19 de agosto de 2011

O narcisismo poético de Mario de Sá-Carneiro.

Sá-Carneiro nasceu na cidade de Lisboa e estudou na Universidade de Sorbonne, em Paris. Publicou os primeiros poemas, Dispersão, em 1914, mesmo ano da novela A Confissão de Lúcio. Retorna a Portugal em 1915 e lançou a revista Orpheu em parceria com Fernando Pessoa, seu mentor e a maior expressão do Modernismo naquele português.
De volta a Paris, Sá-Carneiro passou por uma crise moral e financeira que o fez abandonar os estudos. De relações rompidas com o pai, levou uma vida de boêmia literária. Em 1916, durante uma crise mais grave, cometeu o suicídio, em Paris. Antes de sua morte enviou seus poemas inéditos a Fernando Pessoa, publicados apenas em 1937 sob o título Indícios de Ouro.
Na lírica de Mário de Sá-Carneiro, obra e vida são confundidas de forma obsessiva. Narcisista, o poeta fez de si mesmo o motivo centralizador de sua obra, na qual se somam um corrosivo sentimento de incompletude, de falência, de compaixão por si mesmo e de masoquística inaceitação de sua pessoa. Assim, abundam as poesias em que ele esboça seu auto-retrato, geralmente situando o próprio corpo, deformado pela obesidade, em primeiro plano, para adjetivá-lo de forma negativa: “esfinge gorda”, “balofo”, “papa acorda” dentre outros.
A poesia Quase, uma das mais belas e melancólicas de sua obra, tematiza o malogro, a falência do indivíduo, a sua frustração e, mais que tudo, a sua aflitiva irrealização que remetem à sua aspiração frustrada de ser diferente do que é.


QUASE
Um pouco mais de sol — eu era brasa.
Um pouco mais de azul — eu era além.
Para atingir, faltou-me um golpe de asa...
Se ao menos eu permanecesse aquém...


Assombro ou paz? Em vão... Tudo esvaído
Num baixo mar enganador d'espuma;
E o grande sonho despertado em bruma,
O grande sonho — ó dor! — quase vivido...


Quase o amor, quase o triunfo e a chama,
Quase o princípio e o fim — quase a expansão...
Mas na minh'alma tudo se derrama...
Entanto nada foi só ilusão!


De tudo houve um começo... e tudo errou...
— Ai a dor de ser-quase, dor sem fim... —
Eu falhei-me entre os mais, falhei em mim,
Asa que se elançou mas não voou...


Momentos de alma que desbaratei...
Templos aonde nunca pus um altar...
Rios que perdi sem os levar ao mar...
Ânsias que foram mas que não fixei...


Se me vagueio, encontro só indícios...
Ogivas para o sol — vejo-as cerradas;
E mãos de herói, sem fé, acobardadas,
Puseram grades sobre os precipícios...


Num ímpeto difuso de quebranto,
Tudo encetei e nada possuí...
Hoje, de mim, só resta o desencanto
Das coisas que beijei mas não vivi...
...........................................


Um pouco mais de sol — e fora brasa,
Um pouco mais de azul — e fora além.
Para atingir, faltou-me um golpe de asa...
Se ao menos eu permanecesse aquém...


Consciente de ser um despreparado para a vida e um irremediável desajeitado para lidar com seus problemas existenciais, de um lado recusa a vida, por outro lado apieda-se da sua maneira de ser. Daí a compaixão narsisista que prodigaliza em muitas poesias:


Como se chora um amante,
Assim me choro a mim mesmo.
Eu fui amante inconstante
Que se traiu a si mesmo.


Em seu hiperbólico narcisismo, Sá-Carneiro chega a comover-se com sua própria desventura, voltando para si mesmo a sua ternura, a sua saudade e a sua piedade.


Ternura feita saudade
Eu beijo as minhas mãos brancas,
Sou amor e piedade
Em face dessas mãos brancas...


Tristes mãos longas e lindas...
Que eram feitas pra se dar...
Ninguém ma quis apertar...
Tristes mãos longas e lindas...


Eu tenho pena de mim,
Pobre menino ideal...
Que me faltou afinal?
Um elo? Um rasto?... Ai de mim!...


Próximo a pôr fim à vida, o poeta fez seu auto-retrato, manifestando uma forte ânsia de auto-punição através das imagens da auto-flagelação, da zombaria exacerbada e perversa, masoquistamente aplicadas a si mesmo:

O dúbio mascarado, o mentiroso
Afinal que passou a vida incógnito;
O Rei-Lua postiço, o falso atônito;
Bem no fundo o covarde rigoroso...

Em vez de Pagem bobo presunçoso...
Sua alma de neve asco de um vômito...
Seu ânimo cantado como indômito
Um lacaio invertido e pressuroso...

O sem nervos nem ânsias, o papa-açorda...
(seu coração talvez movida à corda...)
Apesar dos seus berros ao Ideal,

O corrido, o rainoso, o desleal,
O balofo arrotando império astral,
O mago sem condão, a Esfinge Gorda...

No poema intitulado FIM, esse impulso masoquista de auto punição, ultrapassa as barreiras da vida, alcança-o após a morte, castigando o corpo que sempre recusou com um funeral circense altamente grotesco e chocante:

Quando eu morrer batam em latas,
Rompam aos berros e aos pinotes-
Façam estalar no ar chicotes,
Chamem palhaços e acrobatas.

Que meu caixão vá sobre um burro
Ajaezado à andaluza:
A um morto nada se recusa,
E eu quero por força ir de burro...

Estes fragmentos do poema Dispersão traduzem bem o drama existencial do infeliz e atormentado poeta:
Perdi-me dentro de mim
Porque eu era labirinto,
E hoje, quando me sinto,
É com saudades de mim.
Passei pela minha vida
Um astro doido a sonhar.
Na ânsia de ultrapassar,
Nem dei pela minha vida...
(...)
Desceu-me n'alma o crepúsculo;
Eu fui alguém que passou.
Serei, mas já não me sou;
Não vivo, durmo o crepúsculo.


Quando morreu, o talentoso poeta Mário de Sá-Carneiro contava apenas com 26 anos de idade. Deixou uma obra poética de grande valor e obras ficcionais: Vários contos e a novela Confissões de Lúcio.
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Zenóbia Collares Moreira Cunha