Lisboa Revisitada é um dos poemas de Álvaro de Campos, heterônimo pessoano, mais representativo do movimento Orpheu, instaurador do Modernismo em Portugal. Apesar de não ter existência física, constituindo-se apenas como um dos alter egos de Fernando Pessoa, Campos é considerado a figura exponencial do Modernismo português e um dos maiores e mais talentosos poetas do século XX.
Sensacionista e futurista, o poeta abraçou as teorias revolucionárias modernistas de Marinetti e deu à literatura suas grandes Odes de exaltação à velocidade, à maquina, aos avanços da técnica e das ciências, encarnando o homem moderno, dominado por obsessões, torturado pela angústia existencial e por neuroses típicas do trepidante mundo moderno. Daí a oscilação de sua poesia entre duas fases opostas e coexistentes: a fase sensacionista/futurista das grandes Odes, e a fase depressiva na qual aguça-se a consciência do poeta de ser um sujeito fragmentado em perene conflito os valores sociais que execra.
LISBON REVISITED (Lisboa Revisitada 1923)
(Álvaro de Campos)
Não: Não quero nada.
Já disse que não quero nada.
Já disse que não quero nada.
Não me venham com conclusões!
A única conclusão é morrer.
Não me tragam estéticas!
Não me falem em moral!
Tirem-me daqui a metafísica!
Não me apregoem sistemas completos, não me enfileirem conquistas
Das ciências (das ciências, Deus meu, das ciências!) –
Das ciências, das artes, da civilização moderna!
Que mal fiz eu aos deuses todos?
Se têm a verdade, guardem-a!
Sou um técnico, mas tenho técnica só dentro a técnica.
Fora disso sou doido, com todo o direito a sê-lo.
Com todo o direito a sê-lo, ouviram?
Não me macem, por amor de Deus!
Queriam-me casado, fútil quotidiano e tributável?
Queriam-me o contrário disto, o contrário de qualquer coisa?
Se eu fosse outra pessoa, fazia-lhes, a todos, a vontade.
Assim, como sou, tenham paciência!
Vão para o diabo sem mim,
Ou deixem-me ir sozinho para o diabo!
Para que havermos de ir juntos?
Não me peguem no braço!
Não gosto que me peguem no braço.
Quero ser sozinho.
Já disse que sou sozinho!
Ah, que maçada quererem que eu seja a companhia!
Ó céu azul – o mesmo de minha infância –
Eterna verdade vazia e perfeita!
Ó macio Tejo ancestral e mudo,
Pequena verdade onde o céu se reflete!
Ó mágoa revisitada, Lisboa de outrora de hoje!
Nada me dais, nada me tirais, nada sois que eu me sinta!
Deixem-me em paz! Não tardo, que eu nunca tardo...
E enquanto tarda o Abismo e o Silêncio quero estar sozinho!
Lisboa Revisitada (1923) se inscreve na fase depressiva do poeta. Daí a linguagem ríspida, irritada e contundente que plasma os seus versos, constituídos pela negação ao conjunto de valores típicos da sociedade burguesa moderna sua contemporânea. Aliás, os mesmos valores que ele exalta freneticamente em suas Odes futuristas, principalmente na Ode Triunfal. Não se trata, no entanto de contradição absurda do poeta, mas sim de poemas escritos em fases paradoxalmente diferentes de sua expressão poética, oscilante entre a euforia futurista e a disforia de sua vertente depressiva, na qual ironiza e rejeita as conquistas da civilização moderna, como sejam: as suas conclusões, a sua estética, a sua moral, o seu sistema completo das ciências, das artes e da civilização moderna. Sua negação é alicerçada nos demolidores esquemas da ironia e do sarcasmo contundentes.
Na estrofe final, o tom do discurso muda, torna-se nitidamente depressivo, pausado, melancólico e passa a focalizar Lisboa a cidade onde nasceu. Mas, logo volta à exasperação e aos brados de rejeição às coisas que lhe querem impor.
Há um sentido metafórico neste poeta que remete para a recusa de toda a tradição literária acadêmica anterior ao modernismo. Como José Régio no poema Orpheu Negro, Campos não admite que lhe apontem o caminho a seguir, tampouco que tentem conduzi-lo (não me peguem no braço [...] quero ser sozinho) pelos caminhos das novidades estéticas que todos seguem com entusiasmo, empunhando a bandeira orphica.
O poeta busca a originalidade, deseja seguir a sua própria "loucura", desbravar sua própria trilha no emaranhado da selva literária na qual se confundem os "ismos" com ares de "escolas e cheirando a academicismo.
Zenóbia Collares Moreira.
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