25 de abril de 2015

F. Pessoa - Por quem foi que me trocaram

O poema que se segue, de Fernando Pessoa, está incluído nas edições póstumas da sua "poesia inédita".
Pessoa sempre foi claro acerca da sua forma de escrever. Ele mesmo disse que escrevia em seu próprio nome, mas com a inteira consciência que ele era o "seu heterônimo mais fraco".
O ímpeto e a emoção iam inteiramente  para Campos, a disciplina pertencia a Reis, o sonho era da esfera de  Soares, a beleza simples era exclusiva de Caeiro.
O que restava então para Pessoa-ele-mesmo? Fernando Pessoa, o "impuro e simples", como ele mesmo se classificou na famosa "carta da gênese dos heterônimos"...


                 Por quem foi que me trocaram
Quando estava a olhar pra ti?
      Pousa a tua mão na minha
     E, sem me olhares, sorri.

   Sorri do teu pensamento
   Porque eu só quero pensar
  Que é de mim que ele está feito
É que tens para mo dar.

Depois aperta-me a mão
E vira os olhos a mim...
Por quem foi que me trocaram
Quando estás a olhar-me assim?

 O "estilo interno" dos versos ortônimos revela em todos eles uma semi-rigidez, uma indefinição, uma simplicidade que só não é inteira porque eles são verdadeiramente impuros. As impurezas que neles residem são como resquícios das obras heteronímicas omnipresentes no espírito Pessoano. Pessoa pode escrever só por ele, mas não pode ser só ele a escrever.
É nesta perspectiva - impura e simples - que devemos então ler o poema em questão.
A tendência a analisá-lo linha a linha, mas desde já pede que o leiamos de forma horizontal, por inteiro. Somente como introdução, e, assim lembra algo de Reis.
Podemos imaginar a cena: dois amantes sentados sem falar, um deles dirige a pergunta inicial (que se adivinha quase não é feita), pedindo uma resposta também ela silenciosa. Claramente isto leva-nos a Reis e Lídia, a Reis e Chloe... No entanto tudo é mais "simples", se bem que "impuro" (pela presença de Reis).
Pessoa faz a pergunta, mas depois não tira conclusões a partir da mesma. Como se aqui se pintasse um quadro, mas por impulso inocente e cansado. Aliás, toda a poesia ortônima é sobretudo isso: cansaço, rendição. É isso que Pessoa sente, quando se reduz a si mesmo.
Compreendamos então o diálogo sem palavras. O amante transfigura-se quando olha quem ama (por isso pensa ser trocado quando olha). Pelo menos é isso que intuímos. O medo de amar faz com que queira ser correspondido - pede o sorriso, e quer que a sua amante (ou o seu amante) só o tenha a ele no pensamento.
Mas, mais do que correspondência, o amante quer a ação concreta. Quer a certeza de ser correspondido. Apertar a mão é uma certeza física, que advém de um sentimento metafísico: é o amor que se faz real, é o sonho que se torna vida. Mas mesmo assim persiste a dúvida: será ele mesmo que ama, e porque se sente transfigurado no amor, mesmo agora que a olha olhos nos olhos?
A pergunta persiste e fica. Adivinha-se que seja uma pergunta triste, mas na realidade é uma afirmação cansada. Pessoa pode sentir a emoção, mas cansa-o a realidade e sobretudo cansa-o o medo de essa realidade ser efêmera. O poema acaba por se revelar num ciclo final, quando vemos que o seu tema não é tanto o olhar tímido dos amantes, mas antes o medo de que todo o amor acabe.

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