Formas alvas... Ó Formas vagas...Formas do Amor... Visões, Cânticos serenos... Forças originais... Infinitos espíritos dispersos... Fecundai o Ministério destes versos...”
A Sinestesia, de suma importância na estética simbolista, está presente no poema, como nos versos “Que brilhe a correção dos alabastros / Sonoramente, luminosamente” nos quais os advérbios “sonoramente” e “luminosamente” sugerem,, de forma inequívoca, a presença da música e da cor, unindo a sensação auditiva a uma outra visual. Nesse outro verso - “Harmonias da Cor e do Perfume” - a sugestão sinestésica é expandida pela evocação olfativa do cheiro em harmonia com a cor, remetendo para sensações visuais e olfativas.
Está bem nítida, desde a primeira estrofe de Antífona a obsessão do poeta pela cor branca, expressa por meio de sinônimos ou de palavras que sugerem a brancura. Especialmente na primeira estrofe figuram nove representações dessa cor: alvas, brancas, claras, luares, neves, neblinas. Vale chamar a atenção para outras características próprias do Simbolismo, como o uso da alegoria presente no reiterado uso de letras maiúsculas em algumas palavras (Formas, Virgens, Cor, Perfume, Sonhos, dentre outras), o uso das aliterações cujos efeitos sonoros emprestam musicalidade aos versos.
Vale ainda salientar as palavras que são usadas para veicularem uma espécie de cromatismo in- tencional, funcionando como salpicos de cores e matizes diversos, ao longo do poema:
O branco - “alvas”, “brancas”, “claras”, “luares”, “neves”, “neblinas”, “cristalinas”, “lírios”, “alabastros”, “aras”
O azul - “Éter”(espaço celeste), “azuis diafaneidades”
O amarelo - “pólen de ouro”, “áureas correntezas”, “Fulvas”, “do sol.
O vermelho - “Horas do Ocaso”, “vermelhidões”, “chagas em sangue.
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Zenóbia Collares Moreira.