Se, na composição dos sonetos, Sóror Madalena da Glória revela menos esmero e habilidade do que Sóror Violante do Céu, consegue, no entanto, superá-la no trato com formas poéticas menos fechadas, adequadas, na medida justa, à sua exuberante e solta imaginação lírica, ao seu sereno sentimentalismo. Sóror Madalena da Glória destaca-se, ainda, pela desenvoltura com que maneja o jogo de conceitos típico do conceitismo, despojando esse estilo de exageros e frivolidades, utilizando-o no sentido mais intensamente expressivo de uma discreta densidade que emana dos seus versos. A estrofe que segue, escrita em oitava rima, ressalta a leveza da construção metafórica dos poemas da poetisa-freira, nos quais as metáforas em série vão se sucedendo de verso a verso, para exprimirem o caráter efêmero da vida humana:
Esse monte de fogo, que nascendo
Em campo de safiras, luz ardente
Em chegando ao zênite, já vai descendo
Quando o viste subir do seu oriente:
Nasceu luz, cresceu sol, porém morrendo
Nem luz, nem sol se mostra no ocidente.
Pois se de vida o sol não tem dois dias,
Mortal, como em instantes te confias?
A poesia de Sóror Madalena da Glória percorre, praticamente, toda a temática barroca, ocupando lugar de destaque o problema da efemeridade da vida humana, do tempo, da morte e do desengano. O tema da efemeridade da vida, quase sempre, se desenvolve em conexão com o da transitoriedade do tempo e da inexorável ação destrutiva que ele exerce sobre o físico e a mente do homem, arrastando-o para a morte:
Esse sono, em que cego vás passando,
Essa vida mortal, em que confias,
Já nas asas do tempo vai voando
Porque da vida instantes são os dias:
Já que o tempo da vida vai correndo,
A flor da formosura descaindo,
Do sol o resplendor desfalecendo,
E a luz do desengano vem ferindo:
Quando tudo da vida vai morrendo,
E tudo enfim a morte desunindo;
Oh! Considera em tão penosa sorte,
Que a vida é feno, sendo raio a morte!
No livro da poetisa, Orbe celeste, o tema da morte, sempre presente na lírica barroca, é desenvolvido em vários poemas dentre os quais figura o soneto a seguir, dedicado A uma caveira pintada em um painel que foi retrato, associado à meditação acerca da efemeridade dos valores terrenos:
Este que vês de sombras colorido
E invejas deu na primavera às flores,
Do pincel transformadas os primores
Desengano horroroso é dos sentidos.
Ídolo foi do engano pretendido
A que a cega ilusão votou louvores
Estrago é já do tempo e seus rigores
O que então foi ao que é já reduzido.
Foi um vão artifício do cuidado,
Foi luz exposta ao combater do vento,
Emprego dos perigos mal guardado;
Foi nácar reduzido ao macilento,
O culto ali nos medos transformada,
Mortalha a gala, a casa monumento.
É certo que a consciência de que o tempo flui, arrastando o homem, em sua passagem, não está presente apenas no Barroco; ela está presente na literatura desde sempre, intensificando-se no período maneirista, do qual transitou para o Barroco trazendo consigo o mesmo caráter obsessivo que lhe imprimiu o Maneirismo. O teor subjetivo da poesia de Madalena da Glória, a expressão de estados melancólicos, suscitados pela saudade de um bem ausente, pelo desengano e pelos ciúmes, é bem estranha, considerando-se tratar-se da obra de uma freira:
Aves que o ar discorrei,
No vôo as asas batendo,
E por vossas penas conta
Às minhas meu sentimento.
Compadecidas ouvi
De minha dor os excessos,
Mas em dizer que é saudade,
Digo o que posso dizer-vos.
Triste padeço, e ausente
Os golpes dos meus receios
Nas batalhas da distância,
Nos desafios do tempo.
Nas violências, do que choro,
Dos alívios desespero,
Que não adormece a queixa,
Quando a desperta o desvelo.
Esmoreceu a esperança
Nas dilações do desejo
Prognosticando a ruína
Frenético o pensamento.
Se meu mal são sintomas,
Mortais ausências, e zelos,
Era o remédio esquecer-me,
Se em mim houvera esquecimento.
Mas se faz no meu cuidado
Operações o veneno,
Viva de senti-lo quem,
Não morre de padecê-lo.
Já que morro, ingrata sorte,
Às mãos da tua porfia,
Deixa-me inquirir um dia
A causa da minha morte:
Se amor com impulso forte
Me rendeu, como me aparta
Do bem, que na alma retrata
Minha doce saudade,
Que em lágrimas persuade,
Como dá vida o que mata.
A religiosidade encontra na poesia barroca muitas formas de expressão. O sujeito poético apresenta-se quase sempre como um ser fraco, arrastado para o pecado e assumindo uma total dependência ao amor e da misericórdia de Deus. No soneto abaixo, inserto no livro de Sóror Madalena da Glória, Reino da Babilônia, o ser que nele fala posta-se suplicante perante a graça divina, contrito e consciente da sua situação de pecador penitente. Todavia, fica clara a relação amorosa que se estabelece entre a alma pecadora e o Criador, pautada numa reciprocidade que faz da criatura não apenas uma fonte de amor por Deus como o objeto do amor divino:
OITAVAS
Já, Senhor, despertaram meus cuidados
Em tanta ingratidão adormecidos;
Nasceram a querer-vos destinados
E em cega idolatria os vi perdidos.
Vossa mesma fineza lhe deu brados
Por que a tanto favor agradecidos
Confesse o coração com rendimento
Que é de vosso amor doce sustento.
Dos aparentes bens a prisão dura,
Que o gosto cativaram com violência,
Venceu a vossa luz a sombra escura
Para maior vitória da clemência.
Constante a minha fé vos assegura
De Babilônia às leis a resistência,
Que é certo pouco faz quem obedece,
Se chegando a vos ver o mais lhe esquece.
[...]
Não é a tematização do amor o que centraliza os interesses dos poetas barrocos. Muitas vezes o tema amoroso é abordado como mero exercício poético, como sátira ou como ludicidade. Talvez seja nesse último caso que se inclui a composição de Sóror Madalena da Glória que se segue, considerando-se que o poema é desenvolvido a partir de um mote, o que aponta para o caráter lúdico do texto:
MOTE E GLOSA
Tenho amor, sem ter amores.
GLOSAS
Este mal que não tem cura,
Este bem que me arrebata,
Este rigor que me mata,
Esta entendida loucura
É mal e é bem que me apura;
Se equivocando os rigores
Da fortuna aos favores,
É remédio em caso tal
Dar por resposta ao meu mal:
Tenho amor, sem ter amores.
É fogo, é incêndio, é raio,
Este, que em penosa calma,
Sendo do meu peito alma,
De minha vida é desmaio:
E pois em moral ensaio
Da dor padeço os rigores,
Pergunta em tristes clamores
A causa da minha aflição,
Respondeu o coração:
Tenho amor, sem ter amores.
A leveza da construção metafórica dos poemas da poetisa-freira, o equilíbrio e a habilidade com que maneja o conceitismo, o a vontade com que trabalha o verso, dando expressão aos sentimentos e sua imaginação lírica, faz da autora uma das mais qualificadas expressões da poesia barroca portuguesa.
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Autora: Zenóbia Collares Moreira (O Barroco no Feminino)
3 comentários:
Sou estudante de letras e venho sempre aqui para ler seus escritos. Sabe que tenho aprendido muito? Gostaria de comprar seu livro sobre o Maneirismo. Onde o posso encontrar? Agradeço.
VERA LÚCIA
O livro está praticamente esgotado. Talvez ainda exista na editora: EDUFRN. Entre no site da UFRN e encontrará o endereço. Eles informarão onde poderá encontrar o livro. Um abraço.
Zenóbia, este ensaio ajudou-me muito a conhecer um pouco mais sobre a poesia de Leonarda da Gama.
Gostaria que escrevesse mais sobre as autoras do Barroco, especialmente sobre Mariana Alcoforado. Seu blog é muito bom! Nunca encontrei nada melhor. Parabéns
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