25 de julho de 2016

Triunfo Supremo, soneto de Cruz e Sousa



Quem anda pelas lágrimas perdido,
Sonâmbulo dos trágicos flagelos,
Não quem deixou para sempre esquecido
O mundo e os fáteis ouropéis mais belos.

Não quem ficou do mundo redimido,
Expurgado dos vícios mais singelos,
E disse a tudo o adeus indefinido
E desprendeu-se dos carnais anelos!

São quem entrou por todas as batalhas
As mãos e os pés e o flanco ensanguentado,
Amortalhado em todas as mortalhas.

Quem florestas e mares foi rasgando
E entre raios, pedradas e metralhas,
Ficou gemendo mas ficou sonhando !

Neste soneto, de modo belíssimo, Cruz e Sousa coloca a capacidade de sublimação do ser humano e a capacidade de vencer tudo aquilo que foi na sua vida realidade: “Quem anda pelas lágrimas perdido, sonâmbulo dos trágicos flagelos…” Aqui também, do ponto de vista literário, estão todos esses valores que se encontram na poesia do Simbolismo.
Cruz e Sousa tem uma junção única na poesia brasileira – talvez Afonso Guimarães, seu companheiro de poesia simbolista, também o tenha -, uma fusão indefinível entre o Romantismo, estilo anterior a ele, o Simbolismo, sua marca, e o Parnasianismo.
O Parnasianismo é contemporâneo do Simbolismo. O Parnasianismo busca a pureza da forma, a palavra como expressão exclusiva da beleza. Inclusive, critica-se no Parnasianismo o predomínio da forma até sobre o tema, o conteúdo. E, no entanto, o Parnasianismo é um dos momentos mais elevados da poética brasileira.
O Modernismo, que se voltou violentamente contra esse estilo de poesia em 1922, negava ao verso a grande eloquência, negava ao verso o direito à busca da beleza pura, negava ao verso a forma estrita do soneto, a forma estrita da métrica, a forma estrita da rima, porque buscava libertá-lo do que chamava peias que o impediam de expandir-se do ponto de vista da expressão. A verdade é que o Simbolismo abre novos caminhos, como é verdade que esse tempo faz uma poesia absolutamente notável.

21 de abril de 2016

O Amor na lírica de Camões

"E sabei que, segundo o amor tiverdes,
tereis o entendimento de meus versos."
Camões
A tematização do amor, na lírica maneirista, segue duas tendências inteiramente opostas: uma que se manifesta como imagem negativa e condenatória do amor carnalmente consumado, da expressão sensual do desejo amoroso; outra, derivada da idealização neoplatônica, que o revela em termos os mais positivos. A primeira tendência domina quase inteiramente o espaço poético, acentuando-se o seu cultivo a partir das três últimas décadas do século XVI; a segunda, menos privilegiada pelos poetas, irrompe com mais frequência na poesia de Camões, como será mostrado mais adiante, gerando tensões e contradições no conjunto de sua lírica. Como explica Maria Vitalina Leal de Matos, a obra lírica de Camões “desenvolve-se toda ela em permanente antagonismo entre pólos opostos: sensibilidade e inteligência, amor sensual e amor espiritual, inocência e sentimento de culpa, humildade e orgulho são algumas das tendências opostas que solicitam em sentidos contrários essa poesia, fazendo dela o cenário de conflitos dolorosos onde sempre se procura a solução, o equilíbrio, a conciliação que raramente se encontra [...].
Em relação aos principais temas que o estimulam, Camões é levado a imaginar um modelo ideal, teórico: de perfeição, de racionalidade, de plenitude; mas a experiência desmente e desmorona essa construção da consciência. Então o poeta encontra-se dilacerado porque não pode deixar de aderir à tese que elabora e à antítese da experiência que a nega; na maioria dos casos sente-se incapaz de escolher; e quando escolhe, escolhe dividido, consciente de que metade de si lhe fica no que rejeita.” . ( Maria Vitalina Leal de Matos, A lírica de Camões, p.19).
Assim, acrescenta a autora, na vertente da lírica camoniana que tematiza o sentimento amoroso, o antagonismo mais evidente radica na “coexistência do amor sensual – expresso em termos de um erotismo muito audacioso, e do amor espiritual de feição platônica que parece tudo dispensar da presença da amada, até mesmo o vê-la”, na certeza de “que nunca Amor se afina, nem se apura,/ enquanto está presente a causa dele”.(Id. Ibidem).
Nas poesias líricas dos poetas maneiristas que desenvolvem o tema do amor sensual, o que se observa, de modo geral, é a reiterada expressão de uma visão superlativamente sombria da experiência amorosa. Nela, o amor se configura como agente da acentuada instabilidade afetiva e emocional do amante, de aflitiva insegurança e de incertezas, como núcleo dinamizador de permanente desequilíbrio que arrasta o poeta a situações de natureza sumamente contraditória, senão oposta: alegria / tristeza; esperança/ desespero; engano/ desengano; amor/ ódio, etc.
Como ocorre nas obras poéticas dos seus contemporâneos, também em sua lírica Camões prodigaliza exemplos dos malefícios do amor. Na opinião do poeta, “não pode no mundo haver tristeza/ em cuja causa Amor não tenha parte”. Daí a sua indagação aos que sofrem padecimentos amorosos: “se das dores de amor sois maltratados,/ porque tanto buscais de amor as dores?”
Toda essa vivência negativa tem como consequência o desconcerto sentimental do homem enamorado, resultando em expressões de recusa ou de execração do amor, da experiência amorosa, da qual derivam dor e frustração constantes. O discurso que radica na experiência do amor denuncia, com cores fortes, os malefícios e os desenganos, as causas e os efeitos do drama amoroso. O amor sensual, consumado ou não no plano da experiência carnal, quando não é tragicamente ensombrado por toda sorte de males, revela-se irremediavelmente implicado com a saudade, a insatisfação, a perda através da morte ou da ausência física, com o sentimento da culpa e do pecado. Desse modo, o pathos amoroso dinamiza o campo subjetivo dos poetas a partir da experiência já vivida e da ausência da mulher amada, nutrindo-se das lembranças do passado, fazendo desse ser eleito pelo coração e da própria felicidade, perdidos no tempo e na distância, o objeto das suas reminiscências. Não importa se é uma ausência em razão de uma separação imposta pelo distanciamento no tempo ou no espaço, se é uma ausência causada pela morte ou pela perda da reciprocidade amorosa, o fato é que jamais o homem e a mulher caminham juntos, de mãos enlaçadas; jamais se encontram diante um do outro, mergulhados na horizontalidade do olhar de um no olhar do outro.
Daí os discursos da frustração: todo amor acaba no drama da separação ou da saturação; a amargura sucede irrecorrivelmente ao prazer; a alegria cede lugar à tristeza; o engano remete ao desengano e, deste, à melancolia, ao desespero, à descrença. Emerge sempre dessa situação um lirismo subjetivo, prenhe de confessionalismo e confidências reveladoras da aflição e da mágoa, do desespero e da angústia, dos enleios do sonho, que revestem na sua expressão um timbre de melancólico desalento e amarga resignação:

Quem vos levou de mim, saudoso estado, 
que tanta sem-razão comigo usastes? 
Quem foi por quem tão presto me negastes, 
esquecido de todo o bem passado? 
Trocastes-me um descanso em um cuidado 
tão duro, tão cruel qual me ordenastes; 
a fé que tínheis dado me negastes, 
quando mais nela estava confiado. 
Vivia sem receio deste mal. 
Fortuna, que tem tudo à mercê, 
amor com desamor me devolve. 
Bem sei que neste caso nada vale, 
que quem nasceu chorando, justo é 
que pague com chorar o que perdeu. 

A melancolia e a angústia derivadas da mundividência maneirista atravessam toda a poesia que tematiza o amor sensual, denunciando a já aludida visão negativa do amor cultivada pelos poetas, que parecem não admitir a possibilidade de o amor ser uma experiência enriquecedora vivenciada em um clima de comprazimento, de alegria e de intensidade erótica, na plenitude do gozo e na legitimidade da fruição do prazer carnal. Muitos dentre eles, principalmente na fase finissecular do Maneirismo, passaram a cultivar a equivocada concepção de que o amor humano só propicia a frustração e a dor do desengano, o sofrimento, a tristeza e o aniquilamento moral e afetivo do homem. 
Na obra de Diogo Bernardes, por exemplo, não há um só verso indicativo da alegria nascida da satisfação de um anseio amoroso. É sempre ele que, ardendo na chama de uma paixão não retribuída, se dirige à mulher amada, em termos de respeitoso queixume ou de magoada súplica: “Quantas penas, Amor, quantos cuidados, / Quantas lágrimas tristes, sem proveito, [...] Quantos mortais suspiros derramados, / Quantos males enfim tu me tens feito”. (Diogo Bernardes, Flores do Lima, p. 45) 
Camões não fica aquém dos seus contemporâneos, quando se trata de expressar os males que sofreu ao longo da vida por causa do amor. Mesmo quando se queixa reiteradamente da perseguição da “inexorável Fortuna” e dos próprios “erros” cometidos, que tantos padecimentos lhe trouxeram, o poeta culpabiliza o amor por suas vicissitudes amorosas. Ele é a causa das suas frementes angústias, padecimentos e agitações interiores. Vários sonetos abordam o tema:

Erros meus, má fortuna, amor ardente 
Em minha perdição se conjuraram; 
Os erros e a fortuna sobejaram, 

Que pera mim bastava amor somente. 
Tudo passei; mas tenho tão presente 
a grande dor das cousas que passaram, 
que as magoadas iras me ensinaram 
a não querer já nunca ser contente. 
Errei todo o discurso dos meus anos; 
dei causa [a] que a fortuna castigasse 
as minhas mal fundadas esperanças. 
De amor não vi senão breves enganos 
Oh! quem tanto pudesse, que fartasse 
este meu duro Gênio de vinganças! 

Oh! Quão caro me custa o entender-te, 
Molesto Amor, que só por alcançar-te, 
De dor em dor me tens trazido a parte 
Onde em ti ódio e ira se converte! 
Cuidei que, pêra em tudo conhecer-te, 
me não faltasse experiência e arte; 
agora vejo na alma acrescentar-te 
aquilo que era causa de perder-te. 
Estavas tão secreto no meu peito, 
que eu mesmo, que te tinha, não sabia 
que me senhoreavas deste jeito. 
Descobriste-te agora; e foi por via 
que teu descobrimento e meu defeito, 
um me envergonha e outro me injuria. 

Nem sempre o amor é apresentado na lírica camoniana em consonância com as doutrinas neoplatônicas, ou seja, como um princípio de harmonia e via de ascensão espiritual do homem. Ao contrário disso, nela o amor apresenta características e qualificações que denunciam o seu caráter disfórico. Na Écloga II, por exemplo, o poeta põe nas falas de Agrário toda a linguagem da descrença na bondade do amor, concebido como uma entidade maléfica, portadora de tormentos, insânia e toda sorte de infortúnios:

Não é amor, se não vier 
Com doudices, desonras, dissensões, 
Pazes, guerras, prazer e desprazer, 
Perigos, línguas más, murmurações, 
Ciúmes, arruídos, competências, 
Temores, mortes, nojos, perdições. 
Estas são verdadeiras experiências 
De quem põe o desejo onde não deve, 
De quem engana alheias inocências. 
Mas isto tem Amor, que se escreve 
Senão onde é ilícito e custoso; 
E onde é mor o perigo mais se atreve. 

Contrapondo-se à visão sombria e negativa do amor, antes referida, os neoplatônicos recusam os atributos maléficos desse sentimento, considerando-o, como esclarece Vítor Manuel de Aguiar e Silva, como um bem não contaminado “princípio de ascensão espiritual e de redenção individual e cósmica.”( Vítor Manuel de A. e Silva, Camões, labirintos e fascínios, p. 169.) Assim sendo, o amor, segundo a doutrina neoplatônica, relaciona-se com a inteligência divina e, como tal, é em sua essência um sentimento harmonioso e sereno, uma força capaz de encaminhar o homem ao conhecimento e conduzi-lo a um estágio elevado de aperfeiçoamento. 
“Por conseguinte, no âmbito da doutrina neoplatônica ou de uma doutrina neoplatonizante do amor, não são logicamente concebíveis a condenação fundadas em razões éticas, metafísicas e religiosas, do amor, nem a expressão do arrependimento e do remorso por se ter vivido, na plenitude harmoniosa da sua dimensão humana e da sua dimensão divina, o sentimento amoroso.”(V.M.A.e.Silva. Op cit. p 225) 
O eros platônico nasce da visão do belo. Todavia, tal beleza está para além das qualidades e aparências que o vulgo valoriza, ou seja, o conjunto de atributos físicos da amada. No amor platônico, o sujeito enamorado transcende à visão meramente exterior da mulher, para enxergar somente “a graça pura,/ A luz alta e severa,/ Que é raio da divina fermosura,/ Que na alma imprime e fora reverbera”. É essa beleza excelente, pura, reminiscência e participação da beleza absoluta, da beleza que está na alma; é, enfim, como Camões tenta definir:

Aquele não sei quê, 
Que aspira não sei como, 
Que, invisível saindo, a vista o vê, 
Mas pera o compreender não lhe acha tomo.

Se o eros platônico tem a sua gênese na contemplação da beleza absoluta, que se fixa “no pensamento como idéia”; se é manifestação do “Amor, que o gesto humano na alma escreve”, então ele, como força atinente a uma faculdade divina da alma, é imune à morte, “porque, enfim, a alma vive eternamente, / E amor é efeito de alma, e sempre dura” Nesses termos, a vivência do amor platonicamente sentido escapa à substância material do ser amado, independe de sua presença física, como sugerem os versos camonianos que se seguem: 

*E aquela humana figura
Que cá me pôde alterar 
Não é quem se há de buscar: 
É raio de formosura 
Que só se deve de amar. 

Que os olhos, e a luz que ateia 
O fogo que cá sujeita, 
Não do sol, nem da candeia: 
É sombra daquela idéia 
Que em Deus está mais perfeita.

É praticamente na poesia de Camões que a visão neoplatônica do mundo, do homem e do amor irrompe de forma precisa, ao contrário do que se observa nos poetas seus contemporâneos. Nas obras destes, o que se constata é a manifestação sistemática de uma noção acerca do amor inteiramente contrária à noção neoplatônica, à qual se soma uma evidente reduplicação do discurso ideológico religioso agostiniano, como será visto mais adiante. 
Apesar de a expressão do amor neoplatônico ser privilegiada reiteradamente e quase com exclusividade nos domínios da lírica camoniana, é pertinente a inserção do “amor idealizado” entre os temas específicos da poesia maneirista, principalmente considerando-se a qualidade indiscutível do discurso poético de Camões e o reconhecimento do poeta como figura exponencial do Maneirismo português. 
Sem ser discrepante ou contraditório, Camões organiza a sua lírica através de duas vertentes, ou seja, uma que se volta para a expressão do amor sensual, com todos os males que lhe são inerentes, fruto da experiência do poeta, e de outra que se orienta para a expressão do amor idealizado, haurido na lição neoplatônica. Essa contraditória situação não parece ter passado despercebida ao poeta, que, em uma das suas canções, alude às duas tendências amorosas que em seu íntimo rivalizam e disputam o espaço em sua expressão poética. Para ele, o amor carnal “fraquezas são do corpo que é da terra, / mas não do pensamento, que é divino, enquanto o amor platônico é efeito da alma; [...] está no pensamento como idéia”. 
No soneto que se segue, as duas concepções de amor são postas em evidência pelo poeta. A análise que ele faz do sentimento amoroso mostra este ora como puro sentimento e aspiração espiritual, conforme o modelo petrarquiano, ora como rebaixamento desse sentimento, que se revela maculado na medida em que se transmuda em desejo de fruição sensual: 

Pede-me o desejo, Dama, que vos veja, 
não entende o que pede, está enganado. 
É este amor tão fino e tão delgado 
que, quem o tem, não sabe o que deseja. 
Não há cousa, a qual natural seja, 
que não queira perpétuo seu estado; 
não quer logo o desejo desejado, 
por que não falte nunca onde sobeja. 
Mas este puro afecto em mim se dana 
que, como a grave pedra tem por arte 
o centro desejar da Natureza. 
Assim o pensamento (pola parte 
vai tomar de mim terreste humana) 
foi, Senhora, pedir esta baixeza. 

A leitura do soneto confirma, portanto, a coexistência de duas formas de vivenciar o amor pelo poeta que são absolutamente opostas e inconciliáveis: uma que radica numa forma idealizada de amor platônico, outro derivado da própria experiência: ambos tão divergentes, tão opostos como o são a alma e o corpo, as exigências da carne e as solicitações do espírito. 
Nos quartetos, o poeta analisa seus impulsos eróticos, na tentativa de convencer-se de que “o desejo [...] não entende o que pede, está enganado [...] não sabe o que deseja”. Contudo, logo no primeiro terceto, irrompe um verso portador de um outro discurso, que parece postergar ou mesmo contradizer a reflexão anterior do poeta: “Mas este puro afecto em mim se dana”, ou seja, em mim não encontra sustentação, avilta-se, aniquila-se no impulso erótico que move a emoção do eu lírico. 
Vale salientar que essa contradição do sentimento amoroso vivenciado pelo poeta, esse conflito interior entre o anseio de um sentimento amoroso puro, espiritual e o desejo de satisfazer o apelo dos sentidos, essa dupla e antinômica postura que ele assume perante o amor, tudo isso é muito peculiar à lírica camoniana e muito típico do Maneirismo. 
A poesia de Camões desdobra-se forçosamente em cumplicidade com os dois aspectos que pode assumir o sentimento amoroso, razão pela qual ele é considerado o poeta que mais sentida e belamente exprimiu todas as nuanças do amor espiritualmente idealizado bem como o que mais soube expressar a beleza, o deleite, a sensualidade e a emoção do amor carnal. 
O que fica evidente nessa atitude de Camões é a sua independência e lucidez perante as tendências comuns adotadas pelos poetas do seu tempo, a imposição do seu individualismo e da liberdade com que punha em prática a criação poética, também notórias em Os Lusíadas, texto no qual a audácia transgressiva do poeta ousa romper com o “dogma” da imitação servil ao figurino virgiliano da epopéia. *

Autora: Zenóbia Collares Moreira. O lirismo maneirista de Camões/2007.


                                  

15 de abril de 2016

Eros liberto, poesia de Ana Harterley

Ana Hatherly, pseudônimo literário usado pela poetisa Ana Maria Rocha Pereira, nasceu no Porto em 1929. Em 1958 estreou na cena literária com a obra Caminhos da moderna poesia portuguesa. Neste, como nos demais livros escritos entre 1958 e 1962, a poetisa ainda não atingira o nível de excelência que revelaria nos poemas de Sigma, livro publicado em 1965, sob o influxo de movimentos de vanguarda, dos quais participou ativamente, principalmente no Grupo Poesia Experimental Portuguesa. 
Com este livro a poetisa inaugura uma nova fase de sua produção poética, até então ainda presa às formas mais tradicionalistas, mais comedidas em relação às novidades vanguardistas, que já haviam conquistado direito à cidadania nas letras lusitanas, desde o Movimento Orpheu.
 Nos livros que se seguiram à publicação de Sigma, Ana Hatherly deu continuidade às incursões poéticas nos domínios do experimentalismo, fazendo uso de uma linguagem mais instigante, por vezes sutilmente irônica que, em alguns casos, parece incorporar ecos da poesia de Álvaro de Campos, aliados a determinados artifícios do imaginário surrealista, aos quais imprimiu sua marca pessoal, conseguindo atingir resultados bastante expressivos. 
Ana Hatherly publicou uma grande quantidade de livros de poesias, novelas, crítica literária e ensaios.
Os dois textos que se seguem foram coligidos na obra de estreia da autora – Um ritmo perdido, no qual se revela inclinada a um tipo de discurso de tendência filosófica e moralizadora que, conforme foi dito antes, é muito distanciada da poesia que surge a partir de 1965, com Signo, o seu livro mais bem conseguido:

MAS QUE BRANCURA...


Mas que brancura impressionante
De estátua idealizada...
Acaso o tempo nos branqueia
Os ossos e o sentir?
Sai daí,
Humanidade perturbante do meu sonho!
Queres ser alma e corpo
De matéria que nem sequer existe?



AQUELE QUE PROCUROU
Aquele que procurou
E não encontrou,
É o homem desiludido.
Aquele que não procura
E tudo encontra
E nada pode fazer do que achou,
É mais que infeliz:
Sabe a verdade.

Com o livro Eros frenético, publicado em 1968, Ana Hatherly assume o exercício da poesia erótica, também praticadas por muitas outras personalidades femininas da poesia contemporânea. Comparando-se os dois poemas anteriores com os que serão dados a seguir, observa-se, logo à primeira leitura, a grande diferença entre as duas fases da poesia da escritora, antes referidas. A poesia que aparece a partir de 1965 perde o tom conceituoso e moralizador, cedendo lugar a uma expressão poética revitalizada por uma força dramática e lírica, por um ímpeto de paixão que perpassam os versos, na ânsia de exprimir a linguagem do corpo, a ardência do desejo, seus segredos, sua busca de consumação e êxtase:


VOLÚPSIA
O corpo fala
na muda voz da ideia cruamente pura
seus poderes são pensamento-ato.
Oh sombra impaciente
ardes sem limite
O desejo tem espaços próprios
seus segredos
seus exaltados erros
Oh impudico
Teu furor é inquieto
e imenso.

Emaranhados neste anseio-sonho
nesta precisa-aposta
Tu – Eu
Neste ardente ardor
só tu és pausa
fuga
além-palavra
O nosso corpo freme
na adoração do grande olvido

Vagas sucessivas submergem
este ser-não ser
este querer-já-não querer
esta renovada festa-febre
Oh exultante
exaltante festa do tumulto
Sorri
Sorri-me

Eis o momento:
todas as penas imagináveis
te dissolvem nesta adoração
cruel
sem busca
abolida
Amor é fogo que arde e se vê
em ti
em mim
em tudo o que consome
Cegos
surdos
apenas te sabemos
apenas te queremos
fatal fome