Fiama é um dos maiores talentos da dramaturgia e da poesia em Portugal, uma das mais fortes referências dentre as melhores poetisas de sua geração. Participou ativamente no grupo “Poesia 61”. No domínio da linguagem poética vem sustentando durantes décadas um lugar de destaque. Na poesia que se segue, a poetisa intertextualiza a Cantiga Barcas Novas de João Zorro de uma forma singular, pois, além de iniciar o seu poema com a transcrição do texto integral do poeta medieval, com o qual estabelece um diálogo permeado de crítica ao contexto histórico contemporâneo, também usa a forma medieval pararelística:
BARCAS NOVAS (João Zorro)
Em Lixboa, sobre lo mar
Barcas novas mandei lavrar.
Ai, mia senhor velida!
Em Lixboa, sobre lo ler
Barcas novas mandei fazer.
Ai, mia senhor velida!
Barcas novas mandei lavrar
E no mar as mandei deitar.
Ai, mia senhor velida!
Barcas novas mandei fazer
E no mar as mandei meter.
Ai, mia senhor velida!
BARCAS NOVAS (Fiama H. P. Brandão)
Lisboa tem barcas
Agora lavradas de armas.
Lisboa tem barcas novas
Agora lavradas de homens
Barcas novas levam guerra
As armas não lavram terras
São de guerra as barcas novas
Ao mar mandadas com homens
Barcas novas são mandadas
Sobre o mar
Não lavram terra com armas
Os homens
Nelas mandaram meter
Os homens com a sua guerra
Ao mar mandaram as barcas
Novas lavradas de armas
Em Lisboa sobre o mar
Armas novas são mandadas
É oportuno lembrar que o pararelismo é um dos traços definidores da poesia dos cancioneiros medievais, prodigamente usado nas Cantigas de Amigo, nas quais coplas (estrofes) de dois versos (dísticos) repetem intencionalmente versos de outros dísticos que as antecedem.
“O pararelismo é, assim, uma característica estrutural que se pode manifestar tanto fonética como semanticamente. Nesse sentido é de se notar que esse recurso, por vezes em formas não imediatamente evidentes, constitui o esqueleto de muitos textos da poesia barroca”.
Na poesia contemporânea, tais repetições assumem um outro significado, como se pode constatar nos textos poéticos neo-realistas e na poesia concreta.
O poema Barcas novas, de Fiama Hasse Pais Brandão, exemplifica muito bem esse trânsito de elementos próprios da poética medieval para a poesia contemporânea, na qual a forma pararelística e a repetição de uma parte do verso no verso seguinte, bem como o jogo permutativo entre as palavras barcas, armas e homens, guerra e terra, veiculam a crítica ao contexto sócio-político da época.
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A intertextualidade na poesia de Fiama Hasse Pais Brandão é de suma importância para a expressão de sua visão particularizada da história de Portugal. A poetisa tanto projeta o discurso histórico no seu poema como estreita as relações intertextuais entre o seu texto e os textos de autores do passado.
Esse debruçar-se sobre os fatos históricos para criticá-los faz parte dos interesses da geração “Poesia 61”, da qual Fiama fez parte. No poema dado a seguir – Inês de manto - a poetisa resgata a imagem de Inês de Castro através de um hábil processo de desocultação da máscara com que a hipocrisia histórica vem recobrindo a face da hediondez trágica que envolve a morte da amante de D. Pedro.
INÊS DE MANTO
Teceram-lhe o manto
Para ser de morta
Assim como o pranto
Se tece na roca
Assim como o trono
E como o espaldar
Foi igual o modo
De a chorar
Só a morte trouxe
Todo o veludo
No corte da roupa
No cinto justo
Também com o choro
Lhe deram um estrado
Um firmal de ouro
O corpo exumado
O vestido dado
Como a choravam
Era de brocado
Não era escarlata
Também de pranto
A vestiram toda
Era como um manto
Mais fino que a roupa
O poema Inês de Manto focaliza de uma forma crítica a figura histórica de Inês de Castro. Já no título pode-se ver a metáfora da célebre frase “a que depois de morta foi rainha”, ou seja a Inês que foi assassinada não tinha manto, não tinha a realeza (teceram-lhe o manto / para ser de morta).
De manto (morta e rainha), Inês entra para a história, torna-se um mito. Inês de manto é a Inês encoberta pela mitificação histórica de um “amor”, quando o que se tem de fato é uma bem urdida trama (teceram-lhe o manto/ para ser de morta) política que se armou pelo poder que teia do mito ( assim como o pranto / se tece na roca) disfarça.
Autora: Zenóbia Collares Moreira Cunha
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