30 de dezembro de 2014

Cecília Meireles: aspectos de sua obra poética


A obra de Cecília, embora identificada com os pressupostos estético do Modernismo, também recebeu influências do Simbolismo e de elementos auridos em diferentes estilos de época. Nestes termos, a autora não se inscreve em uma corrente literária definida, afirmando-se como dotada de uma notável sensibilidade que fez dela uma excepcional poeta lírica. O lirismo de Cecília ultrapassa o âmbito da poesia, transitando nas linhas e entrelinhas das suas crônicas, tornando-as uma espécie de prosa poética de impregnada de sentimento.

Carnaval 

Com os teus dedos feitos de tempo silencioso,
Modela a minha mascara, modela-a…
E veste-me essas roupas encantadas
Com que tu mesmo te escondes, ó oculto!
Põe nos meus lábios essa voz
Que só constrói perguntas,
E, à aparência com que me encobrires,
Dá um nome rápido, que se possa logo esquecer…
Eu irei pelas tuas ruas,
Cantando e dançando…

E lá, onde ninguém se reconhece,
Ninguém saberá quem sou,
À luz do teu Carnaval…
Modela a minha mascara!
Veste-me essas roupas!
Mas deixa na minha voz a eternidade
Dos teus dedos de silencioso tempo…
Mas deixa nas minhas roupas a saudade da tua forma…
E põe na minha dança o teu ritmo,
Para me conduzir… 
                       Viagem e Vaga Música

Com o livro Viagem, de 1938, Cecília Meireles encontra seu estilo definitivo. O verso melódico sustenta os motivos fundadores de sua poética – sonho, solidão, mar, canção, melancolia, nuvens, céu, morte... 
Obra que consagra a autora, além da interpretação de uma trajetória espiritual, Viagem apresenta poemas que refletem sobre o fazer poético, em indagações ainda encontradas em livros posteriores. 
A obra Viagem, juntamente com Vaga Música, inscrevem-se no panorama do Modernismo brasileiro e assinalam sua singularidade primordial. São poemas marcados pela engrandecimento dos elementos mais simples da existência, os quais adquirem significação simbólica. 
A obra, pela capacidade lírica inovadora, retrata uma permanente viagem interior; intimista e introspectiva, sugerindo num tom leve e delicado, temas de solidão, melancolia, fuga pelo sonho, o vazio do existir, saudades e sofrimento. Essas características percorrerão toda sua obra lírica. 
Poetisa da fugacidade, da precariedade, da provisoriedade, Cecília Meireles, desde Viagem, marca essa noção capital de fluidez em vários dos elementos da natureza que surgem ao longo de sua poesia, dentro de um fluxo mais amplo que é o do próprio canto. 
Utilizando-se de jogos de palavras, metáforas, sinestesias, dentre outras figuras de linguagem, o eu-lírico investiga o processo de criação literária. Tal questão é tematizada em várias poesias, como se verifica no poema 
Motivo:
Eu canto porque o instante existe
e a minha vida está completa.
Não sou alegre nem sou triste:
sou poeta.
Irmão das coisas fugidias, 
não sinto gozo nem tormento.
Atravesso noites e dias
no vento.
Se desmorono ou se edifico, 
se permaneço ou me desfaço, 
- não sei, não sei. Não sei se fico
ou passo.
Sei que canto. E a canção é tudo.
Tem sangue eterno a asa ritmada.
E um dia sei que estarei mudo:
- mais nada.

Viagem é composto por doze poemas, que podem ser interpretados como doze etapas de uma trajetória espiritual, onde vida e poesia se confundem, da mesma maneira que a poeta e a natureza. Formalmente, convivem lado a lado versos de sete e oito sílabas e versos livres. 

Viagem

Fez tanto luar que eu pensei em teus olhos antigos
e nas tuas antigas palavras.
O vento trouxe de longe tantos lugares em que estivemos
que tornei a viver contigo enquanto o vento passava.

Houve uma noite que cintilou sobre o teu rosto 
e modelou tua voz entre as algas.
Eu moro, desde então, nas pedras frias que o céu protege
e estudo apenas o ar e as águas.

Coitado de quem pôs sua esperança
nas praias fora do mundo...
- Os ares fogem, viram-se as água,
mesmo as pedras, com o tempo, mudam.

Há em Viagem, em Vaga Música (1942), as claridades clássicas, as melhores sutilezas do gongorismo, a nitidez dos metros e dos consoantes parnasianos, os esfumados de sintaxe e as toantes dos simbolistas, as aproximações inesperadas dos super-realistas. Tudo bem assimilado e fundido numa técnica pessoal, segura de si e do que quer dizer. Vaga música marcou definitivamente o clímax de sua carreira como escritora. A obra mostra sua poesia contínua que avança para uma virtuosidade implacável, com uma preocupação crescente com a imagem do mar, sugerindo a fluidez plástica e a adaptação de sua personalidade interna.
Uma das formas poéticas mais utilizadas em Vaga música é a da canção, o que vem indicado, à maneira antiga, já nos títulos: "Pequena canção da onda", "Canção da menina antiga", "Canção excêntrica", "Canção quase inquieta", "Canção do caminho", "Canções do mundo acabado", "Canção quase melancólica", "Canção de alta noite", "Canção mínima", entre muitas outras semelhantes.
Essa forma é na verdade largamente usada em toda a obra de Cecília Meireles, não constituindo uma peculiaridade apenas desse livro.

Note o poema seguinte extraído de Vaga música:

Pequena canção
Pássaro da lua,
que queres cantar,
nessa terra tua,
sem flor e sem mar?
Nem osso de ouvido
Pela terra tua.
Teu canto é perdido,
pássaro da lua...
Pássaro da lua,
por que estás aqui?
Nem a canção tua
precisa de ti!
No poema escolhido, algumas características da canção aparecem nitidamente: a forte atuação do som e do ritmo, a impregnação da realidade exterior pela emoção, o apagamento dos fatos, a indeterminação quanto ao tempo e ao espaço. Essas características se ligam intimamente. Assim, a musicalidade mais enfatizada na canção indica a fusão entre o eu e o mundo exterior. A alma invade o mundo objetivo, que aparece apenas como um reflexo daquela. Isso leva a um apagamento dos contornos da vida exterior e, conseqüentemente, a frases mais brandas, mais musicais, pois, mais do que definir um acontecimento, busca-se criar uma atmosfera emocional, para o que a música contribui fortemente. Esse relaxamento dos contornos implica também o relaxamento das noções de tempo e espaço, elementos sempre difíceis de precisar numa canção, que parece no mais das vezes se desenvolver no sem-tempo e no sem-espaço. É o sem-tempo e o sem-espaço da vida interior.