30 de setembro de 2010

A celebração do cotidiano na poesia de Rosa Alice Branco


Alice Branco, poetisa, filósofa, ensaísta, tradutora, é também co-fundadora da revista Limiar. nasceu na cidade de Aveiro, em 1950. Realizou Mestrado em Filosofia do Conhecimento, na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, da Universidade Nova de Lisboa. Realizou Doutorado na área de Percepção visual e Psicologia do ambiente. A autora tem várias obras publicadas entre poesias e ensaios. O lastro filosófico, no qual se assenta a produção poética de Rosa Alice Branco, radica nos seus estudos filosóficos, aprofundados dos quais resultaram trabalhos acadêmicos sobre a teoria da percepção do filósofo inglês do século XVIII, George Berkerley.
Na poesia de Rosa Alice Branco, a “celebração do quotidiano” ocupa um lugar privilegiado. Todavia, a autora segue por trilhas bem diferentes das trilhadas por Adília Lopes, no que diz respeito à tematização das coisas do quotidiano ou, como ela prefere chamar, a “celebração do quotidiano”. Em seu discurso, os aspectos mais simples do quotidiano são revestidos de erotismo que finca as suas raízes na percepção do universo pelos sentidos. 
Nos poemas de Rosa Alice, a idéia recorrente que os percorre é: “vemos o que vemos, porque no olhar materializamos a realidade. Mesmo quando não vemos, é a percepção dessa negatividade que nos ilumina o ser”. Daí dizer no verso que abre o poema Passos sem memória, que será dado a seguir “Olho pela janela e não vejo o mar”. Neste poema, verso a verso construído com base na poética do quotidiano e no primado do substantivo: a manhã, a relva, o lume, o pão, o jornal, a saliva, o papel, as gaivotas. 

Olho pela janela e não vejo o mar. As gaivotas 
Andam por aí e a relva vai secando no varal. 
Manhã cedo, 
O mar ainda não veio. Veio o pão, veio o lume 
e o jornal. A saliva com que hei-de dizer bom dia. 
As palavras são as primeiras a chegar. O que 
fica delas 
amacia o papel. Pão quente com o sono de 
ontem 
e a relva vai secando no varal. 
Manhã cedo, 
o mar ainda não veio. 
Veio o pão, veio o lume e o jornal. 
A saliva com que hei-de dizer bom dia. 
As palavras são as primeiras a chegar. 
O que fica delas amacia o papel. 
Pão quente com o sono de ontem 
e os sonhos de hoje. 
Prepara-se o dia, os passos de ir e vir. 
Estou cada vez mais perto. 
Olhas-me como se soubesses 
o que hei-de saber mais logo 
nesta cidade nunca é meio-dia. 
Há sempre uma doçura 
de outras horas. E recordações avulsas. 
Deixa sair de dentro do vestido, 
deixa soltar as ondas do mar. 
A janela está vazia. 
O meu filho caminha na praia 
e tu soletras as gaivotas. 
Caminha à minha frente 
Sem deixar pegadas. Perco-me 
com todas as mãos, todos os amantes. 
Invento passos e palavras 
para adormecer. A esta hora a minha avó 
enrolava o rosário nas mãos. 
Eu estava dentro das contas, 
dentro do sono 
que rondava a prece. Durante muito tempo 
estive fora, 
agora caminhamos juntos. Sem memória.

No poema, que vem a seguir – A tua pele descalça - um sopro de erotismo perpassa os versos. 

Veio uma onda. A varrer o meu sono. 
Caminhava nele como caminho na areia. 
Nada me une ou divide. Nada me retém. 
Sentas-te onde me sento no teu colo 
e peço sempre a mesma história. 
A tua voz cria as memórias que hei-de ter. 
Por agora caminho ao longo das gaivotas 
e grito como elas quando a maré baixa. 
Às vezes apoio-me num rochedo 
para dizer “casa” e logo desmorono. 
Sigo descalça como tu para dizer “seguimos”. 
Mas são apenas sons sob o sol de maio. 
Murmúrios do que não serei. 
Sempre tive problemas com o verbo ser. 
Faço e desfaço as malas, entro 
e saio das gavetas. 
Pausa na camisa que vestiste da última vez. 
Uma vontade de a amarrotar, 
desapertar os botões e sentir lá dentro 
a tua pele cá fora. 
Tudo isto é tão verdade como podem ser 
os botões de uma camisa escrita. Confesso 
que não pensei na cor, 
ou se era às riscas. Agora acho que podia ser 
a de quadrados. 
Em qualquer delas a tua pele entra na minha. 

A leitura dos poemas de Rosa Alice Branco aponta também, como um forte traço definidor de sua arte poética, como uma meta-poesia, ou seja, uma poesia que se volta para ela mesma, para se pensar e se interrogar, sem perder de vista o ininterrupto diálogo dos seus textos com a filosofia.
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Zenóbia Collares Moreira Cunha, O Itinerário da poesia feminina portuguesa: Seculo XX.

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[1] Floriano Martins, “Rosa Alice Branco: esboços e sombras (entrevista)” in: Revista da Cultura, nº 35 –Fortaleza, S. Paulo – agosto de 2003. 
[2] Id. Ibidem.



Um comentário:

Anônimo disse...

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