Ninguém abra a sua porta
para ver que aconteceu:
saímos de braço dado,
a noite escura mais eu.
E ela não sabe o meu rumo,
eu não lhe pergunto o seu:
não posso perder mais nada,
se o que houve já se perdeu.
Vou pelo braço da noite,
levando tudo o que é meu:
- a dor que os homens me deram,
e a canção que Deus me deu.
O “eu” lírico pede as pessoas, ao mundo que não o incomodem e que não o questionem sobre as coisas passadas, passado este simbolizado pela palavra “porta”, no primeiro e segundo versos, da primeira estrofe. Complementando-a o “eu” lírico conta-nos que a sua única companheira é a noite, cheia de mistério, de tristeza, de melancolia, sugerida pelo uso do pleonasmo “noite escura” e o uso do advérbio de intensidade “mais”, que reforçam a idéia dessa amizade. Outro fator intensificador é o uso do hipérbato, que é sugestivo dessa fortaleza, dessa união entre a noite e o “eu” lírico, observada nos últimos versos.
Na segunda estrofe, o “eu” lírico se contenta com a companhia da “noite”, pois ambos não se questionam sobre o passado, o presente e menos ainda sobre o futuro, representado por “rumo”.
O “eu” lírico afirma que não pode perder tempo em viver, visto que sua vida foi marcada por perdas humanas, irreversíveis. É importante, na finalização do terceiro e quarto versos, a presença das palavras “nada” e “perdeu”, que reforça as perdas citadas anteriormente e o desejo de não permitir que elas continuem, quando diz, enfaticamente: "não posso perder mais nada".
Vimos que o “eu” lírico continua caminhando sozinho, apenas junto com a “noite”, na terceira estrofe, carregando “tudo” o que está marcado em sua alma, que é a dor deixada pelos homens perdidos e passados em sua vida, mas que o sustentam de pé, de cabeça erguida e a sua vida dada por Deus. A vida é representada pela palavra “canção”, que sugere algo passageiro e suave, como é o ritmo da vida, associada à figura de Deus, o único que pode tirá-la.
Nesse poema nota-se a presença da forte influência espiritualista em sua arte, surgida em 1918, nas revistas Árvore Nova, Terra de Sol e Festa, e que iria reiterar-se em todos os seus poemas, como a sugerir que refletíssemos sobre a nossa condição efêmera.
Ressaltamos que a poetisa ao construir o terceiro verso utiliza o travessão para destacar a dor sofrida.
O poema é composto por três estrofes, cada uma delas com quatro versos. Ocorre a presença de rimas entre “aconteceu” e “eu” (primeira estrofe); “seu” e “perdeu” (segunda estrofe); “meu” e “deu” (terceira estrofe). O interessante é que, em todas as palavras no poema, está inserida a palavra “eu”, presente na primeira estrofe, sugerindo a intensificação da dor, da figura do “eu” lírico a cada momento do caminho percorrido por ele durante a vida.
Apesar das palavras “nada” (terceiro verso, segunda estrofe) e “tudo” (segundo verso, terceira estrofe) estarem distantes uma da outra, entendemos que há uma antítese, para vermos o medo do “eu” lírico em perder o “tudo” que neste instante possui: a sua dor e a sua vida.
A “noite” é o único elemento da natureza que surge na poesia para simbolizar a sua real companheira, que é personificada neste verso: Vou pelo braço da noite.
O título Assovio nos indica algo passageiro, transitório e, ao mesmo tempo, musical, como a canção e a própria vida, apesar dos sofrimentos existenciais do ser humano.
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