D. Leonor de Almeida Portugal de Lorena e Lencastre – conhecida na História da Literatura Portuguesa pelo pseudônimo arcádico de Alcipe - nasceu em Lisboa no ano de 1750. Aos oito anos de idade foi mandada para o convento de Chelas, acompanhando sua mãe, mandada para a clausura pelo Marquês de Pombal, ao mesmo tempo em que seu pai- o Marquês de Alorna - era encarcerado no forte da Junqueira por suspeitas de estar envolvido na conspiração contra o rei D. José I. Libertada aos 26 anos, logo conheceu um militar alemão, o Conde de Oeynhausen, que, tomado de paixão pela bela Alcipe, não hesitou em tornar-se católico para desposá-la. A Marquesa faleceu em 1839, aos 89 anos de idade. deixando uma vasta obra literária manuscrita, publicada postumamente por uma das suas netas.
Sua poesia, como a muitos poetas seus contemporâneos, segue as duas tendências literárias coexistentes na segunda metade do século XVIII e primeiras décadas do século XIX: o Arcadismo e o Pré-Romantismo.
O soneto que vem a seguir tematiza a melancolia, tão cara aos pré-românticos, com a mesma suavidade que perpassa o lirismo da poetisa. Talvez por influência da formação clássica que recebeu, Alcipe não dá rédeas soltas ao sentimentalismo. Este passa sempre pelo crivo da razão, torna-se suave, delicado, lembrando freqüentemente a retórica camoniana.
Tu, Deusa tutelar da solidão,
Amável sombra, ó melancolia,
Aproxima-te, rouba-me a alegria
Que turba a suavidade ao coração.
Não prives o meu peito, Ninfa, não.
Da tua triste e doce companhia,
Que suspira por ti um e outro dia
Quem de amar-te só faz consolação.
E não pode a que vive suspirante
Viver entre o tumulto muito espaço,
Sem que faça o seu mal mais penetrante.
Atende, ó Ninfa, o rogo que te faço:
Não demores mais tempo o doce instante,
Os dias tristes, que eu tão triste passo.
De modo geral o lirismo pré-romântico da Marquesa de Alorna nunca é densamente ensombrado pela Musa Negra dos desesperados. O soneto abaixo faz incursões no panorama sombrio do locus horrendus, mas sem o caráter hiperbólico dos elmanistas. Seu estro é suave, a expressão da dor é contida, sem grandes apelos ao sentimentalismo:
Escassamente o sol já se mostrava
Entre a sombra que as luzes lhe encobria
Dos pássaros o canto que se ouvia
A ternura e saudades inspirava.
Já o mocho nocturno se escutava,
Que o retorno das trevas prevenia;
O terror que no peito meu descia,
Triste pranto dos olhos me arrancava.
Larguei a voz então aos surdos ventos,
Que nas cavernas ásperas, com brados,
Convocavam os sustos macilentos;
Aos soltos ais, nos montes espalhados,
Não respondem os seres sonolentos,
Que não há quem responda aos desgraçados.
No soneto abaixo, Alcipe intertextualiza o soneto II, de Camões, Eu cantarei de Amor tão docemente, por sua vez intertextualizado de um soneto de Petrarca:
Eu cantarei um dia da tristeza
Por uns termos tão terrenos e saudoso,
Que deixem aos alegres invejosos
De chorarem o mal que lhe não pesa.
Abrandarei das penhas a dureza,
Exalando suspiros tão queixosos,
Que jamais os rochedos cavernosos
Os repitam da mesma natureza.
Serras, penhascos, troncos, arvoredos,
Ave, fonte, montanha, flor, corrente,
Comigo hão-de chorar de amor enredos.
Mas ah ! que adoro uma alma que não sente!
Guarda, Amor, os teus pérfidos segredos,
Que eu derramo os meus ais inutilmente.
Um dos poemas mais bem conseguido da Marquesa é a cantata que compôs para o falecido marido. A doçura das palavras, a serenidade da dor, o sentimento da perda e da saudade pungentes derramam-se pelas páginas em braço como uma suave cascata de lágrimas. É tocante a expressão do amor, da aflição e da dor intensificados pelo refrão Que pavor / Espalha em todo o campo a minha dor!... que semelha o tanger cadenciado do sino fúnebre, soa como um réquiem solene, que irrompe da alma da poetisa:
Oferenda aos mortos
[cantata]
Aquele outeiro sombrio
Está de névoas coberto;
Escorre entre canas, perto
Fraco e murmurando, um rio.
Naquele negro pinhal,
Como tocha funeral,
Brilha modesta candeia,
Que ao pastor pobre alumeia,
Com a luz embaciada;
Vem por corvos arrastada
A tarde; A luz apenas das estrelas arde!...
Que pavor
Espalha em todo o campo a minha dor!...
Das frestas dos edifícios
Vergonhoso mocho voa,
Ecoam seus uivos atroa
Os Génios dos malefícios;
Saem Fadas peregrinas
A dançar sobre as ruínas,
E vêm por entre perigos
Gnomos, trasgos, inimigos.
Alumeia O pirilampo incerto esta coreia.
Que pavor
Espalha em todo o campo a minha dor!...
Estão todas apagadas
As luzes da Outra-Banda;
Pelas praças ninguém anda,
Vagam as sombras caladas,
Naquele triste convento
Dobra o sino sonolento;
O ar c’os sons esmorece,
O horizonte empalidece;
O vapor outumnal
Cobre-o de um véu fatal,
Sombrio.
Suspira o vento e nasce o calafrio.
Que pavor
Espalha em todo o campo a minha dor!...
Vêm aflitos pensamentos,
Vêm desde Sintra queixosos,
Vagar ternos e medrosos
Ao redor de monumentos...
A campa de Isa alvejando,
A escuridão vai cortando...
Dorme a quieta africana...
Dormirá a raça humana...
Não rompe o mundo
Letargo tal, um sono tão profundo.
Da manhã,
Para os mortos, a graça, a luz é vã.
Que pavor
Espalha em todo o campo a minha dor!...
Com teu clarão moderado,
Que objecto me estás mostrando?
Que me estás afigurando,
Crepúsculo descorado?...
Sombra majestosa e cara,
Que nas mãos da Parca avara
Enches todo o meu sentido!
És tu, Armínio querido?
Se te retrata a saudade,
Apaga as cores a realidade,
Entretanto,
O teu túmulo lava este meu pranto.
Que pavor
Espalha em todo o campo a minha dor!...
Sobre o teu marmóreo altar,
Onde oculto me magoas,
De plátano cinco c’roas
Venho hoje depositar.
Recebe, Armínio, a mais pura;
Duas leve-as a ternura,
De meu pranto comovida,
A Marcia, a Lilia querida:
Os dois penhores
Dos nossos tristes, doces amores,
Condoída,
Of’reço duas, of’recera a vida.
Que pavor
Espalha em todo o campo a minha dor!...
Apesar das dificuldades econômicas que a viuvez lhe acarretou, a Marquesa de Alorna transformou a sua residência num foco de ebulição cultural, onde se debatiam as novas tendências estéticas e literárias. Poetas como Bocage e Herculano, em diferentes momentos, freqüentaram os salões da poetisa, bem como o jovem Garrett.
Zenóbia Collares Moreira. Poetas do pré-romantismo português. 2001.
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