Sem ser discrepante ou contraditório, Camões organiza a sua lírica através de duas vertentes, ou seja, uma que se volta para a expressão do amor sensual, com todos os males que lhe são inerentes, fruto da experiência do poeta, e de outra que se orienta para a expressão do amor idealizado, haurido na lição neoplatônica. Essa contraditória situação não parece ter passado despercebida ao poeta, que, em uma das suas canções, alude às duas tendências amorosas que rivalizam e disputam o espaço em sua expressão poética. Para ele, o amor carnal “fraquezas são do corpo que é da terra, / mas não do pensamento, que é divino, enquanto o amor platônico é efeito da alma; [...] está no pensamento como idéia”.
No soneto que se segue, as duas concepções de amor são postas em evidência pelo poeta. A análise que ele faz do sentimento amoroso mostra este ora como puro sentimento e aspiração espiritual, conforme o modelo petrarquiano, ora como rebaixamento desse sentimento, que se revela maculado na medida em que se transmuda em desejo de fruição sensual:
Pede-me o desejo, Dama, que vos veja,
não entende o que pede, está enganado.
É este amor tão fino e tão delgado
que, quem o tem, não sabe o que deseja.
Não há cousa, a qual natural seja,
que não queira perpétuo seu estado;
não quer logo o desejo desejado,
por que não falte nunca onde sobeja.
Mas este puro afecto em mim se dana
que, como a grave pedra tem por arte
o centro desejar da Natureza.
Assim o pensamento (pola parte
vai tomar de mim terreste humana)
foi, Senhora, pedir esta baixeza.
A leitura do soneto confirma, portanto, a coexistência de duas formas de vivenciar o amor pelo poeta que são absolutamente opostas e inconciliáveis: uma que radica numa forma idealizada de amor platônico, outro derivado da própria experiência: ambos tão divergentes, tão opostos como o são a alma e o corpo, as exigências da carne e as solicitações do espírito. Nos quartetos, o poeta analisa seus impulsos eróticos, na tentativa de convencer-se de que “o desejo [...] não entende o que pede, está enganado [...] não sabe o que deseja”. Contudo, logo no primeiro terceto, irrompe um verso portador de um outro discurso, que parece postergar ou mesmo contradizer a reflexão anterior do poeta: “Mas este puro afecto em mim se dana”, ou seja, em mim não encontra sustentação, se avilta, se aniquila.
Vale salientar que essa contradição do sentimento amoroso vivenciado pelo poeta, esse conflito interior entre o anseio de um sentimento amoroso puro, espiritual e o desejo de satisfazer o apelo dos sentidos, essa dupla e antinômica postura que ele assume perante o amor, tudo isso é muito peculiar à lírica camoniana e muito típico do Maneirismo.
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