Manuel Maria Barbosa du Bocage nasceu em Setúbal, no dia 15 de Setembro de 1765. Muito cedo revelou a sua sensibilidade literária, que um ambiente familiar propício incentivou. Aos 16 anos assentou praça no regimento de infantaria de Setúbal e aos 18 alistou-se na Marinha, em Lisboa. Depois foi embarcado para Goa, na qualidade de oficial. Inadaptado, findou desertando. Percorreu, então, as sete partidas do mundo: Índia, China e Macau, nomeadamente.
Regressou a Portugal em Agosto de 1790. Na capital, vivenciou a boémia lisboeta, frequentou os cafés que alimentavam as ideias da revolução francesa, satirizou a sociedade estagnada portuguesa, desbaratou, por vezes, o seu imenso talento. Em 1791, publicou o seu primeiro tomo das Rimas, ao qual se seguiram ainda dois, respectivamente em 1798 e em 1804.
No início da década de noventa, aderiu à "Nova Arcádia", uma associação literária, controlada por Pina Manique, que metodicamente fez implodir. Efectivamente, os seus conflitos com os poetas que a constituíam tornaram-se frequentes, sendo visíveis em inúmeros poemas cáusticos.
A sua saúde sempre frágil, ficou cada vez mais debilitada, devido à vida pouco regrada que levara. Em 1805, com 40 anos, faleceu na Travessa de André Valente em Lisboa, perante a comoção da população em geral. Foi sepultado na Igreja das Mercês.
A literatura portuguesa perdeu, então, um dos seus mais lídimos poetas e uma personalidade plural, que, para muitas gerações, incarnou o símbolo da irreverência, da frontalidade, da luta contra o despotismo e de um humanismo integral e paradigmático.
A obra poética de Bocage reflete bem as duas tendências poéticas do seu tempo: a neoclássica e a pré-romântica, com predominância desta última, prodigamente praticada na maioria dos seus sonetos. Os dois sonetos abaixo analisados exemplificam bem o que afirmamos:
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Olha, Marília, as flautas dos pastores,
Que bem que soam, como estão cadentes!
Olha o Tejo a sorrir-se! Olha: não sentes
Os Zéfiros brincar por entre as flores?
Vê como ali, beijando-se, os Amores
Incitam nossos ósculos ardentes!
Ei-las de planta em planta as inocentes,
As vagas borboletas de mil cores!
Naquele arbusto o rouxinol suspira,
Ora nas folhas a abelhinha pára,
Ora nos ares sussurrando gira.
Que alegre campo! Que manhã tão clara!
Mas ah! Tudo o que vês, se eu não te vira,
Mais tristeza que a noite me causara.
Observe-se a descrição da natureza, vista como um locus amoenus ao longo de quase todo o soneto (até ao final do 1º terceto), muito ao gosto clássico. Eles, no entanto, não são evocados por eles mesmos, por despertarem o sentimento estético da natureza, viva em suas cores, nuances, sons e formas. A sua descrição é convencional, repete o padrão próprio do Neoclassicismo.
Observe-se, ainda, o uso de um vocabulário alatinado (cadente, Zéfiros, ósculos) a presença da mitologia (Amores (Cupidos, filhos de Marte e de Vênus))
No último terceto, o eu-lírico esclarece que toda aquela paisagem paradisíaca só é possível na presença da amada (vv 13/14). Esta atitude de apresentar a natureza como reflexo do estado da alma do poeta, em função da presença ou ausência da amada, constitui um desvio que rompe com o cânone neoclássico, assinalando o forte pendor romântico do autor. Comparemos o soneto acima com outro abaixo transcrito:
Oh retrato da Morte, oh Noite amiga,
Por cuja escuridão suspiro há tanto!
Calada testemunha de meu pranto,
De meus desgostos secretária antiga!
Pois manda Amor que a ti somente os diga,
Dá-lhes pio agasalho no teu manto;
Ouve-os, como costumas, ouve, enquanto
Dorme a cruel, que a delirar me obriga.
E vós, oh cortesãos da escuridade,
Fantasmas vagos, mochos piadores,
Inimigos, como eu, da claridade!
Em bandos acudi aos meus clamores;
Quero a vossa medonha sociedade,
Quero fartar meu coração de horrores.
Este soneto, genuinamente pré-romântico, difere completamente do anterior. Nele, já não temos a linguagem amena, a natureza luminosa e diurna, o estado de serenidade do eu-lírico, vistos no anterior. Todo este estado de placidez paradisíaca cede lugar a uma situação absolutamente oposta, sombria e pessimista.
Nas duas quadras, o eu-lírico se dirige à “Noite amiga” e, logo a seguir, evoca-a como sendo o “retrato da Morte”. Neste primeiro momento, assistimos, portanto, à caracterização da noite (retrato da Morte, amiga, testemunha, confidente) e ao pedido desesperado do eu-lírico para que, uma vez mais, ela ouça os seus desabafos e os seus lamentos sombrios. Assim, o locus amoenus, que caracteriza a natureza do soneto neoclássico, é substituído pelo locus horrendus tipicamente pré-romântico e condizente com os estados de espírito melancólico, mórbido, sombrio, masoquista e infeliz do eu-lírico.
Não somente a paisagem torna-se tenebrosa, também os elementos da natureza diurna e ensolarada são substituídos por outros próprios das sombras. As abelhinhas e os rouxinóis cedem lugar a “mochos piadores”, com os quais o eu-lírico se identifica. É a estes “cortesãos da escuridade” e “inimigos da claridade” que deseja se associar, visando encontrar ajuda em sua “medonha sociedade”, para saciar de horrores a sua mágoa.
O estado de alma atormentado do eu-lírico é conseqüência da incorrespondência amorosa da “cruel” que o desdenha e o leva a delirar. O tom confessional do poema, a utilização de uma certa linguagem teatral (tom declamatório com presença de algumas interjeições e de exclamações) e o uso de vocabulário tétrico (Morte, escuridão, pranto, desgostos, cruel, escuridade, Fantasmas, piadores, medonha, horrores) nos remete a um ambiente próprio dum locus horrendus, como já dissemos antes.