A poesia trovadoresca era praticada apenas pelos homens. Os trovadores compunham as duas formas de poesia lírica: as Cantigas de amor e as Cantigas de amigo. As primeiras obedecem à ideologia do “amor cortês” segundo a qual o amante expressava o seu amor, jamais correspondido, por uma dama indiferente e inacessível. Nas segundas, o trovador, apropriava-se da voz feminina para compor variadíssimas formas de “cantigas”, nas quais a mulher é a personagem principal, que vai se encontrar com o namorado, que vai à romaria e lá espera encontrar o amigo, que vai lavar roupas ou os cabelos, etc. Há, portanto, uma ação da personagem, não apenas o desabafo intimista das suas alegrias, tristezas e vicissitudes amorosas.
É importante observar que grande parte das Cantigas de amigo revelam sua inspiração na vida popular das zonas agrícolas e refletem o ambiente das comunidades rurais, nas quais a mulher goza de importância social. As personagens femininas que nelas figuram são mulheres do povo. Assim, os elementos naturais, fonte, riacho, árvores, aves, contextualizam o ambiente e também atuam sobre o “eu” feminino, despertando o amor, ou a confissão do desejo. Sensuais, freqüentemente as Cantigas de amigo são perpassadas de realismo amoroso, que confere autenticidade à expressão dos sentimentos, refletindo uma visão de mundo despojada das artificiosas cortesias comuns no ambiente da classe alta.
A cantiga que se segue, é, quanto à forma, pararelística com refrão, ou seja: cada copla (estrofe) é composta por um par de versos, seguidos de refrão. É da autoria de Mendinho, um dos melhores dentre os trovadores da época.
Sedia-me eu na ermida de San Simion [1]
e cercaram-me as ondas, que grandes son:
Eu atendendo o meu amigo [2]
eu atendendo o meu amigo!
Estava eu na ermida ante o altar,
e cercaram-me as ondas grandes do mar:
Eu atendendo o meu amigo,
eu atendendo o meu amigo!
E cercaram-me as ondas, que grandes son!
Non hei barqueiro, nem ar son remador: [3]
Eu atendendo o meu amigo,
eu atendendo o meu amigo!
E cercaram-me as ondas do alto mar!
Non hei i varqueiro, nem ar sei remar [4]
Eu atendendo o meu amigo,
eu atendendo o meu amigo!
Non hei barqueiro, nem ar son remador.
e morrerei fremosa, no mar maior:
Eu atendendo o meu amigo,
eu atendendo o meu amigo!
Non hei barqueiro, nen ar sei remar,
e morrerei, fremosa, no alto mar:
Eu atendendo o meu amigo,
eu atendendo o meu amigo!
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NOTAS
[1] sedia-me eu = sentada eu estava)
[2] atendendo = esperando.
[3] ar = também, além disso.
[4] i = aí.
COMENTÁRIO
A cantiga de Mendinho se desenvolve em torno da saudade da jovem cujo namorado partiu embarcado para algum lugar distante e ainda não retornou. Sentada de frente para o mar que o levou, ela desabafa a sua tristeza pela ausência do amado.
O eu-lírico recorre à metáfora das ondas do mar proceloso para expressar o seu sofrimento pela ausência do namorado que demora a retornar. Dois sentimentos rivalizam na emoção da donzela chorosa: o medo de ser arrastada pelas ondas que se arrebentam ao seu redor, cada vez mais próximas, e o temor de que o seu namorado pemaneça ausente para sempre. Todavia, a imagem das ondas ameaçadoras e o medo que delas decorre metaforizam o seu medo principal, o que na verdade a aterroriza: perder o homem amado.
A idéia da perda, o angustiante receio que isto aconteça é o que enche de amargura a jovem apaixonada, porque significaria o seu aniquilamento, a falência dos seus projetos de felicidade, o naufrágio dos seus sonhos e o desmoronamento de sua vida amorosa.
Vale salientar a importância da Natureza no contexto da cantiga, corporificada nas ondas do mar e funcionando como participante do drama da donzela.
A intensidade dramática com que a donzela exprime seus sentimentos vai aumentando de uma copla para a outra. Nas duas primeiras coplas, ela expressa temores já distanciados no passado, como indica o uso do verbo no particípio passado (sedia-me e cercavam-me). Nas terceira e quarta coplas, o uso do perfeito do indicativo (cercaram-me) adquire um sentido de reiteração da ação no presente por anteceder o verso “Non hei barqueiro, nem ar son remador”, exprimindo uma ação presente.
O emprego do ponto de exclamação no verso “E cercaram-me as ondas, que grandes son!” acentua a aproximação do perigo para a donzela e a sua emoção perante o mesmo. Tal perigo e a conseqüente emoção que gera no espírito da donzela vão crescendo, até atingirem o final da antepenúltima copla. Nas duas últimas, o emprego do verbo no futuro e a repetição do verso “E morrerei fremosa, no alto mar”, indicam uma tragédia preste a acontecer.
Observar a expressividade do adjetivo “fremosa”, nas duas últimas coplas, instaurando a mudança do sentido do campo da metáfora para a área da realidade, tornando claro que o que apavorava a donzela não eram as ondas do mar, mas tão somente o fato de se colocar, em vão, frente ao mar que o havia levado, angustiada e temerosa, sem ver o namorado de regresso. Ela ainda é tão “fremosa” como era, quando o se fez amada por ele. Portanto, a sua beleza fora a causa principal do amor que, agora, é o motivo do seu grande sofrimento.
Vale realçar a força expressiva do refrão no conjunto da cantiga. Ele, sendo repetido ao final de cada copla, vai reforçando a causa do desespero da donzela: a ausência do namorado. A única diferença que se estabelece fica nas duas últimas coplas, porque nestas os versos intensificam a dramaticidade do discurso: “E morrerei fremosa, no mar maior” – “E morrerei fremosa, no alto mar”. Isto significa, por um lado, que a donzela morrerá à espera do namorado e, quiçá, sem esperanças de tê-lo de volta ao seu abraço, e, por outro lado traduz o estado obsessivo da obstinada donzela.
Zenóbia Collares Moreira
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