Integra-se nessa linha o tema do “mundo desconcertado”, que abre espaço para queixas e críticas dos poetas contra a desordem, a injustiça, a corrupção e a inversão de valores prevalecentes na sociedade do seu tempo, que Camões tão bem traduz em sua lírica, prodigalizando lamentos por tais desconcertos.
No longo poema que escreveu sobre o assunto, Oitavas a um amigo sobre o desconcerto do mundo, o poeta vai enumerando e analisando, melancólica e criticamente, o espetáculo que o mundo proporciona, protagonizado pelas mais diversas facetas que assumem os desequilíbrios sociais e morais aos quais ninguém está isento:
Quem pode ser no mundo tão quieto,
Ou quem terá tão livre o pensamento,
Quem tão exp’rimentado e tão discreto,
Tão fora, enfim, de humano entendimento
Que, ou com público efeito, ou com secreto,
Lhe não revolva e espante o sentimento,
Deixando-lhe o juízo quase incerto,
Ver e notar do mundo o desconcerto?
É importante notar que o poeta rejeita qualquer manifestação de espanto por parte dos homens sensíveis, dos homens conscientes, perante a realidade caótica de um mundo às avessas, transtornado pelo “desconcerto”.
Tem o tempo sua ordem já sabida;o mundo não; mas anda tão confuso,
que parece que dele Deus se esquece.
Em outros passos de sua lírica, Camões torna a fazer do “desconcerto do mundo” matéria poética, mercê da reflexão sobre a condição do homem em meio à desordem, à inversão de valores e à injustiça predominantes numa sociedade cujo mal era, antes de tudo, moral:
Os bons vi sempre passarNo mundo graves tormentos
E, para mais me espantar,
Os maus vi sempre nadar
Em mar de contentamentos.
No soneto Correm turvas as águas deste rio, Camões retoma as suas reflexões sobre as manifestações do desconcerto do mundo social contrapondo-se à ordem do tempo natural em sua previsibilidade e constância:
Correm turvas as águas deste rio,Que as do céu e as do monte turbaram;
Os campos florescidos se secaram;
Intratável se fez o vale, e frio.
Passou o verão, passou o ardente estio;
as cousas por outras se trocaram;
Os fementidos Fados já deixaram
Do mundo o regimento ou desvario.
Tem o tempo a sua ordem já sabida;
O mundo não; mas anda tão confuso,
Que parece que dele Deus se esquece.
Casos, opiniões, natura e uso
Fazem que nos pareça desta vida
Que não há nela mais que o que parece.
Também Os Lusíadas são pontilhados por versos críticos, quando não amargos, contra os destrambelhos que o poeta observa na sociedade do seu tempo. Nos exórdios, que encerram sete dos dez cantos, por exemplo, sobressaem a melancolia, o desengano, o pessimismo, a consciência do autor acerca do desconcerto do mundo e da insignificância do homem, tão genuinamente maneiristas.
O Maneirismo, conforme ficou explicitado, ultrapassa a mera expressão de uma crise espiritual. No entender de Gustav René Hocke, mais que isso, ele significa a tomada de consciência do homem acerca “de um mundo que se desagrega e de uma crise epocal.”
A essa crise, que afeta a todos, se soma, por inevitável conseqüência, uma desencantada visão do real, geradora de uma inquietude que, em muitos casos, se exaspera em amargura, suscitando versos que expressam o non sense do mundo e, nele, o papel protagonizado pelo homem: o de um ser esmagado pela aflição e invadido por impotente angústia.
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1. Gustav René Hocke. El mundo como laberinto, v.I, p.195
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Autora: Zenóbia Collares Moreira, In O lirismo maneirista de Luís de Camões (no prelo).