João Cabral de Melo Neto, poeta nascido em Pernambuco e falecido no ano de 1999, sofreu as terrível dores de enxaqueca durante grande parte de sua vida.
Bom conhecedor das torturantes crises da doença, que o deixavam impedido de escrever tantas vezes, resolveu fazer de um assunto tão corriqueiro e banal, como esse, o tema do estranho, porém muito criativo e interessante poema denominado "Num monumento à aspirina”.
Ei-lo, a seguir:
Claramente: o mais prático dos sóis,
o sol de um comprimido de aspirina:
de emprego fácil, portátil e barato,
compacto de sol na lápide sucinta.
Principalmente porque, sol artificial,
que nada limita a funcionar de dia,
que a noite não expulsa, cada noite,
sol imune às leis da meteorologia,
a toda hora em que se necessita dele
levanta e vem (sempre num claro dia):
acende, para secar a aniagem da alma,
quará-la, em linhos de um meio-dia.
Convergem: a aparência e os efeitos
da lente do comprimido de aspirina:
o acabamento esmerado desse cristal,
polido a esmeril e repolido a lima,compacto de sol na lápide sucinta.
Principalmente porque, sol artificial,
que nada limita a funcionar de dia,
que a noite não expulsa, cada noite,
sol imune às leis da meteorologia,
a toda hora em que se necessita dele
levanta e vem (sempre num claro dia):
acende, para secar a aniagem da alma,
quará-la, em linhos de um meio-dia.
Convergem: a aparência e os efeitos
da lente do comprimido de aspirina:
o acabamento esmerado desse cristal,
prefigura o clima onde ele faz viver
e o cartesiano de tudo nesse clima.
De outro lado, porque lente interna,
de uso interno, por detrás da retina,
não serve exclusivamente para o olho
a lente, ou o comprimido de aspirina:
ela reenfoca, para o corpo inteiro,
o borroso de ao redor, e o reafina
O magnífico poeta faz o elogio do produto, lançando mão da ironia mais jocosa, à qual alia o linguajar da propaganda comercial, não descartando a louvação aos efeitos prodigiosos da droga no alívio da cefaléia.
Nestes termos, o mágico comprimido não serve apenas para livrar a visão dos sintomas da cefaléia, funcionando também como cura para os males do corpo inteiro.
(...) porque lente interna,
de uso interno, por detrás da retina,
não serve exclusivamente para o olho
a lente, ou o comprimido de aspirina:
ela reenfoca, para o corpo inteiro,
o borroso de ao redor, e o reafina.
Nas cefaléias é comum os distúrbios visuais de variados tipos. A claridade incomoda e a visão fica embaciada. Daí a analogia de Cabral da aspirina com as lentes dos óculos, pois de fato um dos efeitos do remédio é permitir, como a lente, ver com nitidez.
A aspirina passa a ser encarada como se fosse o sol, seja por seu formato redondo e sua coloração branca, seja porque devolve a luz aos olhos do doente. Ou seja, uma vez engolida, transforma-se numa lente. Só quem sofre de enchaquecas e conhece o alívio de livrar-se dos seus efeitos pode avaliar o aparente exagero do poeta.
É bem próprio de João Cabral a tematização antilírica de elementos prosaicos, de dados do cotidiano, em poemas que privilegiam a linguagem direta, substantiva e livre de exageros metafóricos.
Só um grande e talentoso poeta consegue transformar um assunto tão comum em um poema com a qualidade e o fascínio que encontramos em toda a sua obra. João Cabral de Melo Neto foi um poeta antilírico por excelência, sempre avesso à melodia e à musicalidade do verso. Por meio de um severo e vigilante trabalho de linguagem e de construção poética, semelhante à uma obra de engenharia, sua poesia dura, seca, enxuta e precisa, feita de "pedras" e a "palo seco", como ele mesmo dizia, inspirava-se na aridez das caatingas do sertão pernambucano.
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Por Zenóbia Collares Moreira
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