10 de junho de 2010

Ricardo Reis, heterônimo de Fernando Pessoa.

Ricardo Reis aproxima-se de Alberto Caeiro no gosto da vida rústica, em meio à natureza. Porém, enquanto o Mestre, menos culto e mais simples é um homem alegre, feliz e de bem com a vida, Reis é sisudo, sofre e vive dramaticamente a certeza da transitoriedade da vida, ressentindo-se com a indiferença e com o rigor dos deuses. Afligem-no a imagem antecipada da Morte e a dureza do Fado. Daí, ele buscar o refúgio na filosofia dos epicuristas e dos estoicistas, tal como fazia Horácio Flacco, seu modelo literário.
Em sua extrema lucidez e prudência, Reis cria para si mesmo urna felicidade pautada na moderação que se resume na combinação de serena resignação com a comedida fruição dos prazeres, além de conter as emoções capazes de ameaçarem a sua paz interior. Em resumo, o poeta se permite a fruição do que lhe é acessível sem grandes esforços ou grandes riscos.
Reis é um poeta culto, tem um estilo muito elaborado, que denuncia explicitamente a sua adesão à tradição clássica no uso de estrofes regulares, quase sempre composta de decassílabos, nas referências à mitologia, na freqüência com que se utiliza do hipérbato, na contenção e concisão do seu discurso poético. É um latinista convicto seja no vocabulário que utiliza, seja na sintaxe que adota.

LÍDIA

Vem sentar-te comigo Lídia, à beira do rio.
Sossegadamente fitemos o seu curso e aprendamos
Que a vida passa, e não estamos de mãos enlaçadas.
    (Enlacemos as mãos.)

Depois pensemos, crianças adultas, que a vida
Passa e não fica, nada deixa e nunca regressa,
Vai para um mar muito longe, para ao pé do Fado,
    Mais longe que os deuses.

Desenlacemos as mãos, porque não vale a pena cansarmo-nos.
Quer gozemos, quer não gozemos, passamos como o rio.
Mais vale saber passar silenciosamente
    E sem desassossegos grandes.

Sem amores, nem ódios, nem paixões que levantam a voz,
Nem invejas que dão movimento demais aos olhos,
Nem cuidados, porque se os tivesse o rio sempre correria,
    E sempre iria ter ao mar.

Amemo-nos tranquilamente, pensando que podíamos,
Se quiséssemos, trocar beijos e abraços e carícias,
Mas que mais vale estarmos sentados ao pé um do outro
    Ouvindo correr o rio e vendo-o.

Colhamos flores, pega tu nelas e deixa-as
No colo, e que o seu perfume suavize o momento -
Este momento em que sossegadamente não cremos em nada,
    Pagãos inocentes da decadência.

Ao menos, se for sombra antes, lembrar-te-ás de mim depois
Sem que a minha lembrança te arda ou te fira ou te mova,
Porque nunca enlaçamos as mãos, nem nos beijamos
    Nem fomos mais do que crianças.

E se antes do que eu levares o bolo ao barqueiro sombrio,
Eu nada terei que sofrer ao lembrar-me de ti.
Ser-me-ás suave à memória lembrando-te assim - à beira-rio,
    Pagã triste e com flores no regaço.

Na primeira e na segunda estrofes, a atitude amorosa do poeta não radica na contemplação da natureza, do rio que corta a paisagem. A evocação dos seus elementos resulta da interpretação que deles faz como uma metáfora da fugacidade e da transitoriedade da vida, interpretação esta pautada pela razão (aprendamos, pensemos), conduzida por inarredável obsessão do inexorável destino do ser humano para a decrepitude e para a morte. Todavia, se por um lado esta obsessão gera no poeta a vontade de aproveitar o momento presente e de fruir o momento passageiro, único bem que lhe é dado possuir, por outro lado transforma o amor numa relação caracterizada por aflitiva frieza e ausência de emoções, despojando-o de qualquer aproximação física ou gesto de ternura.

Nas terceira e quarta estrofes, evidencia-se a contensão do impulso amoroso por parte do poeta, de forma tão incisiva que extingue qualquer possibilidade de fruição prazerosa do momento presente. Do amor nada mais resta que uma morna emoção que, passo a passo, vai se extinguindo, até se tornar apenas uma atitude de que beira à indiferença e termina em irremediável incomunicabilidade (sentados ao pé um do outro, de mãos desenlaçadas).

Esse virar as costas ao prazer físico e ao amor por parte do eu lírico é indiciador de um estado de desesperança e de desencanto existencial que o leva a recusar qualquer invasão da paixão em sua vida.  Porque tem ciência de que será vã qualquer tentativa de modificar o poder imensurável do destino, assume uma atitude de passividade e de impassibilidade perante a própria vida, colocando-se à sua margem, como única forma de evitar a dor e o sofrimento causado pela expectativa da morte.
Esse cultivo da ataraxia que Reis hauriu na filosofia de Epicuro funciona como um meio de contornar a obsessão da morte que, no final do poema, ele advinha e disfarça recorrendo eufemismos clássicos. E é impulsionado pelo desejo de superar a morte, ou pelo menos o sofrimento e a saudade que a acompanha, que ele escolhe levar a vida sem grandes emoções e sem envolvimentos amorosos, visando nada deixar que possa ser lamentado. 
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Zenóbia Collares Moreira Cunha



                               

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