6 de novembro de 2009

MANUEL BANDEIRA: Poesias


Aprecio de uma forma muito especial a poesia POÉTICA de Manuel Bandeira, pelo espírito da mudança, pelo ímpeto de ruptura com a tradição lírica da época que ela veicula e, mais que tudo, pela ousadia do poeta de erguer a bandeira do Modernismo, dando seu grito de liberdade de expressão e de defesa de uma inovadora postura estética.
Bandeira foi notável no uso do verso livre, mas não chegou a desprezar as formas fixas, chegando a compor sonetos e uma cantiga bem no estilo dos cancioneiros medievais portugueses, manifestando assim a liberdade que se permitia de expressar-se como lhe ditava a inspiração.
Sua ruptura com o Parnasianismo retardatário, ou com a tradição lírica da época, ainda mesclada de um romantismo desgastado e dessorado, era inevitável e inadiável, pois o espírito livre do poeta não conseguiria ficar prisioneiro às regras e aos limites impostos pela herança de estéticas oitocentistas.


POÉTICA

Estou farto do lirismo comedido
Do lirismo bem comportado
Do lirismo funcionário público com livro de ponto expediente
protocolo e manifestações de apreço ao Sr. diretor.
Estou farto do lirismo que pára e vai averiguar no dicionário
o cunho vernáculo de um vocábulo.
Abaixo os puristas
Todas as palavras sobretudo os barbarismos universais
Todas as construções sobretudo as sintaxes de exceção
Todos os ritmos sobretudo os inumeráveis
Estou farto do lirismo namorador

Político
Raquítico
Sifilítico
De todo lirismo que capitula ao que quer que seja
fora de si mesmo
De resto não é lirismo
Será contabilidade tabela de co-senos secretário do amante
exemplar com cem modelos de cartas e as diferentes
maneiras de agradar às mulheres, etc.
Quero antes o lirismo dos loucos
O lirismo dos bêbedos
O lirismo difícil e pungente dos bêbedos
O lirismo dos clowns de Shakespeare
— Não quero mais saber do lirismo que não é libertação.


O resultado do espírito libertário de Bandeira foi a produção de uma obra diversificada que transitou por vários estilos sem perder a sua unidade e a sua coerência estética. Para ele "... a poesia está em tudo - tanto nos amores quanto nos chinelos, tanto nas coisas lógicas como nas disparatadas". Sua linguagem prima pela simplicidade. Sua poesia não se debruçou sobre temáticas sociais, tampouco se voltou para a reflexão filosófica. Bandeira privilegiou a poesia do cotidiano, os fatos comuns do dia-a-dia, ou as suas próprias experiências.


PROFUNDAMENTE


Quando ontem adormeci
Na noite de São João
Havia alegria e rumor
Vozes cantigas e risos
Ao pé das fogueiras acesas.
No meio da noite despertei
Não ouvi mais vozes nem risos
Apenas balões
Passavam errantes
Silenciosamente


Apenas de vez em quando
O ruído de um bonde
Cortava o silêncio
Como um túnel.
Onde estavam os que há pouco
Dançavam
Cantavam
E riam
Ao pé das fogueiras acesas?
— Estavam todos dormindo
Estavam todos deitados
Dormindo
Profundamente.


Quando eu tinha seis anos
Não pude ver o fim da festa de São João
Porque adormeci.
Hoje não ouço mais as vozes daquele tempo
Minha avó
Meu avô
Totônio Rodrigues
Tomásia
Rosa
Onde estão todos eles?
— Estão todos dormindo
Estão todos deitados
Dormindo
Profundamente


É notório que os fatos do cotidiano são recriados poeticamente, a partir da visão particularizada que o poeta tem desses memos fatos, observados por um prisma todo seu, filtrados pelo crivo de sua singular visão de mundo, de sua percepção do real.

Autora: Zenóbia Collares Moreira.



Um comentário:

victor disse...

Um bom texto para quem gosta de Manuel Bandeira. Eu, por exemplo, o admiro. Valeu!