25 de novembro de 2011

Álvaro de Campos: Poema em linha reta.


Nunca conheci quem tivesse levado porrada.
Todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo.
E eu, tantas vezes reles, tantas vezes porco, tantas vezes vil,
Eu tantas vezes irrespondivelmente parasita, Indesculpavelmente sujo.
Eu, que tantas vezes não tenho tido paciência para tomar banho,
Eu, que tantas vezes tenho sido ridículo, absurdo,
Que tenho enrolado os pés publicamente nos tapetes das etiquetas,
Que tenho sido grotesco, mesquinho, submisso e arrogante,
Que tenho sofrido enxovalhos e calado,
Que quando não tenho calado, tenho sido mais ridículo ainda;
Eu, que tenho sido cômico às criadas de hotel,
Eu, que tenho sentido o piscar de olhos dos moços de fretes,
Eu, que tenho feito vergonhas financeiras, pedido emprestado sem pagar,
Eu, que, quando a hora do soco surgiu, me tenho agachado
Para fora da possibilidade do soco;
Eu, que tenho sofrido a angústia das pequenas coisas ridículas,
Eu verifico que não tenho par nisto tudo neste mundo.
Toda a gente que eu conheço e que fala comigo
Nunca teve um ato ridículo, nunca sofreu enxovalho,
Nunca foi senão príncipe - todos eles príncipes - na vida...
Quem me dera ouvir de alguém a voz humana
Que confessasse não um pecado, mas uma infâmia;
Que contasse, não uma violência, mas uma cobardia!
Não, são todos o Ideal, se os oiço e me falam.
Quem há neste largo mundo que me confesse que uma vez foi vil?
Ó principes, meus irmãos,
Arre, estou farto de semideuses!
Onde é que há gente no mundo?
Então sou só eu que é vil e errôneo nesta terra?
Poderão as mulheres não os terem amado,
Podem ter sido traídos - mas ridículos nunca!
E eu, que tenho sido ridículo sem ter sido traído,
Como posso eu falar com os meus superiores sem titubear?
Eu, que venho sido vil, literalmente vil,
Vil no sentido mesquinho e infame da vileza.

***
O “Poema em linha reta” começa com um verso que pode causar estranheza: “Eu nunca conheci quem tivesse levado porrada”, ao qual se segue o desenvolvimento da idéia centralizadora que deseja comunicar. Emanada da comparação que ele faz de sua pessoa com todas as outras que conhece ou que conheceu ao longo de sua vida. De tal cotejo, assoma-lhe o sentimento de ser ele um ser singular, único, diferenciadamente inferior aos demais que têm sido campeões em tudo. Esta constatação o irrita, pois revolta-o o fato de se ver rodeado, como ele afirma – “por príncipes” e “semideuses”.

E, como ele mesmo diz, mesmo quando os outros confessam, em raros momentos de franqueza, quando fazem tímidos comentários acerca dos seus erros, tratam logo de esclarecerem seus equívocos, protegendo-se, cuidadosamente, de eventuais ameaças de desmoralização. Podem, vez ou outra, revelar falhas leves, mas calam sistematicamente quaisquer ações espúrias tenham praticado. Posem até confessarem ter cometido violências, mas guardam segredo acerca das suas fraquezas e covardia.

Daí origina-se a irônica e sarcástica referência à velada hipocrisia da sociedade em que transita: “Toda a gente que eu conheço e que fala comigo / Nunca teve um ato ridículo, nunca sofreu enxovalho.” Fica óbvio a retórica da provocação, da censura, da reprovação ao hipócrita modo de estarem no mundo, a sua rejeição ao falso moralismo de uma sociedade que vive de aparências. Em toda a revolta do poeta, percebe-se, no entanto, um melancólico eco de tristeza, de desencanto, de desesperança e de consternação.

A sua interrogação, ao final do poema (“Como posso eu falar com meus superiores sem titubear?”) deixa explícita a situação contrastante e absurda na qual ele se sente em relação à posição desses indivíduos tão especiais, perfeitos e irretorquíveis. Na irônica comparação do poeta, só lhe resta a fazer a definição do seu ser humanamente verdadeiro, real, sem as máscaras do parecer:

***
“Eu, que tantas vezes tenho sido ridículo, absurdo,
Que tenho enrolado os pés publicamente nos tapetes das etiquetas,
Que tenho sido grotesco, mesquinho, submisso e arrogante,
Que tenho sofrido enxovalhos e calado [...]”
“Então sou só eu que é vil e errôneo nesta terra?”

***
Como afirma Leandro Konder, “Poema em linha reta” é o desdobramento da autocrítica, não mais numa crítica ao outro, mas uma crítica à falta de autocrítica dos outros. Quer dizer, acho que se pode enxergar nesse poema a revolta de alguém que se mostra efetivamente capaz de se interpelar a respeito do seu lado noturno, digamos. Discorre sobre o que ela tem de mais problemático, mais doloroso e mais fracassado, sobre sua própria vileza, e vê essa sua franqueza, essa sua coragem resvalar na muralha hipócrita de um sistema que está alicerçado em uma enfática autovalorização artificial, por parte das pessoas em geral.”
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Autora: Zenóbia Collares Moreira


Um comentário:

Debora disse...

olá vó!
Te adoro!!!