23 de dezembro de 2010

Fresta, poema de Fernando Pessoa



Em meus momentos escuros
Em que em mim não há ninguém,

E tudo é névoas e muros

Quanto a vida dá ou tem,

Se, um instante, erguendo a fronte
De onde em mim sou soterrado,

Vejo o longínquo horizonte

Cheio de sol posto ou nado,

Revivo, existo, conheço;
E, inda que seja ilusão

O exterior em que me esqueço,

Nada mais quero nem peço:

Entrego-lhe o coração.


Mesmo estando sob o efeito trevoso dos momentos de depressão, de melancolia, tomado pelo vazio interior que o angustia e o aparta do mundo, basta somente um instante em que veja o “longínquo horizonte” iluminado de sol poente ou nascente, para que o eu-lírico reviva, volte a existir e reconheça o mundo exterior.
E não importando se este é pura ilusão, sem desejar nada mais além que esquecer de si mesmo, entrega-lhe o coração inquieto.
O eu-lírico, anulado em seu mundo enevoado, age como se o mundo ilusório fosse uma luz no final do túnel ou uma forma de suportar, por alguns momentos, a dura realidade e o sem sentido da vida.

14 de dezembro de 2010

A poesia de Bocage


Manuel Maria Barbosa du Bocage nasceu em Setúbal, no dia 15 de Setembro de 1765. Muito cedo revelou a sua sensibilidade literária, que um ambiente familiar propício incentivou. Aos 16 anos assentou praça no regimento de infantaria de Setúbal e aos 18 alistou-se na Marinha, em Lisboa. Depois foi embarcado para Goa, na qualidade de oficial. Inadaptado, findou desertando. Percorreu, então, as sete partidas do mundo: Índia, China e Macau, nomeadamente.
Regressou a Portugal em Agosto de 1790. Na capital, vivenciou a boémia lisboeta, frequentou os cafés que alimentavam as ideias da revolução francesa, satirizou a sociedade estagnada portuguesa, desbaratou, por vezes, o seu imenso talento. Em 1791, publicou o seu primeiro tomo das Rimas, ao qual se seguiram ainda dois, respectivamente em 1798 e em 1804.
No início da década de noventa, aderiu à "Nova Arcádia", uma associação literária, controlada por Pina Manique, que metodicamente fez implodir. Efectivamente, os seus conflitos com os poetas que a constituíam tornaram-se frequentes, sendo visíveis em inúmeros poemas cáusticos.
A sua saúde sempre frágil, ficou cada vez mais debilitada, devido à vida pouco regrada que levara. Em 1805, com 40 anos, faleceu na Travessa de André Valente em Lisboa, perante a comoção da população em geral. Foi sepultado na Igreja das Mercês.
A literatura portuguesa perdeu, então, um dos seus mais lídimos poetas e uma personalidade plural, que, para muitas gerações, incarnou o símbolo da irreverência, da frontalidade, da luta contra o despotismo e de um humanismo integral e paradigmático.
A obra poética de Bocage reflete bem as duas tendências poéticas do seu tempo: a neoclássica e a pré-romântica, com predominância desta última, prodigamente praticada na maioria dos seus sonetos. Os dois sonetos abaixo analisados exemplificam bem o que afirmamos:
*
Olha, Marília, as flautas dos pastores,
Que bem que soam, como estão cadentes!
Olha o Tejo a sorrir-se! Olha: não sentes
Os Zéfiros brincar por entre as flores?

Vê como ali, beijando-se, os Amores
Incitam nossos ósculos ardentes!
Ei-las de planta em planta as inocentes,
As vagas borboletas de mil cores!

Naquele arbusto o rouxinol suspira,
Ora nas folhas a abelhinha pára,
Ora nos ares sussurrando gira.

Que alegre campo! Que manhã tão clara!
Mas ah! Tudo o que vês, se eu não te vira,
Mais tristeza que a noite me causara.

Observe-se a descrição da natureza, vista como um locus amoenus ao longo de quase todo o soneto (até ao final do 1º terceto), muito ao gosto clássico. Eles, no entanto, não são evocados por eles mesmos, por despertarem o sentimento estético da natureza, viva em suas cores, nuances, sons e formas. A sua descrição é convencional, repete o padrão próprio do Neoclassicismo.
Observe-se, ainda, o uso de um vocabulário alatinado (cadente, Zéfiros, ósculos) a presença da mitologia (Amores (Cupidos, filhos de Marte e de Vênus))
No último terceto, o eu-lírico esclarece que toda aquela paisagem paradisíaca só é possível na presença da amada (vv 13/14). Esta atitude de apresentar a natureza como reflexo do estado da alma do poeta, em função da presença ou ausência da amada, constitui um desvio que rompe com o cânone neoclássico, assinalando o forte pendor romântico do autor. Comparemos o soneto acima com outro abaixo transcrito:

Oh retrato da Morte, oh Noite amiga,
Por cuja escuridão suspiro há tanto!
Calada testemunha de meu pranto,
De meus desgostos secretária antiga!

Pois manda Amor que a ti somente os diga,
Dá-lhes pio agasalho no teu manto;
Ouve-os, como costumas, ouve, enquanto
Dorme a cruel, que a delirar me obriga.

E vós, oh cortesãos da escuridade,
Fantasmas vagos, mochos piadores,
Inimigos, como eu, da claridade!

Em bandos acudi aos meus clamores;
Quero a vossa medonha sociedade,
Quero fartar meu coração de horrores.

Este soneto, genuinamente pré-romântico, difere completamente do anterior. Nele, já não temos a linguagem amena, a natureza luminosa e diurna, o estado de serenidade do eu-lírico, vistos no anterior. Todo este estado de placidez paradisíaca cede lugar a uma situação absolutamente oposta, sombria e pessimista.
Nas duas quadras, o eu-lírico se dirige à “Noite amiga” e, logo a seguir, evoca-a como sendo o “retrato da Morte”. Neste primeiro momento, assistimos, portanto, à caracterização da noite (retrato da Morte, amiga, testemunha, confidente) e ao pedido desesperado do eu-lírico para que, uma vez mais, ela ouça os seus desabafos e os seus lamentos sombrios. Assim, o locus amoenus, que caracteriza a natureza do soneto neoclássico, é substituído pelo locus horrendus tipicamente pré-romântico e condizente com os estados de espírito melancólico, mórbido, sombrio, masoquista e infeliz do eu-lírico.
Não somente a paisagem torna-se tenebrosa, também os elementos da natureza diurna e ensolarada são substituídos por outros próprios das sombras. As abelhinhas e os rouxinóis cedem lugar a “mochos piadores”, com os quais o eu-lírico se identifica. É a estes “cortesãos da escuridade” e “inimigos da claridade” que deseja se associar, visando encontrar ajuda em sua “medonha sociedade”, para saciar de horrores a sua mágoa.
O estado de alma atormentado do eu-lírico é conseqüência da incorrespondência amorosa da “cruel” que o desdenha e o leva a delirar. O tom confessional do poema, a utilização de uma certa linguagem teatral (tom declamatório com presença de algumas interjeições e de exclamações) e o uso de vocabulário tétrico (Morte, escuridão, pranto, desgostos, cruel, escuridade, Fantasmas, piadores, medonha, horrores) nos remete a um ambiente próprio dum locus horrendus, como já dissemos antes.

2 de dezembro de 2010

Experimentalismo e sensualidade na poesia de Salette Tavares



Nascida em 1922 em Lourenço Marques, Salette Tavares, licenciou-se em Ciências Históricas e Filosóficas pela Universidade Clássica de Lisboa, em 1948. Foi bolsista da Fundação Calouste Gulbenkian e do Conselho Superior de Investigações Científicas, da Espanha. Publicou vários livros de poesia.
O texto da autora, que vem a seguir, inscreve-se na linha poética da poesia experimental que, como se sabe, não obedece fielmente aos princípios da poesia concreta, da qual se originou, pelo fato de instituir-se como poesia aberta às novas experiências, tanto no que diz respeito aos aspectos visuais, quanto aos morfológico.
O poema "Poética", de Salette Tavares, inscreve-se na vanguarda, na medida em que rompe o automatismo que respalda a obra de arte tradicional, com o qual o leitor estava habituado. Daí a sua leitura ser um desafio a seguir outros caminhos em sua busca de uma leitura que o conduza a decodificação da mensagem. O texto da poetisa exemplifica com bastante precisão a dimensão da mudança provocada pela poesia experimental.

POÉTICA
Espelho mudo.....................lugar reflecte
..............................................o todo que me é dentro

Espelho cego ......................lugar repete
.............................................a voz que me é centro.

Espelho mundo .................lugar intenso,
.............................................nos braços já, te prendo.

Espelho nego .....................lugar suspenso
.............................................um vidro só, relendo.
*
A leitura de Poética, um texto experimental, é diferentemente da que se realiza com os textos tradicionais, deve ser feita tanto do ponto de vista do significante, quanto do significado. No primeiro caso, a análise de palavras que são repetidas reiteradamente, como “Espelho” e “lugar”, bem como as que remetem para o significado, apontando para a função do espelho objeto, que se restringe a refletir apenas o que chega ao seu alcance.
Esse poema, produzido na fase inicial do experimentalismo poético, não permite que seja claramente percebida a desconstrução do discurso. Todavia, ao abrir-se para várias leituras, o texto assume a característica fundamental da poesia experimental. Vale observar a forma como é trabalhado o espaço visual no poema: nele há um objeto – o espelho -, que estabelece uma comunicação direta com o que reflete sua lâmina.
O interessante na leitura desse texto é o fato do leitor, confrontado com a sua “decifração”, assumir o papel de espectador ativo, responsável pela compreensão tanto do aspecto visual da poesia, quanto do seu aspecto sonoro, buscado na repetição de palavras e de rimas alternadas, que conferem ao texto uma marcação de ritmo forte, que aponta para o conteúdo crítico do poema.
Não reside no aspecto lúdico, que a forma do texto apresenta, o que motivou a sua composição. A autora, o que interessa é o conteúdo crítico que essa forma veicula, desde a escolha do título “Poética”. Este título é o instrumento usado pela autora para desmistificar a poética tradicional portuguesa, veementemente rejeitada pelos experimentalistas, sob a acusação de que ela insiste em dar continuidade a um tipo de poesia feita apenas para a fruição prazerosa, para deleite da emoção e do sentimento, sem se dar conta dos graves problemas de ordem cultural, social e econômico que ameaçavam levar Portugal à deriva.
Poética, numa dentre as suas múltiplas leituras, parece sugerir a quebra de um espelho que se restringe a ser um repetidor de imagens (espelho nego / lugar suspenso /em vidro só, relendo), que o poema nega, rejeita, por ser metáfora da criação poética tradicional, sugerindo um outro espelho que, além de refletir, possa, como um prisma, refratar as multifacetadas arestas, os diversificados ângulos de visão da poesia (espelho) em sua relação o que reflete (lugar) e refrata.
Na mesma coletânea de poemas - Espelho cego -, de Salette Tavares, várias poesias expressam a linguagem do corpo inflamado pelo desejo (não sei como vais aparecer / presença tão concreta anunciada / vibrando-me o corpo a estremecer) :
*
Minha cintura dorida
adeus suspenso sem beijo
enchem-me o peito de fome
geme silêncio o desejo
Espremem-se frutas os braços
Bebem-se vinho de Março
grandes e belos cabelos
com vento no regaço.
Alvorecer de um segredo
boca que a fruta pede
mar de ouro generoso
onde o meu barco se perde.
//
Aqui onde chegaste
a tua voz trocou-se,
diz-me
onde puseste
o amor com que te sei.
//
Meridiano do meu corpo
limite raíz
encharcada d´água
a respirar-me no peito.
//
Vela de cera acendida
no teu olhar que morreu
eu sei-me
água, terra, morte,
vida, cor do vento sobre a pele,
eu sei-te
luz do ar no meu cabelo.
//
Mas não é somente a sensualidade que transita nos versos da poetisa, também o amor sentimento se faz presente em sua poesia, expressando os anseios do coração expectante na espera impaciente do ser amado ou do seu gesto de ternura, acariciante (que é que a mim espera quando assim espero? (...) É a carícia da mão na minha face / e o meu olhar repousado / o sorriso que passa / rápido / de mim a ti.), ou ainda da fruição do prazer, o fim da espera (Bebi, / eu te bebi / meu leite vinho destino / meus braços cabelos sonhos / em manhãs de desatino).
Zenóbia Collares Moreira . O itinerário da poesia feminina em Portugal.