12 de novembro de 2009

Adélia Prado: Poesias


"Meu primeiro livro foi feito num entusiasmo de fundação e descoberta nesta felicidade. Emoções para mim inseparáveis da criação, ainda que nascidas, muitas vezes, do sofrimento”. Com estas palavras, Adélia Prado apresentou ao público seu primeiro livro – Bagagem - publicado em 1976, com o apoio de Carlos Drummond de Andrade, grande admirador da poeta de Diamantina.
Este primeiro livro foi efusivamente recebido pela crítica, seduzida pelo estilo diferente da autora na expressão dos seus sentimentos e da sua singular visão do mundo que a rodeava, privilegiando a poesia do cotidiano magistralmente recriado.

GRANDE DESEJO

Não sou matrona, mãe dos Gracos, Cornélia,
sou mulher do povo, mãe de filhos, Adélia.
Faço comida e como.
Aos domingos bato o osso no prato pra chamar cachorro
e atiro os restos.
Quando dói, grito ai.
quando é bom, fico bruta,
as sensibilidades sem governo.
Mas tenho meus prantos,
claridades atrás do meu estômago humilde
e fortíssima voz pra cânticos de festa.
Quando escrever o livro com o meu nome
e o nome que eu vou pôr nele, vou com ele a uma igreja,
a uma lápide, a um descampado,
para chorar, chorar, e chorar,
requintada e esquisita como uma dama.

Adélia Prado também lança seu olhar para a problemática feminina. O poema “Enredo para um tema” uma espécie de denúncia ao amordaçamento das mulheres, a sua subalternização à vontade autoritária do homem nas sociedades regidas pelo poder e supremacia do masculino, exemplifica bem a incidência do seu olhar crítico sobre a condição feminina:

ENREDO PARA UM TEMA

Ele me amava, mas não tinha dote,
só os cabelos pretíssimos e um beleza
de príncipe de estórias encantadas.
Não tem importância, falou a meu pai,
se é só por isto, espere.
Foi-se com uma bandeira
e ajuntou ouro pra me comprar três vezes.
Na volta me achou casada com D. Cristóvão.
Estimo que sejam felizes, disse.
O melhor do amor é sua memória, disse meu pai.
Demoraste tanto, que...disse D. Cristóvão.
Só eu não disse nada,
nem antes, nem depois.

Observe-se a ironia que perpassa as palavras do pai e do marido, marcando o contraste entre o romantismo fantasioso da jovem mulher e o frio poder decisório do pai e a irônica observação do marido. À mulher cabia obedecer e calar, enquanto sua vida era tratada como uma mercadoria posta em leilão, sem nenhum respeito aos seus sentimentos e à sua vontade. Claro que a poesia é um retorno a costumes que remontam a uma época muito remota, mas se institui como uma metáfora do silenciamento e da submissão da mulher onde o milenar autoritarismo do homem é privilegiado.
A problemática da mulher e as questões de gênero são abordadas na poesia adeliana bem à sua maneira de focalizar outras práticas de cunho cultural, ora se revelando identificada, ora se distanciando. Na poesia que se segue, a autora começa com uma irônica referência, de cunho feminista (se quiser pescar, pesque, mas que limpe os peixes), logo seguida de uma atitude oposta de cumplicidade no compartilhamento da tarefa doméstica e de plenitude no amor, protagonizada por um casal simples que vive um casamento harmonioso:

CASAMENTO

Há mulheres que dizem:
Meu marido, se quiser pescar, pesque,
mas que limpe os peixes.
Eu não. A qualquer hora da noite me levanto,
ajudo a escamar, abrir, retalhar e salgar.
É tão bom, só a gente sozinhos na cozinha,
de vez em quando os cotovelos se esbarram,
ele fala coisas como 'este foi difícil'
'prateou no ar dando rabanadas'
e faz o gesto com a mão.
O silêncio de quando nos vimos a primeira vez
atravessa a cozinha como um rio profundo.
Por fim, os peixes na travessa,
vamos dormir.
Coisas prateadas espocam:
somos noivo e noiva.

Adélia poetiza os acontecimentos, aparentemente, banais e insignificantes do cotidiano, familiar ou não, focalizando a mulher - seus afazeres, sua condição existencial e visão de mundo:

ENSINAMENTO

Minha mãe achava estudo
a coisa mais fina do mundo.
Não é.
A coisa mais fina do mundo é o sentimento.
Aquele dia de noite, o pai fazendo serão,
ela falou comigo:
"Coitado, até essa hora no serviço pesado".
Arrumou pão e café, deixou tacho no fogo com água quente.
Não me falou em amor.
Essa palavra de luxo.

E na apreensão dos pequenos gestos e das situações particularmente humanas que Adélia imprimirá a singularidade de sua marca, a especificidade de sua poesia e a grandeza do seu talento inovador.




5 comentários:

EVA-RN (ZCMC) disse...

brindo o haloscan

Lia-RJ disse...

Amo a poesia de Adélia Prado. Não conhecia este blog. Voltarei outras vezes

EVA-RN (ZCMC) disse...

Lia-RJ

Eu também gosto muito da poesia de Adélia, volte sempre que desejar, será sempre muito bem vinda. Bjs

Maria João disse...

Queria muito alguns comentários sobre Os Lusíadas. Pode ser? Esse poema é também maneirista?

EVA-RN (ZCMC) disse...

Maria João
Sim. A epopéia camoneana se insere nos princípios estéticos do Mareirismo. Não é fácil comentar esta obra no blog, porque é muito longa. Mas vou tentar fazer ums síntese.