27 de outubro de 2010

Um poema de Ramos Rosas


Caminha para a minha fronte

Poderemos acaso erguer uma torre de sossego

como se estivéssemos no interior do mundo?

Nós somos descendentes dos répteis
e por isso amamos o letargo solar entre sombras vegetais
Poderíamos assim ouvir o rumor da ausência
como um rosto entre longínquas nascentes
e a pulsação das pedras o obscuro júbilo do fogo
o sorriso cintilante de um regato
Estaríamos na intimidade do olvido
como a pura ignorância de uma sombra lúcida
Seríamos uma erva escrita pela saliva da terra
numa adequação vibrante e sóbria
Veríamos ascender o obscuro em lâmpadas nuas
e toda a espessura seria dúctil e porosa
A identidade encontraria a origem numa flora leve
a hospitalidade de uma terra
nas constelações de argila de basalto e esterco

Nem sempre é fácil a compreensão das poesias de Ramos Rosa, logo à primeira leitura, notadamente em razão da ambigüidade resultante do enfoque metafísico e da presença de elementos conflitantes que estabelecem relações de antagonismo no poema.

A composição “Caminha para a minha fronte” principia com uma indagação do poeta para a qual não pretende encontrar respostas, porque sabe que estas não virão, simplesmente por não terem existência. Sua indagação não passa de mero pretexto para suas ponderações acerca do que nos homens é desumano.

A intencionalidade da sua mensagem, no entanto, é expressar a sua preocupação de ordem metafísica. Todavia, a presença de idéias antagônicas joga-nos no campo das suposições, numa procura de do que há de insondável e velado na subjetividade do ser humano. 

Zenóbia Collares Moreira



21 de outubro de 2010

Francisca de Paola Possolo da Costa (Francília)



Francisca de Paola, além de poetisa foi também ficcionista, autora de um romance, Henriqueta de Orleans ou O Heroísmo, cujo sucesso ensejou duas edições seguidas do mesmo. Foi amiga pessoal de Castilho com quem manteve assídua correspondência. Deixou incontáveis sonetos e elegias inspirados em seu ardente amor por Jónio, nos quais dá livre desafogo à sua paixão em versos impregnados de ousada sensualidade. Esses apaixonados poemas cessam após a morte do marido. Da lira enlutada da poetisa, passam a emanar somente versos toldados pelo sofrimento inclemente que lhe dilacera a alma. A melancolia, a angústia da solidão e do bem irremediavelmente perdido às vezes refinam em desespero. Conseqüentemente, a sua poesia torna-se uma viva expressão da dor da ausência e do desejo de libertação na morte. Francília inscreve-se entre os poetas pré-românticos que expressam, em suas poesias, a paixão e o erotismo que envolvem os seus sentimento:


Graças aos Céus, chegou enfim o dia
Este dia feliz, tão suspirado,
Em que a tua presença, Jônio amado,
Virá encher minha alma de alegria! 
A tristeza mortal, que me oprimia,
Em risonho prazer se tem mudado,
Meu coração de suspirar cansado,
Respira livre de melancolia. 
Já a mimosa esperança me figura
O som da tua voz... alguns espaços,
Já cuido ouvir-te as frases de ternura. 
Meu bem...que te suspende? Apressa os passos, 
Oh!... Vem antes que chegue a noite escura,
Vem suspirar de amor, entre os meus braços.

O soneto abaixo é mais um dentre os vários em que a poetisa manifesta o desejo e o ardor por Jônio, pseudônimo do marido a quem dedica a maior parte dos seus poemas, sejam os sonetos escrito quando ele ainda vivia, sejam nos sonetos e poemas compostos após a sua morte:

Que me sucede, oh Céus! Eu reclinada
Nos braços do meu bem! Eu apertando
Ao peito a sua mão, seu rosto olhando,
Em amantes transportes enlevada!
Ventura, posso crer-te? Eu abraçada
De Jônio, por quem vivo suspirando!
Inda estou receosa, duvidando,
Que para sempre a ele estou ligada.
Doce Jônio, meu bem, já a teu lado...
Mas Deuses, aonde estavas... aonde estou eu?
Quem ma aparta de ti, Jônio adorado?
Ah! que só foi um sonho...oh justo Céu!
Ou me dá meu bem, o meu amado,
Ou dure eternamente o sonho meu.
*
Na série de composições escritas na fase do luto pelo marido, Francília transfere para a sua lira a intensidade da dor pela perda do homem amado. O confessionalismo típico da poética pré-romântica intensifica-se, o cenário que serve de pano de fundo para a expressão de sua mágoa e saudade é o locus horrendus, a paisagem sombria e lúgubre, árida e medonha, condizente com a escuridão que a poetisa traz dentro de si. Os três sonetos que se seguem são exemplares dessa vertente da poesia da autora, toda ela impregnada por sombria amargura:
*
Que sítio tão medonho!
Céus que horrores!
Que selva tão extensa, e tão sombria!
Seca e rebelde, a terra aqui não cria.
Mimosa relva, variadas flores!
Aves de agouro, mochos piadores
Aqui vêm ocultar-se à luz do dia.
E do negro cipreste, à sombra fria,
Soltam agudos, fúnebres clamores!
Pavoroso lugar, a Natureza
Para mim te criou expressamente,
Tu só podes fartar minha tristeza.
Aqui verei quebrar-se lentamente
Tênue fio, que a vida me tem presa!
Aqui meus dias findarei contente.

#
Neste bosque medonho, onde somente
Brilha o sol um instante cada dia,
Aqui onde da noite a mais sombria
O silêncio horroroso é permanente.
Aqui de amargo pranto, ocultamente
Inundarei a terra, seca, e fria;
Aqui meus ais, no seio da agonia,
Enviarei aos ares, livremente.
Desgostosa da vida, e fatigada
De suportar os duros, os cruentos,
Fatais pesares, de que estou cercada.
Quero ao Mundo fugir alguns momentos,
Enquanto a morte, em vão por mim chamando,
O termo não vem por a meus tormentos!

O lirismo de Francília é um diálogo permanente com a sua alegria ou com a sua dor. Intimista, confessional e cheia de paixão, sua poesia torna-se um discurso contínuo do eu sobre o outro - no caso Jônio. Daí a dicotomia que a caracteriza, na medida em que seu estro passa da luminosidade dos dias afortunados para a sombra corrosiva da desventura que a acompanhará até que a morte, tão desejada e suplicada, venha silenciá-la. Dentre as poetisas pré-românticas, Francília é a que mais se aproxima da linha poética de Elmano Sadino – Bocage – no que tange a sua evocação recorrente do locus horrendus, pela dramaticidade que imprime à expressão da dor e da saudade que a consomem.


By Zenóbia Collares Moreira


15 de outubro de 2010

O lirismo pré-romântico da Marquesa de Alorna.


D. Leonor de Almeida Portugal de Lorena e Lencastre – conhecida na História da Literatura Portuguesa pelo pseudônimo arcádico de Alcipe - nasceu em Lisboa no ano de 1750. Aos oito anos de idade foi mandada para o convento de Chelas, acompanhando sua mãe, mandada para a clausura pelo Marquês de Pombal, ao mesmo tempo em que seu pai- o Marquês de Alorna - era encarcerado no forte da Junqueira por suspeitas de estar envolvido na conspiração contra o rei D. José I. Libertada aos 26 anos, logo conheceu um militar alemão, o Conde de Oeynhausen, que, tomado de paixão pela bela Alcipe, não hesitou em tornar-se católico para desposá-la. A Marquesa faleceu em 1839, aos 89 anos de idade. deixando uma vasta obra literária manuscrita, publicada postumamente por uma das suas netas.
Sua poesia, como a muitos poetas seus contemporâneos, segue as duas tendências literárias coexistentes na segunda metade do século XVIII e primeiras décadas do século XIX: o Arcadismo e o Pré-Romantismo.
O soneto que vem a seguir tematiza a melancolia, tão cara aos pré-românticos, com a mesma suavidade que perpassa o lirismo da poetisa. Talvez por influência da formação clássica que recebeu, Alcipe não dá rédeas soltas ao sentimentalismo. Este passa sempre pelo crivo da razão, torna-se suave, delicado, lembrando freqüentemente a retórica camoniana.

Tu, Deusa tutelar da solidão,
Amável sombra, ó melancolia,
Aproxima-te, rouba-me a alegria
Que turba a suavidade ao coração.
Não prives o meu peito, Ninfa, não.
Da tua triste e doce companhia,
Que suspira por ti um e outro dia
Quem de amar-te só faz consolação.
E não pode a que vive suspirante
Viver entre o tumulto muito espaço,
Sem que faça o seu mal mais penetrante.
Atende, ó Ninfa, o rogo que te faço:
Não demores mais tempo o doce instante,
Os dias tristes, que eu tão triste passo.

De modo geral o lirismo pré-romântico da Marquesa de Alorna nunca é densamente ensombrado pela Musa Negra dos desesperados. O soneto abaixo faz incursões no panorama sombrio do locus horrendus, mas sem o caráter hiperbólico dos elmanistas. Seu estro é suave, a expressão da dor é contida, sem grandes apelos ao sentimentalismo:

Escassamente o sol já se mostrava
Entre a sombra que as luzes lhe encobria
Dos pássaros o canto que se ouvia
A ternura e saudades inspirava.
Já o mocho nocturno se escutava,
Que o retorno das trevas prevenia;
O terror que no peito meu descia,
Triste pranto dos olhos me arrancava.
Larguei a voz então aos surdos ventos,
Que nas cavernas ásperas, com brados,
Convocavam os sustos macilentos;
Aos soltos ais, nos montes espalhados,
Não respondem os seres sonolentos,
Que não há quem responda aos desgraçados.

No soneto abaixo, Alcipe intertextualiza o soneto II, de Camões, Eu cantarei de Amor tão docemente, por sua vez intertextualizado de um soneto de Petrarca:

Eu cantarei um dia da tristeza
Por uns termos tão terrenos e saudoso,
Que deixem aos alegres invejosos
De chorarem o mal que lhe não pesa.
Abrandarei das penhas a dureza,
Exalando suspiros tão queixosos,
Que jamais os rochedos cavernosos
Os repitam da mesma natureza.
Serras, penhascos, troncos, arvoredos,
Ave, fonte, montanha, flor, corrente,
Comigo hão-de chorar de amor enredos.
Mas ah ! que adoro uma alma que não sente!
Guarda, Amor, os teus pérfidos segredos,
Que eu derramo os meus ais inutilmente.

Um dos poemas mais bem conseguido da Marquesa é a cantata que compôs para o falecido marido. A doçura das palavras, a serenidade da dor, o sentimento da perda e da saudade pungentes derramam-se pelas páginas em braço como uma suave cascata de lágrimas. É tocante a expressão do amor, da aflição e da dor intensificados pelo refrão Que pavor / Espalha em todo o campo a minha dor!... que semelha o tanger cadenciado do sino fúnebre, soa como um réquiem solene, que irrompe da alma da poetisa:

Oferenda aos mortos
[cantata]
Aquele outeiro sombrio
Está de névoas coberto;
Escorre entre canas, perto
Fraco e murmurando, um rio.
Naquele negro pinhal,
Como tocha funeral,
Brilha modesta candeia,
Que ao pastor pobre alumeia,
Com a luz embaciada;
Vem por corvos arrastada
A tarde; A luz apenas das estrelas arde!...
Que pavor
Espalha em todo o campo a minha dor!...
Das frestas dos edifícios
Vergonhoso mocho voa,
Ecoam seus uivos atroa
Os Génios dos malefícios;
Saem Fadas peregrinas
A dançar sobre as ruínas,
E vêm por entre perigos
Gnomos, trasgos, inimigos.
Alumeia O pirilampo incerto esta coreia.
Que pavor
Espalha em todo o campo a minha dor!...
Estão todas apagadas
As luzes da Outra-Banda;
Pelas praças ninguém anda,
Vagam as sombras caladas,
Naquele triste convento
Dobra o sino sonolento;
O ar c’os sons esmorece,
O horizonte empalidece;
O vapor outumnal
Cobre-o de um véu fatal,
Sombrio.
Suspira o vento e nasce o calafrio.
Que pavor
Espalha em todo o campo a minha dor!...
Vêm aflitos pensamentos,
Vêm desde Sintra queixosos,
Vagar ternos e medrosos
Ao redor de monumentos...
A campa de Isa alvejando,
A escuridão vai cortando...
Dorme a quieta africana...
Dormirá a raça humana...
Não rompe o mundo
Letargo tal, um sono tão profundo.
Da manhã,
Para os mortos, a graça, a luz é vã.
Que pavor
Espalha em todo o campo a minha dor!...
Com teu clarão moderado,
Que objecto me estás mostrando?
Que me estás afigurando,
Crepúsculo descorado?...
Sombra majestosa e cara,
Que nas mãos da Parca avara
Enches todo o meu sentido!
És tu, Armínio querido?
Se te retrata a saudade,
Apaga as cores a realidade,
Entretanto,
O teu túmulo lava este meu pranto.
Que pavor
Espalha em todo o campo a minha dor!...
Sobre o teu marmóreo altar,
Onde oculto me magoas,
De plátano cinco c’roas
Venho hoje depositar.
Recebe, Armínio, a mais pura;
Duas leve-as a ternura,
De meu pranto comovida,
A Marcia, a Lilia querida:
Os dois penhores
Dos nossos tristes, doces amores,
Condoída,
Of’reço duas, of’recera a vida.
Que pavor
Espalha em todo o campo a minha dor!...

Apesar das dificuldades econômicas que a viuvez lhe acarretou, a Marquesa de Alorna transformou a sua residência num foco de ebulição cultural, onde se debatiam as novas tendências estéticas e literárias. Poetas como Bocage e Herculano, em diferentes momentos, freqüentaram os salões da poetisa, bem como o jovem Garrett.

Zenóbia Collares Moreira. Poetas do pré-romantismo português. 2001.