22 de setembro de 2009

A SAUDADE E A IDEALIZAÇÃO DO AMOR

Relacionadas tanto à temática amorosa de pendor sensual quanto à de índole neoplatônica, irrompem com muita freqüência na poesia dos maneiristas composições que expressam a saudade da mulher amada, do amor perdido ou a saudade da felicidade passada. Como lembra Maria Vitalina Leal Matos, a forma mais comum de vivenciar o amor “consiste na saudade, seja ela encarada, segundo o neoplatonismo, como a ausência que se torna condição de aperfeiçoamento, seja como a ausência que é sentida como carência insuportável.”

A saudade exprime também outro momento da angústia na poesia dos maneiristas: aquele em que a memória se obstina na recordação dolorosa de um bem que se teve e que se perdeu na distância ou no tempo pretérito. Toda a satisfação passada se reduz à mágoa e ao desprazer, porque provém exclusivamente de lembranças cuja realidade, que tem a mesma consistência do sonho, já se esvaíra. Camões escreveu vários sonetos tematizando a saudade da felicidade perdida, ou a dor proveniente da ausência da mulher amada. Sem a amada, só lhe resta chorar no tempo presente as memórias de um outro já pretérito:
*
Doce contentamento já passado
Em que todo o meu bem já consistia,
Quem vos levou da minha companhia
E me deixou de vós tão apartado?

Quem cuidou que se visse neste estado,
naquelas breves horas de alegria,
quando minha ventura consentia
que de enganos vivesse meu cuidado?

Fortuna minha foi cruel e dura
aquela que causou meu perdimento,
com a qual ninguém pode ter cautela.

Nem se engane nenhuma criatura,
que não pode nenhum impedimento
fugir do que [lhe] ordena sua estrela.

A experiência da saudade leva o enamorado à tentativa de recuperar o amor e a mulher amada através da memória, da reminiscência do bem distante, mais das vezes situado num tempo já bem recuado. Todavia a rememoração do que perdeu não o liberta do sentimento de frustração e tristeza provocado pela recordação do passado; antes intensifica a dor da ausência e o sentimento de perda:

Doces lembranças da passada glória,
que me tirou Fortuna roubadora,
deixai-me repousar em paz uma hora,
que comigo ganhais pouca vitória.

Impressa tenho na alma a larga história
desse passado bem, que nunca fora;
ou fora, e não passara; mas já agora
em mim não pode haver mais que a memória.

Vivo em lembranças, mouro de esquecido
de quem sempre devera ser lembrado,
se lhe lembrara estado tão contente.

Oh! quem tornar pudera a ser nascido!
Soubera-me lograr do bem passado,
se conhecer soubera o mal presente.

Nas poesias dos maneiristas, a mulher amada está sempre distanciada do homem dela enamorado, mesmo quando o amor é correspondido. O discurso do amante é sempre um solilóquio doloroso, muitas vezes expressando o padecimento presente em razão das reminiscências do bem perdido ou distante, as quais ele preferiria apagar da lembrança, pois não devolvem as alegrias passadas: “antes me põe [as lembranças] diante o bem perdido”, como se queixa Diogo Bernardes, ou “fazem tanto mal ao pensamento”, conforme escreve Camões. O drama da ausência é, assim, protagonizado pela própria revivescência do passado irrecuperável, que melhor seria esquecer, mas que permanece vitoriosamente presente e indelével na memória afetiva do amante.
Nas redondilhas Babel e Sião, o saudosismo camoniano é comunicado e definido a partir de expressões plenas de sentimento que a linguagem própria do neoplatonismo ajuda a formular, reforçando a busca e a ânsia de perfeição concretizada na perseguição “da verdade única e essencial” que irrompe nos versos do poema. Neles, observa-se a superação da saudade da pátria e da mulher amada por uma saudade de índole mística que remete o poeta, através de uma suave e tranqüila rememoração, a um recuadíssimo tempo pretérito, anterior à sua humanidade, vivido no espaço transcendente e na plenitude do espírito:

Não é logo a saudade
das terras onde nasceu
a carne, mas é do Céu,
daquela Santa Cidade
donde esta alma descendeu.

Há ainda que referir uma outra variante da temática da saudade, que se compraz com a ausência física da mulher amada, cuja imagem se conserva inalterada e albergada no pensamento e no espírito do poeta. Sobre isso, comenta Jacinto do Prado Coelho: “se a tradição neoplatônica do dolce stil nuovo e de todo o lirismo petrarquista bastaria para explicar” e dimensionar o que há de imaterial e puro na mulher objeto do amor desses poetas, “a experiência pessoal da separação, o viver longe pela memória e pela fantasia, decerto contribuíram para dar mais humana, mais comovente autenticidade ao processo ascensional que a poesia amorosa” de Camões e de outros poetas testemunham. “Se a visão da mulher obriga o poeta ao êxtase, é porque se manifesta, não como objecto de lascívia, mas como deslumbrante força espiritual”
Conforme entende Maria Vitalina de Matos, o que se impõe nessa relação amorosa não é a satisfação do desejo, não é a posse da mulher amada; o que o amante deseja é o amor. “E é nesse amor do amor que reside a razão última da vivência camoniana”, da experiência dos poetas neoplatônicos. Com efeito, esses poetas que privilegiam a ausência da mulher amada como um bem reservam para esta um lugar pouco relevante na cena amorosa: ela é apenas um objeto no qual o amor é projetado. Realmente, “o que eles amam é o amor, é o próprio fato de amar”, [...]
Os amantes “têm necessidade um do outro para arderem em paixão, mas não um do outro tal como cada um é; e não da presença do outro, mas bem mais da sua ausência!” Portanto o amor que nasce e que se nutre no espírito, o amor segundo a doutrina neoplatônica, assume um estatuto de eternidade que lhe permite transcender à própria morte, a mais radical, inexorável e irreversível forma de separação. Tais idéias são assimiladas por Camões e expressas nos versos finais de sua Elegia II:

Que se amor não se perde em vida ausente,
Menos se perderá por morte escura:
Porque, enfim, a alma vive eternamente,
E o amor é efeito da alma, e sempre dura.

Um dos motivos mais comuns da saudade radica na ausência do ser amado em razão da morte ou de um forçado afastamento. A dor da separação involuntária resulta em muitas composições que abordam dramaticamente toda a emoção da despedida ou da perda irremediável:

Alma gentil, que à firme Eternidade
Subsiste clara e valerosamente,
Cá durará de ti perpetuamente
A fama, a glória, o nome e a saudade.

O poeta maneirista, na vivência excruciante do infortúnio presente, busca, no passado, o tempo da felicidade resgatável, descobrindo, mais das vezes, que, no tempo em que embaído se imaginava feliz, já não o era, na medida em que a ansiada e crida felicidade se põe sempre no tempo já decorrido em relação a qualquer tempo a que o homem se reporte. O que existe, em termos psicológicos, é a aspiração por estados venturosos, em algumas ocasiões projetados no tempo futuro através do devaneio, e a nostalgia da felicidade já passada e perdida na lonjura do tempo e no obscuro sótão da memória.
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Autora: Zenóbia Collares Moreira, In O lirismo maneirista de Camões.




2 comentários:

Eva.Bloggs disse...

testando

Eva.Bloggs disse...

Será que Camões não faz mais sucesso?  Mon Dieu!