23 de maio de 2015

Fernando Pessoa. Tabacaria

Tabacaria

Não sou nada. 
Nunca serei nada. 
Não posso querer ser nada. 
À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo.
Janelas do meu quarto, 
Do meu quarto de um dos milhões do mundo que ninguém sabe quem é
(E se soubessem quem é, o que saberiam?), 
Dais para o mistério de uma rua cruzada constantemente por gente, 
Para uma rua inacessível a todos os pensamentos, 
Real, impossivelmente real, certa, desconhecidamente certa, 
Com o mistério das coisas por baixo das pedras e dos seres, 
Com a morte a pôr humidade nas paredes e cabelos brancos nos homens, 
Com o Destino a conduzir a carroça de tudo pela estrada de nada.
Estou hoje vencido, como se soubesse a verdade. 
Estou hoje lúcido, como se estivesse para morrer, 
E não tivesse mais irmandade com as coisas 
Senão uma despedida, tornando-se esta casa e este lado da rua 
A fileira de carruagens de um comboio, e uma partida apitada 
De dentro da minha cabeça, 
E uma sacudidela dos meus nervos e um ranger de ossos na ida.
Estou hoje perplexo como quem pensou e achou e esqueceu. 
Estou hoje dividido entre a lealdade que devo 
À Tabacaria do outro lado da rua, como coisa real por fora, 
E à sensação de que tudo é sonho, como coisa real por dentro.
Falhei em tudo. 
Como não fiz propósito nenhum, talvez tudo fosse nada. 
A aprendizagem que me deram, 
Desci dela pela janela das traseiras da casa, 
Fui até ao campo com grandes propósitos. 
Mas lá encontrei só ervas e árvores, 
E quando havia gente era igual à outra. 
Saio da janela, sento-me numa cadeira. Em que hei-de pensar?
Que sei eu do que serei, eu que não sei o que sou? 
Ser o que penso? Mas penso ser tanta coisa! 
E há tantos que pensam ser a mesma coisa que não pode haver tantos! 
Génio? Neste momento 
Cem mil cérebros se concebem em sonho génios como eu, 
E a história não marcará, quem sabe?, nem um, 
Nem haverá senão estrume de tantas conquistas futuras. 
Não, não creio em mim. 
Em todos os manicómios há doidos malucos com tantas certezas! 
Eu, que não tenho nenhuma certeza, sou mais certo ou menos certo? 
Não, nem em mim... 

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Tabacaria. Comentário


Datado de 15/1/1928, o poema "Tabacaria" enquadra-se na terceira fase poética de Álvaro de Campos, denominada a fase pessoal (Jacinto Prado Coelho) ou "Fase Pessimista", que vai de 1916 a 1935 (ano da morte de Pessoa). Desiludido dos esforços das fases anteriores, "Sensacionista" e "Futurista", Campos deixa-se cair num pessimismo intenso, marcado com um forte regresso das memórias da sua infância e a consciência de que ficou (e está) sozinho no mundo.
A linguagem é muito mais moderada do que nas fases anteriores. Campos assume-se agora como um poeta plenamente desiludido com a vida, e muitos dos seus poemas - como Tabacaria - ganham um ritmo deliberadamente lento e retrospectivo, em clara contraposição com, por exemplo, as grandes Odes do seu período futurista.
O tema do poema é a dimensão da solidão interior face à vastidão do Universo exterior. A Tabacaria acaba por ser um símbolo que não tem valor próprio - verdadeiramente importante é que esse símbolo faz nascer em Campos a necessidade de analisar a sua própria existência face à existência da Tabacaria enquanto coisa fixa e real.
Podemos imaginar Pessoa no seu quarto da Rua Coelho da Rocha. Talvez nada disto tenha ocorrido, ou tenha sido um episódio real que se derramou para a literatura. Seja como for, há nisto um leit-motif muito próprio de Pessoa - a ligação do imanente e do transcendente, do real e do ideal, do eu e do vário.
A própria simbologia do quarto e da janela versus a rua e a Tabacaria, representa essa oposição entre o "dentro" e o "fora", uma oposição dialéctica que parte em busca de uma síntese de compreensão.
Mas ao longo de todo o texto, há uma noção clara de diálogo, mesmo sem personagens. É de facto um monólogo, onde Campos fala para si mesmo, e em evidentes momentos de quebra (passagens entre parêntesis) pára mesmo para pensar, intercalando ao discurso racional momentos de delírio momentâneo, irracionais, emocionais, mas complementares. 
O poema pode dividir-se em quatro partes:
A primeira parte corresponde à primeira estrofe, onde é assumido uma espécie de vazio ontológico - "não sou nada", e a contraposição entre o nada exterior e o tudo interior ("tenho em mim..."). Na realidade o vazio ontológico é ilusório e aquele "nada" é apenas o assumir de não ser nada exteriormente - a nulidade não é verdadeiramente ontológica, mas fenomenológica. 
Na segunda parte, estrofes 2-6, Campos estabelece a sua condição actual ao mesmo tempo que nos localiza - sabemos que está no seu quarto e a metáfora do quarto é a metáfora da sua condição humana. Ele é uma mente presa num quarto que olha a realidade do dia-a-dia por uma janela. Simples, mas ao mesmo tempo delicada, a simbologia marcante destas estrofes levam-nos à definição do "eu" de Campos enquanto ser só e abandonado à sua sorte. Ao transferir para metáforas reais os seus sentimentos, Campos concretiza poeticamente uma análise impossível através do raciocínio simples. Mas o que fica é sobretudo um sentido de oposição entre realidade (a rua, a Tabacaria) e irrealidade (a vida de Campos, o quarto). A ligação entre ambas é apenas uma janela, ou seja, permite uma interacção limitada, mas nunca uma passagem concreta de uma para a outra. Campos é um "falhado", mesmo que se saiba um gênio, é afinal Pessoa que fala pela voz da Campos.
Está vencido e sabe que nunca conseguirá ser feliz.
Na terceira parte (estrofes 7-13), até à entrada do homem na Tabacaria, Campos justifica para si mesmo o rumo que tomou na vida e, deixando ainda tomar-se pelo desespero, olha as alternativas que lhe restavam para ser feliz. Aqui a contraposição já não é entre o real e o ideal, entre o fora e o dentro, mas entre ele e os outros, entre a sua condição e a condição dos outros. Choca-lhe sobretudo aqueles que vivem a sua vida numa inconsciência plena - essa é afinal em muitas das passagens de Pessoa, afinal o ideal inatingível de felicidade - porque os vê precisamente como as suas próprias némesis, os seus adversários, os adversários de quem pensa e se preocupa. Começa com a rapariga que come chocolates, suja, perdida na sua gula. Essa passagem é marcante e simples de analisar: "Pudesse eu comer chocolates com a mesma verdade com que comes! / Mas eu penso". Mas sabe que isso está fora do seu alcance - ele não vai deixar de pensar. Resta-lhe uma atitude nobre vaga: os poemas. Uma atitude nobre que ele espera que o salve, não sabe bem como, de uma mediocridade intensa que lhe vem de não nada fazer sentido na sua vida. 
A quarta parte (estrofe 8 e seguintes) marca o regresso da realidade. Campos deixa de "filosofar" quando um elemento real se intromete entre ele e a Tabacaria. Tudo se desmorona, porque tudo estava apenas no pensamento de Campos e nunca poderia ser real da mesma maneira que o Esteves é real. (haverá também afinal um nome mais real do que Esteves?). Passando subitamente a interveniente na realidade que analisava, Campos, assim que vê um conhecido e que depois lhe acena, deixa de poder estar fora da realidade para ser puxado violentamente para o meio dela. É assim que o Universo se reconstrói subitamente, sem metafísica, ou seja, sem dar mais azo ao pensamento e à análise, é só a verdade dos sentidos e não a idealização do pensamento. 
“Acenou-me adeus gritei-lhe Adeus ó Esteves!, e o universo 
Reconstruiu-se-me sem ideal nem esperança, e o dono da Tabacaria sorriu."

(Comentário de autor desconhecido)