25 de outubro de 2011

Álvaro de campos: Lisboa revisitada

Lisboa Revisitada é um dos poemas de Álvaro de Campos, heterônimo pessoano, mais representativo do movimento Orpheu, instaurador do Modernismo em Portugal. Apesar de não ter existência física, constituindo-se apenas como um dos alter egos de Fernando Pessoa, Campos é considerado a figura exponencial do Modernismo português e um dos maiores e mais talentosos poetas do século XX. 
Sensacionista e futurista, o poeta abraçou as teorias revolucionárias modernistas de Marinetti e deu à literatura suas grandes Odes de exaltação à velocidade, à maquina, aos avanços da técnica e das ciências, encarnando o homem moderno, dominado por obsessões, torturado pela angústia existencial e por neuroses típicas do trepidante mundo moderno. Daí a oscilação de sua poesia entre duas fases opostas e coexistentes: a fase sensacionista/futurista das grandes Odes, e a fase depressiva na qual aguça-se a consciência do poeta de ser um sujeito fragmentado em perene conflito os valores sociais que execra.

LISBON REVISITED (Lisboa Revisitada 1923) 
(Álvaro de Campos) 


Não: Não quero nada.
Já disse que não quero nada.

Não me venham com conclusões!
A única conclusão é morrer. 
Não me tragam estéticas!
Não me falem em moral!
Tirem-me daqui a metafísica!
Não me apregoem sistemas completos, não me enfileirem conquistas 
Das ciências (das ciências, Deus meu, das ciências!) –
Das ciências, das artes, da civilização moderna!

Que mal fiz eu aos deuses todos?

Se têm a verdade, guardem-a!

Sou um técnico, mas tenho técnica só dentro a técnica.
Fora disso sou doido, com todo o direito a sê-lo.
Com todo o direito a sê-lo, ouviram?

Não me macem, por amor de Deus! 
Queriam-me casado, fútil quotidiano e tributável?
Queriam-me o contrário disto, o contrário de qualquer coisa?
Se eu fosse outra pessoa, fazia-lhes, a todos, a vontade.
Assim, como sou, tenham paciência!

Vão para o diabo sem mim,
Ou deixem-me ir sozinho para o diabo!
Para que havermos de ir juntos? 

Não me peguem no braço! 
Não gosto que me peguem no braço. 
Quero ser sozinho.
Já disse que sou sozinho!
Ah, que maçada quererem que eu seja a companhia! 

Ó céu azul – o mesmo de minha infância –
Eterna verdade vazia e perfeita!
Ó macio Tejo ancestral e mudo,
Pequena verdade onde o céu se reflete!

Ó mágoa revisitada, Lisboa de outrora de hoje!
Nada me dais, nada me tirais, nada sois que eu me sinta!

Deixem-me em paz! Não tardo, que eu nunca tardo...
E enquanto tarda o Abismo e o Silêncio quero estar sozinho! 

Lisboa Revisitada (1923) se inscreve na fase depressiva do poeta. Daí a linguagem ríspida, irritada e contundente que plasma os seus versos, constituídos pela negação ao conjunto de valores típicos da sociedade burguesa moderna sua contemporânea. Aliás, os mesmos valores que ele exalta freneticamente em suas Odes futuristas, principalmente na Ode Triunfal. Não se trata, no entanto de contradição absurda do poeta, mas sim de poemas escritos em fases paradoxalmente diferentes de sua expressão poética, oscilante entre a euforia futurista e a disforia de sua vertente depressiva, na qual ironiza e rejeita as conquistas da civilização moderna, como sejam: as suas conclusões, a sua estética, a sua moral, o seu sistema completo das ciências, das artes e da civilização moderna. Sua negação é alicerçada nos demolidores esquemas da ironia e do sarcasmo contundentes. 
Na estrofe final, o tom do discurso muda, torna-se nitidamente depressivo, pausado, melancólico e passa a focalizar Lisboa a cidade onde nasceu. Mas, logo volta à exasperação e aos brados de rejeição às coisas que lhe querem impor. 
Há um sentido metafórico neste poeta que remete para a recusa de toda a tradição literária acadêmica anterior ao modernismo. Como José Régio no poema Orpheu Negro, Campos não admite que lhe apontem o caminho a seguir, tampouco que tentem conduzi-lo (não me peguem no braço [...] quero ser sozinho) pelos caminhos das novidades estéticas que todos seguem com entusiasmo, empunhando a bandeira orphica. 
O poeta busca a originalidade, deseja seguir a sua própria "loucura", desbravar sua própria trilha no emaranhado da selva literária na qual se confundem os "ismos" com ares de "escolas e cheirando a academicismo. 

Zenóbia Collares Moreira. 









18 de outubro de 2011

Vinícius de Moraes: Soneto de Fidelidade...




De tudo, ao meu amor serei atento
Antes, e com tal zelo, e sempre, e tanto
Que ao mesmo em face do maior encanto
Dele se encante mais meu pensamento.

Quero vivê-lo em cada vão momento
E em seu louvor hei de espalhar meu canto
E rir meu riso e derramar meu pranto
Ao seu pesar ou seu contentamento.

E assim, quanto mais tarde me procure
Quem sabe a morte, angústia de quem vive
Quem sabe a solidão, fim de quem ama.

Eu possa me dizer do amor (que tive):
Que não seja imortal, posto que é chama
Mas que seja infinito enquanto dure.

(Antologia poética.   Rio de Janeiro. A Noite, 1949.)

O Soneto de Fidelidade, de Vinicius de Moraes, poeta brasileiro já falecido, é considerado como um dos mais belos e bem construídos da poesia brasileira. Vale notar um timbre camoniano a percorrer os versos do soneto.
Logo no primeiro quarteto, o eu-lírico explicita a sua atitude perante o amor que sente, ou seja, dedicará uma atenção absoluta e um zelo sem medidas ao sentimento amoroso, de tal forma que, mesmo confrontado com outros “encantos”, o Amor resistirá, manter-se-á fiel, afirmando-se, crescendo e fortalecendo-se em sem pensamento.
No quarteto seguinte, o poeta expressa seu desejo de viver o Amor intensamente “em cada momento”, de louvá-lo em sua poesia, solidário em suas alegrias e tristezas, rindo com seus contentamentos e derramando lágrimas em seus momentos de pesar.  A seguir, ele declara seu desejo: ter uma longa vida, sem que a morte o ameace. Morte que constitui a angústia de quem vive a dúvida por ignorar a data da partida, e que não lhe venha “a triste solidão” resultante do amor extinto.
Finalmente, no último terceto, o autor tenta finalizar o seu pensamento, expressando seu anseio de poder, no futuro, falar de forma positiva do Amor que teve. Para isto, é necessário que este não seja imortal, uma vez que, sendo chama (ardente), pode apagar-se com algum revés do destino, mas que seja infinito, isto é, verdadeiro, intenso e pleno, enquanto dure.
Vale notar nesse soneto a concisão e a clareza de linguagem, o comedimento na expressão do sentimento, características clássicas que eliminaram as abordagens alegóricas e a retórica emocional, declamatória presentes na fase inicial da produção poética de Vinícius de Moraes.

Zenóbia Collares Moreira


11 de outubro de 2011

Ana Luisa Amaral: uma poética do avesso.


Poetisa, ficcionista e professora de Literatura e Cultura Inglesa e Americana na Faculdade de Letras da Universidade do Porto, Ana Luísa é autora de vários livros de poesia, publicados a partir de 1990. O seu livro de estréia – Nossa senhora de quê – a estabelece um diálogo com o livro da poetisa Maria Teresa Horta, Nossa senhora de mim (1974), em um certo sentido, Ana Luísa Amaral faz um reinvestimento temático do livro de Maria Teresa Horta.
Esta tenta recuperar a identidade da mulher, devolve-lhe a voz que o homem lhe havia usurpado nas “Cantigas de Amigo” medievais, faz a mulher assumir-se em sua inteireza, resgatando-lhe a sexualidade reprimida, fazendo-a parceira ativa na relação amorosa com o homem. Ela recria a convenção, de um ponto de vista decididamente feminista.
Ana Luísa Amaral parece questionar o posicionamento de Maria Teresa Horta. Com a eliminação do pronome possessivo logo no título do livro (minha senhora de quê) e no primeiro verso do poema que leva o mesmo título (dona de que; dona de mim nem sou). A poetisa “reinventa a reinvenção de Maria Teresa Horta no “nada” de “ser” que todos somos, afinal, homens e mulheres”:

MINHA SENHORA DE QUÊ

dona de quê
se na paisagem onde se projectam
pequenas asas... deslumbrantes folhas
nem eu me projectei

se os ventos apressados
me nascem sempre urgentes:
trabalhos de permeio refeições
doendo a consciência inusitada

dona de mim nem sou
se sintaxes trocadas
o mais das vezes nem minha intenção

se sentidos diversos ocultados
nem do culto nascem
(poética do Hades quem me dera!)

Dona de nada senhora nem
de mim: imitações de medo
os meus infernos.

Esse gosto pelo reinvestimento temático, pela prática de uma “poética do avesso” é uma constante desde o primeiro livro da poetisa. Além do exemplo evidente desse trabalho pelo avesso calcado no livro de Maria Teresa Horta, há muitos outros, como um poema do livro Epopéias (1994) curiosamente intitulada Orfeu do avesso, no qual Eurídice, contrariando a tradição mitológica, recusa-se a morrer:

De pé sobre o abismo
E não morri;
Canto gregoriano
muito limpo
não me chegou;
o fim

Catedral
sobre o risco,
sobre um azul tão grande
que afundar-me podia

Ao fundo do mais fundo
mergulhei
e não morri;
amei

A temática da realidade quotidiana também transita livre pelos poemas de Ana Luísa Amaral, um quotidiano bem feminino, mas bem distanciado das abordagens feministas, como pode ser observado no poema Ritmos e em outros que virão, a seguir. Em alguns casos, a poetisa ironiza o universo doméstico feminino:

RITMOS
E descascar ervilhas ao ritmo de um verso:
a prosódia da mão, a ervilha dançando
em redondilha.
Misturar ritmos em tela apertada: um vira
bem marcado pelo jazz, pas
de deux: eu, ervilha e mais ninguém
De vez em quando o salto: disco sound
o vazio pós-moderno e sem sentido
Ah! Hedónica ervilha tão sozinha
debaixo do fogão!

As irmãs recuperadas ainda em anos 20
o prazer da partilha: cebola, azeite
blues desconcertantes, metamorfoses em
refogados rítmicos
(Debaixo do fogão
só o silêncio frio)

Nas poesias Fingimentos poéticos e Aniversário a poética do avesso é posta em prática, para parodiar textos de Fernando Pessoa. Em Fingimentos poéticos, a autora intertextualisa Autopsicografia:

FINGIMENTO POÉTICOS

“finge tão completamente”

Faz-me falta a tristeza
para o verso:
falta feroz de amante,
ausência provocando dor maior.
Tristeza genuína, original,
a rebentar entranhas e navios
sem mar.

Tristeza redundando em mais
tristeza, desaguando em métrica
de cor.
Recorro-me a jornal, mas é
em vão. A livros russos (largos
e sombrios).
Em provocando rio de depressão,
nem zepellin: balão
e ervas rente.
Um arrastão sonhando-se
navio.
Só se for o que diz o que
deveras sente.
A sério: o Zepellin.
Mas coração:
combóio cuja corda
se partiu.

Em Às vezes o paraíso, livro publicado em 1998, é a tradição judaico-cristã que é desconstruída, subvertida. Em um dos poemas Caim escapa do castigo indo construir seu próprio Paraíso (A leste do paraíso), implodindo, assim, os alicerces de um dos mitos religiosos que mais incide na questão moral, constituindo desde tempos imemoriais um ex-libre da retórica do Bem e do Mal.


Zenóbia Collares Moreira