Poetisa, ficcionista e professora de Literatura e Cultura Inglesa e Americana na Faculdade de Letras da Universidade do Porto, Ana Luísa é autora de vários livros de poesia, publicados a partir de 1990. O seu livro de estréia – Nossa senhora de quê – a estabelece um diálogo com o livro da poetisa Maria Teresa Horta, Nossa senhora de mim (1974), em um certo sentido, Ana Luísa Amaral faz um reinvestimento temático do livro de Maria Teresa Horta.
Esta tenta recuperar a identidade da mulher, devolve-lhe a voz que o homem lhe havia usurpado nas “Cantigas de Amigo” medievais, faz a mulher assumir-se em sua inteireza, resgatando-lhe a sexualidade reprimida, fazendo-a parceira ativa na relação amorosa com o homem. Ela recria a convenção, de um ponto de vista decididamente feminista.
Esta tenta recuperar a identidade da mulher, devolve-lhe a voz que o homem lhe havia usurpado nas “Cantigas de Amigo” medievais, faz a mulher assumir-se em sua inteireza, resgatando-lhe a sexualidade reprimida, fazendo-a parceira ativa na relação amorosa com o homem. Ela recria a convenção, de um ponto de vista decididamente feminista.
Ana Luísa Amaral parece questionar o posicionamento de Maria Teresa Horta. Com a eliminação do pronome possessivo logo no título do livro (minha senhora de quê) e no primeiro verso do poema que leva o mesmo título (dona de que; dona de mim nem sou). A poetisa “reinventa a reinvenção de Maria Teresa Horta no “nada” de “ser” que todos somos, afinal, homens e mulheres”:
MINHA SENHORA DE QUÊ
dona de quê
se na paisagem onde se projectam
pequenas asas... deslumbrantes folhas
nem eu me projectei
se os ventos apressados
me nascem sempre urgentes:
trabalhos de permeio refeições
doendo a consciência inusitada
dona de mim nem sou
se sintaxes trocadas
o mais das vezes nem minha intenção
se sentidos diversos ocultados
nem do culto nascem
(poética do Hades quem me dera!)
Dona de nada senhora nem
de mim: imitações de medo
os meus infernos.
Esse gosto pelo reinvestimento temático, pela prática de uma “poética do avesso” é uma constante desde o primeiro livro da poetisa. Além do exemplo evidente desse trabalho pelo avesso calcado no livro de Maria Teresa Horta, há muitos outros, como um poema do livro Epopéias (1994) curiosamente intitulada Orfeu do avesso, no qual Eurídice, contrariando a tradição mitológica, recusa-se a morrer:
De pé sobre o abismo
E não morri;
Canto gregoriano
muito limpo
não me chegou;
o fim
Catedral
sobre o risco,
sobre um azul tão grande
que afundar-me podia
Ao fundo do mais fundo
mergulhei
e não morri;
amei
A temática da realidade quotidiana também transita livre pelos poemas de Ana Luísa Amaral, um quotidiano bem feminino, mas bem distanciado das abordagens feministas, como pode ser observado no poema Ritmos e em outros que virão, a seguir. Em alguns casos, a poetisa ironiza o universo doméstico feminino:
MINHA SENHORA DE QUÊ
dona de quê
se na paisagem onde se projectam
pequenas asas... deslumbrantes folhas
nem eu me projectei
se os ventos apressados
me nascem sempre urgentes:
trabalhos de permeio refeições
doendo a consciência inusitada
dona de mim nem sou
se sintaxes trocadas
o mais das vezes nem minha intenção
se sentidos diversos ocultados
nem do culto nascem
(poética do Hades quem me dera!)
Dona de nada senhora nem
de mim: imitações de medo
os meus infernos.
Esse gosto pelo reinvestimento temático, pela prática de uma “poética do avesso” é uma constante desde o primeiro livro da poetisa. Além do exemplo evidente desse trabalho pelo avesso calcado no livro de Maria Teresa Horta, há muitos outros, como um poema do livro Epopéias (1994) curiosamente intitulada Orfeu do avesso, no qual Eurídice, contrariando a tradição mitológica, recusa-se a morrer:
De pé sobre o abismo
E não morri;
Canto gregoriano
muito limpo
não me chegou;
o fim
Catedral
sobre o risco,
sobre um azul tão grande
que afundar-me podia
Ao fundo do mais fundo
mergulhei
e não morri;
amei
A temática da realidade quotidiana também transita livre pelos poemas de Ana Luísa Amaral, um quotidiano bem feminino, mas bem distanciado das abordagens feministas, como pode ser observado no poema Ritmos e em outros que virão, a seguir. Em alguns casos, a poetisa ironiza o universo doméstico feminino:
RITMOS
E descascar ervilhas ao ritmo de um verso:
a prosódia da mão, a ervilha dançando
em redondilha.
Misturar ritmos em tela apertada: um vira
bem marcado pelo jazz, pas
de deux: eu, ervilha e mais ninguém
De vez em quando o salto: disco sound
o vazio pós-moderno e sem sentido
Ah! Hedónica ervilha tão sozinha
debaixo do fogão!
As irmãs recuperadas ainda em anos 20
o prazer da partilha: cebola, azeite
blues desconcertantes, metamorfoses em
refogados rítmicos
(Debaixo do fogão
só o silêncio frio)
Nas poesias Fingimentos poéticos e Aniversário a poética do avesso é posta em prática, para parodiar textos de Fernando Pessoa. Em Fingimentos poéticos, a autora intertextualisa Autopsicografia:
FINGIMENTO POÉTICOS
“finge tão completamente”
Faz-me falta a tristeza
para o verso:
falta feroz de amante,
ausência provocando dor maior.
Tristeza genuína, original,
a rebentar entranhas e navios
sem mar.
Tristeza redundando em mais
tristeza, desaguando em métrica
de cor.
Recorro-me a jornal, mas é
em vão. A livros russos (largos
e sombrios).
Em provocando rio de depressão,
nem zepellin: balão
e ervas rente.
Um arrastão sonhando-se
navio.
Só se for o que diz o que
deveras sente.
A sério: o Zepellin.
Mas coração:
combóio cuja corda
se partiu.
Em Às vezes o paraíso, livro publicado em 1998, é a tradição judaico-cristã que é desconstruída, subvertida. Em um dos poemas Caim escapa do castigo indo construir seu próprio Paraíso (A leste do paraíso), implodindo, assim, os alicerces de um dos mitos religiosos que mais incide na questão moral, constituindo desde tempos imemoriais um ex-libre da retórica do Bem e do Mal.
E descascar ervilhas ao ritmo de um verso:
a prosódia da mão, a ervilha dançando
em redondilha.
Misturar ritmos em tela apertada: um vira
bem marcado pelo jazz, pas
de deux: eu, ervilha e mais ninguém
De vez em quando o salto: disco sound
o vazio pós-moderno e sem sentido
Ah! Hedónica ervilha tão sozinha
debaixo do fogão!
As irmãs recuperadas ainda em anos 20
o prazer da partilha: cebola, azeite
blues desconcertantes, metamorfoses em
refogados rítmicos
(Debaixo do fogão
só o silêncio frio)
Nas poesias Fingimentos poéticos e Aniversário a poética do avesso é posta em prática, para parodiar textos de Fernando Pessoa. Em Fingimentos poéticos, a autora intertextualisa Autopsicografia:
FINGIMENTO POÉTICOS
“finge tão completamente”
Faz-me falta a tristeza
para o verso:
falta feroz de amante,
ausência provocando dor maior.
Tristeza genuína, original,
a rebentar entranhas e navios
sem mar.
Tristeza redundando em mais
tristeza, desaguando em métrica
de cor.
Recorro-me a jornal, mas é
em vão. A livros russos (largos
e sombrios).
Em provocando rio de depressão,
nem zepellin: balão
e ervas rente.
Um arrastão sonhando-se
navio.
Só se for o que diz o que
deveras sente.
A sério: o Zepellin.
Mas coração:
combóio cuja corda
se partiu.
Em Às vezes o paraíso, livro publicado em 1998, é a tradição judaico-cristã que é desconstruída, subvertida. Em um dos poemas Caim escapa do castigo indo construir seu próprio Paraíso (A leste do paraíso), implodindo, assim, os alicerces de um dos mitos religiosos que mais incide na questão moral, constituindo desde tempos imemoriais um ex-libre da retórica do Bem e do Mal.
Zenóbia Collares Moreira
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