29 de abril de 2011

F. Pessoa - Screvo meu livro à beira mágoa.

Poema do livro “Mensagem”, de Fernando Pessoa. O próprio autor explica o que o moveu a compor o poema, numa época em que a Nação caíra em descrédito e, portanto, somente através do resgate de um grande mito seria possível fazer Portugal ressuscitar das cinzas. Segundo declarou Pessoa: “temos felizmente o mito sebastianista com raízes profundas no passado e na alma portuguesa.. Nosso trabalho é pois mais fácil: não temos que criar um mito, senão que renová-lo. Comecemos por nos embebedar nesse sonho... Então se dará na alma da nação o fenômeno imprevisível de onde nascerão as Novas Descobertas, a criação do Mundo Novo, o Quinto Império”. (Entrevista com Augusto da Costa)

Screvo meu livro à beira-mágoa
Meu coração não tem que ter.
Tenho meus olhos quentes de água
Só tu, Senhor, me dás viver.

Só te sentir e te pensar
Meus dias vácuos enche e doura.
Mas quando quererás voltar?
Quando é o Rei? Quando é a hora?

Quando virás a ser o Cristo
De a quem morreu o falso Deus,
E a despertar do mal que existo
A Nova Terra e os Novos Céus?

Quando virás, ó Encoberto,
Sonho das eras português
Tormar-me mais que o sopro incerto
De um grande anseio que Deus Fez?

Ah, quando quererás, voltando,
Fazer minha esperança amor?
Da névoa e da saudade quando?
Quando, meu Sonho e meu Senhor?


COMENTÁRIO

“ Mensagem” se organiza a partir de elementos genuinamente sabastianistas. O poeta torturado pelo desgosto e pela insatisfação que lhe provoca a evidente degradação da nação, dos valores tradicionais do passado português e da própria grandeza de Portugal, amarga a mais dilacerante dor. Sua única razão para continuar vivendo ele a deposita na esperança sonhada da vinda do “Encoberto”, daquele que seria o salvador da nação.
A ansiedade e a inquietação do poeta pela realização de tal “sonho” revestem o poema de imensa emoção e intensa dramaticidade. O poeta “sonha” com o Salvador vindouro, e projeta o seu sonho, todo ele feito de esperança, no sonho do povo português de libertar a pátria do caos e da decadência em que está metida.
O “Salvador” vem do passado, vem de priscas eras, envolto em mistério, como algo grandiosamente transcentente e iluminado, no meio de uma névoa, com a missão de reescrever a história futura. O poema já anuncia a idéia pessoana do “Quinto Império”, do qual Pessoa se considera o anunciador, o super-poeta do super-Portugal. Claro que este Império em nada se assemelharia ao Império Português conquistado pelos antigos navegantes, seria um império cultural.
Vale notar que o poema, tipicamente sebastianista, é iniciado com uma evocação a um “Senhor” inominado ao qual o poeta, banhado em lágrimas, exprime as dolorosas condições em que o escreve, ou seja: “à beira-mágoa”, significando o estado de desespero e de dor que lhe esmagam o coração, Dor inerente ao desespero de quem sabe só lhe restar na vida o derradeiro ideal de encontrar “Nele”, nesse “Senhor”, a quem basta dirigir um pensamento, para ter a vida enriquecida e os dias vazios plenos de sentido
A recorrência insistente da expressão “quando”, especialmente na última estrofe, confere um sentido especial à inquietude e à ansiedade agônica do poeta pela chegada do “Encoberto”. A sua intensa emoção e a dramaticidade dos momentos da espera são bem marcados pelo uso reiterado das interrogações.
O desgosto, o desânimo, a frustração e a descrença de Pessoa no momento presente caótico em que vivia Portugal, na época em que escreveu esse poema, lembram muito os sentimentos de Camões expressos nos versos do último Canto de Os Lusíadas:

Nô mais, Musa, nô mais, que a Lira tenho
Destemperada e a voz enrouquecida;
E não do canto, mas de ver que venh
Cantar a gente surda e endurecida.
O favor com que mais se acende o engenho
Não no dá a pátria, não, que está metida
No gosto da cobiça e na rudeza
D ´hua austera, apagada e vil tristeza.

A época em que viveram os dois maiores poetas de Portugal e das nações lusófonas eram bem distanciadas, quatro séculos os separavam, mas os problemas políticos e econômicos em que vivia o povo português eram tão graves o quanto eram gerados por razões diferentes. O Portugal de Pessoa às voltas com o salazarismo, o Portugal de Camões à beira do abismo que foi a batalha de Alcácer-Quibir.
Vale muito fazer uma leitura de Mensagem cotejando o poema com Os Lusíadas, encontrando na epopéia pessoana os ecos da epopéia camoniana, ambas grandiosas fontes de imensurável prazer para a sensibilidade e gosto estético dos que amam a poesia dos grandes gênios da palavra.

By Zenóbia Collares Moreira

8 de abril de 2011

A poesia trovadoresca: Cantiga de Amigo

 A poesia trovadoresca era praticada apenas pelos homens. Os trovadores compunham as duas formas de poesia lírica: as Cantigas de amor e as Cantigas de amigo. As primeiras obedecem à ideologia do “amor cortês” segundo a qual o amante expressava o seu amor, jamais correspondido, por uma dama indiferente e inacessível. Nas segundas, o trovador, apropriava-se da voz feminina para compor variadíssimas formas de “cantigas”, nas quais a mulher é a personagem principal, que vai se encontrar com o namorado, que vai à romaria e lá espera encontrar o amigo, que vai lavar roupas ou os cabelos, etc. Há, portanto, uma ação da personagem, não apenas o desabafo intimista das suas alegrias, tristezas e vicissitudes amorosas. 
É importante observar que grande parte das Cantigas de amigo revelam sua inspiração na vida popular das zonas agrícolas e refletem o ambiente das comunidades rurais, nas quais a mulher goza de importância social. As personagens femininas que nelas figuram são mulheres do povo. Assim, os elementos naturais, fonte, riacho, árvores, aves, contextualizam o ambiente e também atuam sobre o “eu” feminino, despertando o amor, ou a confissão do desejo. Sensuais, freqüentemente as Cantigas de amigo são perpassadas de realismo amoroso, que confere autenticidade à expressão dos sentimentos, refletindo uma visão de mundo despojada das artificiosas cortesias comuns no ambiente da classe alta. 
A cantiga que se segue, é, quanto à forma, pararelística com refrão, ou seja: cada copla (estrofe) é composta por um par de versos, seguidos de refrão. É da autoria de Mendinho, um dos melhores dentre os trovadores da época. 

Sedia-me eu na ermida de San Simion [1] 
e cercaram-me as ondas, que grandes son: 
Eu atendendo o meu amigo [2] 
eu atendendo o meu amigo! 

Estava eu na ermida ante o altar, 
e cercaram-me as ondas grandes do mar: 
Eu atendendo o meu amigo, 
eu atendendo o meu amigo! 

E cercaram-me as ondas, que grandes son! 
Non hei barqueiro, nem ar son remador: [3] 
Eu atendendo o meu amigo, 
eu atendendo o meu amigo! 

E cercaram-me as ondas do alto mar! 
Non hei i varqueiro, nem ar sei remar [4] 
Eu atendendo o meu amigo, 
eu atendendo o meu amigo! 

Non hei barqueiro, nem ar son remador. 
e morrerei fremosa, no mar maior: 
Eu atendendo o meu amigo, 
eu atendendo o meu amigo! 

Non hei barqueiro, nen ar sei remar, 
e morrerei, fremosa, no alto mar: 
Eu atendendo o meu amigo, 
eu atendendo o meu amigo! 
__________________________ 
NOTAS 
[1]  sedia-me eu = sentada eu estava) 
[2]  atendendo = esperando. 
[3]   ar = também, além disso. 
[4]  i = aí. 


COMENTÁRIO 

A cantiga de Mendinho se desenvolve em torno da saudade da jovem cujo namorado partiu embarcado para algum lugar distante e ainda não retornou. Sentada de frente para o mar que o levou, ela desabafa a sua tristeza pela ausência do amado. 
O eu-lírico recorre à metáfora das ondas do mar proceloso para expressar o seu sofrimento pela ausência do namorado que demora a retornar. Dois sentimentos rivalizam na emoção da donzela chorosa: o medo de ser arrastada pelas ondas que se arrebentam ao seu redor, cada vez mais próximas, e o temor de que o seu namorado pemaneça ausente para sempre. Todavia, a imagem das ondas ameaçadoras e o medo que delas decorre metaforizam o seu medo principal, o que na verdade a aterroriza: perder o homem amado. 
A idéia da perda, o angustiante receio que isto aconteça é o que enche de amargura a jovem apaixonada, porque significaria o seu aniquilamento, a falência dos seus projetos de felicidade, o naufrágio dos seus sonhos e o desmoronamento de sua vida amorosa. 
Vale salientar a importância da Natureza no contexto da cantiga, corporificada nas ondas do mar e funcionando como participante do drama da donzela. 
A intensidade dramática com que a donzela exprime seus sentimentos vai aumentando de uma copla para a outra. Nas duas primeiras coplas, ela expressa temores já distanciados no passado, como indica o uso do verbo no particípio passado (sedia-me e cercavam-me). Nas terceira e quarta coplas, o uso do perfeito do indicativo (cercaram-me) adquire um sentido de reiteração da ação no presente por anteceder o verso “Non hei barqueiro, nem ar son remador”, exprimindo uma ação presente. 
O emprego do ponto de exclamação no verso “E cercaram-me as ondas, que grandes son!” acentua a aproximação do perigo para a donzela e a sua emoção perante o mesmo. Tal perigo e a conseqüente emoção que gera no espírito da donzela vão crescendo, até atingirem o final da antepenúltima copla. Nas duas últimas, o emprego do verbo no futuro e a repetição do verso “E morrerei fremosa, no alto mar”, indicam uma tragédia preste a acontecer. 
Observar a expressividade do adjetivo “fremosa”, nas duas últimas coplas, instaurando a mudança do sentido do campo da metáfora para a área da realidade, tornando claro que o que apavorava a donzela não eram as ondas do mar, mas tão somente o fato de se colocar, em vão, frente ao mar que o havia levado, angustiada e temerosa, sem ver o namorado de regresso. Ela ainda é tão “fremosa” como era, quando o se fez amada por ele. Portanto, a sua beleza fora a causa principal do amor que, agora, é o motivo do seu grande sofrimento. 
Vale realçar a força expressiva do refrão no conjunto da cantiga. Ele, sendo repetido ao final de cada copla, vai reforçando a causa do desespero da donzela: a ausência do namorado. A única diferença que se estabelece fica nas duas últimas coplas, porque nestas os versos intensificam a dramaticidade do discurso: “E morrerei fremosa, no mar maior” – “E morrerei fremosa, no alto mar”. Isto significa, por um lado, que a donzela morrerá à espera do namorado e, quiçá, sem esperanças de tê-lo de volta ao seu abraço, e, por outro lado traduz o estado obsessivo da obstinada donzela.

Zenóbia Collares Moreira